quinta-feira, junho 06, 2019

A CARTA QUE NUNCA TE ESCREVEREI - Take 15


Que estranho mistério, ou coincidência, ou que linhas invisíveis no acaso de suas vidas ligava, pois, aqueles dois homens, Manuel Maria e José Augusto, tão diferentes e tão diversos, para além do acaso do seu nascimento, ambos na mesma aldeia ignorada, algures em Terras do Demo, José Augusto, marcado pela rebeldia e nascido uma boa meia dúzia de anos antes, filho primogénito de um tal Zé Canhoto, que um dia, chegou aquele lugar, vindo, como as águas, de norte para sul, sabe-se lá donde, para se fazer meeiro da Casa Grande, por decisão e favor de seu amo, Federico Amásio Jacinto Silvestre Campelo do Rego, caldeado em forte carácter pelas agruras da vida o dito José Augusto, de ora em diante também “Esquerdino”, pois que, na piedosa cerimónia baptismal, que o ungiu, o anátema de “canhoto”, que seu pai carregava, zé-ninguém que àquelas paragens chegara sem ter onde cair morto, tal anátema, dizíamos, por desígnio dos poderes terrenos e inspiração do Espírito Santo foi gloriosamente "transubstanciado" em sibilante “esquerdino”, sem que, para tanto, houvesse necessidade de consulta ou diligência suplementar, pois que esse era desígnio de Deus e vontade dos homens e neófito exibia distintos e poderosos padrinhos, marcado pois, José Augusto pelas circunstâncias de, não apenas de seu nascimento, mas também de baptismo e caldeado nas agruras e na heroicidade de uma vida de luta contra o poder fascista e, neste tempo literário, em que a narrativa decorre, Presidente da Comissão Administrativa de um grande Município da Área Metropolitana de Lisboa, por vontade da população do Concelho o elegeu, por braço no ar, em amplos e democráticos plenários da população, que desígnios da vida, portanto, ou que capricho da sorte lançariam, pois, aqueles dois homens tão diversos, José Augusto Esquerdino e Manuel Maria, este, porém, neste tempo narrado, ainda sem apelidos conhecidos, nascido, contudo, no mesmíssimo lugar distante de Terras do Demo, e criado e educado, numa instituição religiosa, que, para acolher jovens, em contramão com a vida, tais instituições são criadas, protegido por um jovem Padre Operário, que lhe domou as angústias metafísicas e o incitou nos seus juvenis ardores políticos e intelectuais e, neste tempo da narrativa, no auge da Revolução de Abril, empenhado em dar corpo ou expressão prática a uma Arquitectura para o Povo e, para isso, ali estava, naquele amplo salão, decorado, em toda a volta, por retractos e símbolos republicanos, raízes fundas que nem o fascismo conseguiu arrancar, salão nobre de reuniões solenes e agora também espaço de diversas utilidades e local de permanentes reuniões com múltiplas comissões de trabalhadores, comissões de moradores e outros organismos populares de base, que por todo o concelho germinavam e conquistavam o direito à palavra e ali vinham, aos Paços do Concelho, apresentar seus problemas e preocupações e a exigir dos seus eleitos apoio, meios e instrumentos para os resolverem, pois que não se concebe revolução, que se queira democrática, se os reais interesses e anseios do Povo não estiverem na vanguarda da acção política.

Tão diversos, portanto, aqueles dois homens, com vidas tão distantes e tão distintas e, no entanto, haveriam de unir-se nos mesmos ideais, forjando fecundos laços, em que a amizade seria não mais que latência, qual leito de rio, percorrido por frondosas águas e se alarga aos percursos da corrente, sem do leito se procurar saber, assim, também, a amizade daqueles dois homens que, estando presente, a envolver suas vidas, dela não se davam conta, tão tomados estavam, um e outro, pelo desígnio maior de dar corpo e gesta aos nobres ideais da Revolução de Abril, a que dedicavam toda energia, não havendo lugar a outras vivências, cálidas que fossem, a não ser a generosa entrega à causa da emancipação do Povo do Concelho, estimulando e apoiando participação das populações resolução dos seus problemas concretos e na afirmação dos seus direitos e, nesse desígnio revolucionário “tirar o fascismo da cabeça das pessoas”, bem sabendo, um e outro, o proletário José Augusto Esquerdino e o intelectual Manuel Maria, quão limitadas as suas forças e frágeis as suas capacidades, perante a magnitude da tarefa, se não fossem escoradas na vontade colectiva, “aprendendo, aprendendo sempre” , como se a voz do poeta, fosse palavra de ordem
(…)
“Pra aqueles cujo tempo chegou
Nunca é tarde de mais!
Aprende o abc, não chega, mas
Aprende-o!
E não te enfades!
Começa! Tens de saber tudo!
Tens de tomar a chefia!”

É pois exigência de entendimento e da ordem das coisas narradas que se persigam os fios desatados para que se possam desvendar finalmente os laços e veios e, para além deles e do acaso de suas vidas, podem determinar seu carácter e unir homens tão diversos, em diversas pontas do tempo, como sejam José Augusto Esquerdino e Manuel Maria e que fatais razões do destino ou determinação da escrita poderão levar a que estes dois homens vão entroncar, como em águas matriciais, naquele local ignorado, algures em Terras do Demo.

E, nesta servidão da escrita, como escravo agarrado ao remo, e barco a rodopiar, entregue à força das correntes, sem contudo perder o rumo, teimando agora o escrevente em galgar o espaço e tempo, em larga passada, bem maior que a perna, extrair da oculta vibração das coisas e do (dis)curso dos acontecimentos matriciais, a matéria ígnea e as diversas linhas com que cozem ou se descosem os personagens.

Regressemos, pois a Terras do Demo, dir-se-ia em viagem “de sul para norte” ou, como penitência da escrita, em busca de sentido que a redima.

Manuel Veiga






10 comentários:

Elvira Carvalho disse...

Gostei de ler. Faz parte de algum livro a publicar?
Fico aguardando mais.
Abraço

Ana Freire disse...

Um belíssimo texto, que nos mergulha directamente na essência das personagens, e no contexto da época...
Gostei imenso! Junto a minha curiosidade à da Elvira... certamente, um take a ser incluído em futura publicação?...
Beijinho! Votos de um óptimo fim de semana, Manuel!
Ana

Larissa Santos disse...

Brilhante este texto!

Hoje:-Sinto, que de saudades, estou morrendo...{Poetizando e Rncantando}

Bjos
Votos de uma óptima Sexta - Feira.

Jaime Portela disse...

"Tirar o fascismo da cabeça" não era tarefa fácil...
A narrativa é excelente, digna de qualquer escritor de nomeada, seja de Saramago, Camilo ou Garcia Marques (para citar alguns).
Folgo em saber que estes capítulos darão origem a mais um livro, pois, dada a sua qualidade literária, seria um desperdício ficarem soltos...
Caro Veiga, um bom fim de semana.
Abraço.

Olinda Melo disse...


Trabalho laborioso e competente o deste "Escrevente" . Conduziu-nos com zelo em mais um capítulo da intrincada história destes dois homens. A estranheza que sentia pela existência de um "Canhoto" e de um "Esquerdino" foi agora debelada. Estou preparada para segui-lo, de posse dessa sua "transubstanciação". O meu fraco por "Manuel Maria" persiste, e mais ainda, agora que sei que está à espera de ser agraciado com um ou mais apelidos. Mas, cada coisa a seu tempo, não é? Temos, para já, os seus ideais revolucionários como referência.
E Viva Aquilino que tanto acarinha as "Terras do Demo", assim como o nosso talentoso "Escrevente" e amigo, que aqui lhe concede espaço de honra.

Rendida à sua prosa, caro Manuel Veiga.

Abraço

Olinda

Manuel Veiga disse...

é propósito do autor editar um novo romance com os textos que tem vindo a publicar com o título (provisório) "A Carta Que Nunca Te Escreverei"

grato à amiga Elvira Carvalho e à amiga Ana Freire
pelo interesse manisfestado

abraços

Pedro Luso de Carvalho disse...

Amigo Manuel nesta sua postagem li o Convite para a apresentação do seu livro "Livros e Flores", na Feira do Livro de Lisboa, no dia 9 de junho, e para os debates sobre o livro. Com certeza foi uma bela apresentação e uma proveitosa palestra, Parabéns Manuel pelo livro e pela sua recepção na Feira do Livro.
Também tivemos, na sua postagem, o seu conto, que me proporcionou o prazer da leitura dessa sua excelente narrativa. Essa leitura fez-me lembrar (pelo seu "clima") os romances, contos, cartas de Eça de Queirós, que os li desde a minha adolescência (livros esses que até hoje mantenho em minha casa para uma e outra releitura). Parabéns mais uma vez!
Um e ótima semana, caro Manuel.
Grande abraço.
Pedro

Pedro Luso de Carvalho disse...

Caro Manuel,minhas escusas por não ter mencionado o nome correto de seu livro, "Perfil dos Dias", que foi apresentado hoje na Feira de Lisboa.
Boa semana, amigo Manuel.
Pedro

José Carlos Sant Anna disse...

Recomeço duplamente. Pela carta, take 15, A carta que nunca te escreverei. Quase a perdermos o fôlego nos deparamos com os laços que se prendem Manuel Maria e José Augusto e ficamos na expectativa ou em suspense pelo desdobramento da narrativa. Volta e meia volto para reler e não perder os fios da meada... e Pela retomada da leitura das páginas deste recanto...
Um grande abraço, caro amigo!

José Carlos Sant Anna disse...

Leia-se "Quase perdemos o fôlego quando nos deparamos com os laços....
É que o Moro tem nos tirado do sério depois que soubemos de tudo que ele fez para condenar o Lula à masmorra...
Um abraço, velho amigo!

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