Uniu-se, pois, Camilinha, pelos sagrados laços do matrimónio,
com o senhor da Casa Grande, Federico
Amásio …, e, com tal casamento, assim Deus o permita, será fundada uma nova
linhagem, com vantagens múltiplas para as duas nobres Casas, que alargarão a sua influência social e política e, no mesmo
lance, será resgatado o prestígio abalado do visconde de Malafaya, roído pela sífilis e pelas dívidas, que isto
de frequentar casinos e putas deixa sequelas graves e arruína famílias.
E que pode fazer uma frágil
mulher, pouco mais que adolescente, que não seja obedecer aos desígnios de Deus
e dos homens, pois que, mulher piedosa e fidalga, por bravio que seja o seu génio
e bem outros os sonhos, deve aceitar, sem recalcitrações ou queixumes, os desígnios
da Providência Divina e a vontade dos homens, sejam pais, irmãos ou maridos,
pois que maior glória para mulher fidalga e filha extremosa, do que sacrificar
vida e sonhos e jogar-se toda num casamento providencial com homem abastado e
poderoso, un peu sauvage é verdade,
um tanto rústico e violento, é certo, e com fama de maus costumes, sem a menor
dúvida, mas se Paris vale uma missa, também
a sua nobre família merece, se não uma missa, um casamento faustuoso, ao
arrepio das águas, que permitirá afastar a litigância dos credores e a desonra
e – Deus não o há-de permitir! – o opróbrio da miséria. Mais valeria, mil
vezes, a morte!...
Assim, Dona Camila Simone de
Bernardette e Malafaya, chegada à Casa Grande, de sul para norte, a assumir
culpas e pecados, que não dela, mas de sua fidalga estirpe e, imbuída dos mais
nobres propósitos, decidida a aceitar, sem júbilo ou mágoa, as escolhas que a
vida lhe reservar e a casar com homem que mal conhece e lhe causa, não amor,
mas repulsa e, consciente da sua nobre missão de mulher, predisposta a conceber
filho barão, o qual, por força das coisas estalecidas e a vontade dos homens, será
o rosto visível, herdeiro e depositário do património e dos fidalgos
pergaminhos das duas Casas e, pour cause,
afastar o opróbrio a Casa Malafaya e
a honra perdida do senhor, seu ilustre Pai, que isto de frequentar putas e jogo
arruína famílias e desonra os homens mais ilustres.
E, a seu lado, para seu
conforto e amenizar o degredo e a solidão na Casa Grande e melhor poder
suportar aquele casamento ao arrepio das águas, a Camilinha terá sempre consigo
a amizade e a dedicação da crepitosa Violante, de rijas e abundantes carnes, ali
chegada, àquelas terras, montada, presume-se, qual fogosa amazona, em poderosa
azémola e, para seu proveito ou perdição – vá lá saber-se! – um tanto estouvada,
coitada, mas julgue-a quem poder, pois as tentações são muitas e carne é fraca.
A festa do casamento foi de
arromba. Passados meses ainda se comentava, por toda a região, o número de
convidados e o dispêndio de reses abatidas e almudes de vinho bebidos, durante
os três dias de festa, para a qual foram convidadas as autoridades civis e
religiosas e, à devida distância, quer dizer, para bem longe dos salões, a
população, criados e serviçais da Casa
Grande, engalanada com garridas colchas e panos festivos e flores
silvestres derramadas pelos caminhos e veredas por onde o cortejo nupcial
haveria de passar.
Dos pantagruélicos banquetes poderá ainda hoje falar
um certo Zé Ninguém, à Casa Grande
chegado, por esses dias, sem ter onde cair morto e, logo ali nomeado Zé Canhoto, por quem, sendo amo e
senhor, tem o poder de nomear, fazendo jus à sua crença natural, sua dele,
zé-ninguém, que por hábito adquirido, ou entorse congénito, tem queda para usar
preferencialmente a mão esquerda e que, sôfrego e famélico, em lugar da malga
de caldo e dura côdea, lhe caiu, como sopa no mel, lauta ceia, com os restos do
festim que, de travessa em travessa, andavam abandonados, pela cozinha, não
tendo então passado despercebido ao ilustre titular da Casa Grande e noivo
recém-casado, nem a voracidade, nem a compleição física, nem o tamanho das mãos
que hão-de ir da Terra ao Céu na
febril imaginação de uma criança, que há-de ser, no corpo desta narrativa que
se diz literária, nem a queda para o
uso da mão esquerda, que filava os nacos de carne numa fome insaciável e o
zé-ninguém, erguido no esplendor da sua recente alcunha, o Canhoto, não ficou um dia, nem dois, mas toda a vida, pois com risco
de sua própria vida e sua valentia, haveria de salvar seu senhor e amo, de tiro
certeiro, na feira de Trancoso, e, tamanho o susto que, logo ali, lhe foi
prometida e jurada, soldada certa e constituído meeiro da Casa Grande, numas terras longínquas e sem préstimo e que
pela força de seus braços haveriam de ser produtivas e sustento da ranchada de
filhos e da mulher que recebera como sua, por decisão de seu amo e senhor e
vontade Deus e, agora, noutro tempo narrado desta escrita, que se diz
literária, a mulher a atazaná-lo “és um
banana, o teu amo abusa de ti e tu não
és capaz de te impor” e a verdade é que, por vezes, é obrigado a dar-lhe
razão e a reconhecer que a sua servidão e funesta dependência de Federico
Amásio é bem mais lamentável que a mansidão de um burro de carga, pois seu amo
e senhor o explora e o carrega, sem que, ele, explorado, ao menos, seja capaz
de disparar um coice e, então, a remoer tais inquietantes pensamentos, o Zé Canhoto, que zé-ninguém já não era,
decide atirar a carga ao chão e enfrentar seu amo para requerer o que lhe era devido
em soldadas nunca pagas e prometidas, quando num ajuste de contas, na Feira de
Trancoso, onde apenas os dois, amo e criado, à força de varapau, correram com
uma seita de ciganos, não sem que, antes, à traição, um deles tenha disparado
arma de fogo e, se não fora a agilidade e destreza, com que Deus o dotara, a
ele um zé-ninguém, funesta teria sido aquela hora para o Federico Amásio, que
seria, então, estendido por terra, em estertor de morte, como um javali
abatido.
Estava, pois, Zé Canhoto decidido a dar-se ao respeito
e custasse o que custasse, a repor, se não a justiça, ao menos tentar endireitar
a seu favor as suas ditas varas, pois, bem se sabe, que a Justiça dos ricos e
poderosos é uma e, outra justiça, bem diferente, para os “zé-ninguém” deste
mundo e nunca se viu um rico e poderoso abrir mão de seus privilégios e seu poder,
sem que se tenha que lhe forçar a mão, isso a vida lhe tem ensinado, a ele um
zé-ninguém, aquelas terra chegado, alguns anos atrás, em tempo de casamento e
faustosa boda de seu amo e senhor Federico Amásio, com uma amável senhora, que, vinda de sul para norte, ao arrepio das águas e cuja vida sofrida em tal
casamento, apesar de ser mulher distinta e fidalga é, por demais, exemplo das
injustiças do Mundo, vítima do poder arbitrário dos homens, seja Pai ou Marido
e que, para afastar do opróbrio a Casa Malafaya e a honra perdida de sua
Família, a nobre e frágil senhora se sujeitou a enxovalhos e afrontas, que,
pela sua condição, estaria longe de imaginar.
Deixemos, porém, as
lucubrações do Zé Canhoto para a elas retornarmos,
se tal o exigirem os caprichos da escrita e os humores do escrevente, mas anotemos,
porém, a lenta metamorfose, qual larva em seu casulo, isto é, a trilha da sua lenta
ascensão a estádio superior de consciência, sempre precário, aliás, e ao
conhecimento dos logros e engodos com que se tecem as relações entre os homens,
em que uns quantos, poucos, tudo podem e mandam e os restantes, muitos, que nada
podem e para nada contam, sendo que aqueles que mandam, afirmam sempre assim
ter sido e sempre assim continuará a ser, e os outros, que nada contam, para
valerem alguma coisa, têm de libertar-se da canga onde estão amarrados e
quererem, até ao limite da revolta, uma vida outra, mais justa e igualitária,
para todos, mas isto é dizer de escrevente e contas de outro rosário, que para
aqui não são chamadas, pois o que agora interessa, neste transe da escrita, que
se quer literária, é deslindar as malhas que a vida tece e onde se enredam os
enganos e desenganos de uma jovem e fidalga senhora, vinda de sul para norte,
ao arrepio das águas, para contrair matrimónio com o senhor da Casa Grande, Federico Amásio.
O casamento foi de
arromba, como ficou dito. O mesmo, porém, não poderá dizer-se da noite de
núpcias. Fatigada da viagem e das emoções do dia, a festejada noiva recolheu
cedo aos seus aposentos, em companhia da dedicada Violante. Federico Amásio,
senhor da Casa Grande e, anfitrião da festa, ficou com os convidados, recebendo
cumprimentos e elogios e, dando vazão ao seu primarismo atávico e à sua fama de
folgazão, despachou o visconde de Malafya e sua luzidia comitiva e mais convidados
e desceu ao terreiro, dançou, comeu e bebeu como um ogre, com criados e
serviçais e, quando bem entendeu, por entre gargalhadas e piadas de mau gosto,
anunciou, a cair de bêbado e a alimentar a galhofa, que se retirava por
momentos, pois estava na hora de ir papar
um petisco que estava a sua espera.
Os passos e a voz
avinhada de Federico Amásio, a bolsar prosápias e vulgaridades, trôpego de
bêbado, ecoavam pelos corredores, e a dócil Camilinha, a encolher-se toda, assustada
como pomba tímida, ante o gavião e, trémula, encolheu-se ainda mais sobre o
leito, abraçada à sua fiel Violante e, de repente, o temido momento, e a
entrada abrupta e cambaleante do noivo nos aposentos nupciais, com uma garrafa
de vinho dependurada da mão e a rir como um alarve, ordenou, com um gesto, a
saída da crepitosa Violante, que num donaire inesperado se curvou a cumprimentar
o noivo e, à passagem, o esboço de um sorriso, onde germinavam mal contidos propósitos,
a que desbragado noivo, correspondeu com uma gargalhada alarve e uma sonora
palmada do harmonioso traseiro da sorridente rapariga.
Trémula, no seu canto, a
Camilinha, com o medo estampado no rosto e as lágrimas a aflorarem nos olhos,
ainda balbuciou sou sua esposa e tem
direito sobre o meu corpo, mas por alma de quem lá tem, meu marido, esta noite
não! Mas Federico Amásio nem sequer a ouviu, cego pela bebedeira, mais do
que pelo cio e girava em volta da presa, que procurava abraçar, anda cá, minha cachorrinha, que esta noite
vais ver o que nunca viste, e esquivava-se lesta a Camilinha e esse jogo de
gato e rato mais excitava o marido e a jovem noiva sem outra saída ainda que retraída
e a medo consentiu que o marido se aproximasse de garrafa mão, da qual bebeu um
longo trago e quis que também a mulher bebesse levando o gargalo da garrafa aos
seus lábios e a jovem senhora, transida, fingiu o golo e o marido, com o polegar,
limpou a gota nos lábios da mulher e quis beijá-la e hálito do homem e o arroto
alarve e o odor fétido do vinho e o nojo e o asco a treparem e a mulher a subir
em dignidade e a empurrar o homem para se libertar do peso do corpo e da prisão
do amplexo e o homem bêbado a tombar no chão alcatifado e a erguer-se lívido e a
cólera a subir no sangue e a raiva e o bofetão no rosto pálido e o insulto soez
sua puta vais saber como te mordem e
a violência do homem sem escrúpulos e bêbado, ajudado pelo diabo, e o estupro e
o sangue e o grito amordaçado e o Federico Amásio, Senhor da Casa Grande na cama a ressonar como um suíno e a doce Camilinha
a chorar lágrimas de sangue.
Nunca mais a Camilinha
foi a mesma. Fechou-se. O marido servia-se dela, mas ela fechava-se, terra infértil,
como seu ventre, Maria, incapaz de
gerar filho e sem Espírito Santo que
a guarde. Passou a ser a Machorra, assim
conhecida por toda a parte e assim nomeada por quem tudo manda e tem o poder de
nomear.
O Visconde de Malafaya morreu pouco depois, roído pela sífilis. E o
seu património executado pelos credores. E sem gravidez que se visse, a Camilinha,
cada vez mais só no Mundo, é agora a Machorra.
Entregou-se a Deus e as obras da Igreja, que grandes serão seus pecados, a
que Deus não concedeu o dom da fertilidade. Que mais poderá uma frágil mulher
fazer?
O marido, Senhor da Casa Grande, há muito que não
a procura. Dormem em se aposentos separados. Desde sempre sabe que a estouvada Violante,
de crepitosas carnes, ocupa o seu lugar na cama do marido. Não se importa. Cada
um é para o que nasce. E Deus, em sua infinita Sabedoria bem sabe o que faz.
E quando a estouvada (e
incauta) Violante apareceu grávida, opôs-se, terminantemente, farei escândalo e todo o Mundo ficará a
saber quem e o pai! a que seu marido expulsasse a pobre de Cristo da Casa Grande. Ela amaria aquela criança
como se fora seu filho. E seria criado com o amor de duas mulheres.
Quando a criança nasceu,
foi ela quem, como madrinha, levou o neófito à pia baptismal. E lhe chamou Manuel
Maria. E com pai incógnito foi registado.
Manuel Veiga
5 comentários:
Uma narrativa impressionante.
Só ao alcance dos bons romancistas.
Caro Veiga, um bom fim de semana.
Abraço.
É realmente surpreendente caminhar para trás na vida deste país em que sobressaem as desigualdades sociais, as condições de vida, a condição feminina e a questão cultural como pano de fundo. Apesar da evolução, há muito caminho a desbravar. Ao ler-te, caro amigo Manuel Veiga, vem-me à ideia a obra "Ernestina" de Rentes de Carvalho. Escreve sobre Trás-os-Montes, mais precisamente do concelho de Freixo de Espada à Cinta (1930-50). Li com imenso interesse pois até passa por Lagoaça.
Continuo a seguir o teu romance sem me perder dos personagens e da forma como evoluem no enredo.
Grande abraço e boa inspiração.
Caro Manuel Veiga
Muito satisfeita com o nascimento de Manuel Maria, o meu/nosso herói nesta história: Com duas mães e de pai incógnito. Adivinho-lhe um crescimento cuidado, mas com muitas interrogações quando começar a perceber o ambiente que o rodeia.
A Camilinha, coitada, com a experiência traumática da noite núpcias a persegui-la a vida toda. De tão sensível passa a "Machorra". Sabe, querido escritor, que eu não conhecia o significado desta palavra? Mas, saberei a seu tempo, tenho a certeza, o peso que ela, a palavra "Machorra", representará em todo o seu percurso.
E neste fantástico texto a representação da Mulher sob o jugo de outras vontades, em detrimento dos seus mais cálidos desejos e aspirações.
Um grande abraço, meu amigo.
Olinda
Sem tempo para reatar os fios da meada, bem que gostaria de tê-lo feito, o que posso dizer-lhe é que esta nova carta flui como um rio na nascente. Bela narrativa, ou melhor, vigorosa narrativa, meu caro Manuel!
Um abraço,
Farta e torrencial narrativa, abundante em descrições de um tempo mais ou menos pretérito mas que teima ainda, no presente, despontar ladrões no trono dito polido.
Vai em frente!
Abraço.
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