sexta-feira, novembro 01, 2019

A CARTA QUE NUNCA TE ESCREVEREI - Take 21


Uniu-se, pois, Camilinha, pelos sagrados laços do matrimónio, com o senhor da Casa Grande, Federico Amásio …, e, com tal casamento, assim Deus o permita, será fundada uma nova linhagem, com vantagens múltiplas para as duas nobres Casas, que alargarão a sua influência social e política e, no mesmo lance, será resgatado o prestígio abalado do visconde de Malafaya, roído pela sífilis e pelas dívidas, que isto de frequentar casinos e putas deixa sequelas graves e arruína famílias.

E que pode fazer uma frágil mulher, pouco mais que adolescente, que não seja obedecer aos desígnios de Deus e dos homens, pois que, mulher piedosa e fidalga, por bravio que seja o seu génio e bem outros os sonhos, deve aceitar, sem recalcitrações ou queixumes, os desígnios da Providência Divina e a vontade dos homens, sejam pais, irmãos ou maridos, pois que maior glória para mulher fidalga e filha extremosa, do que sacrificar vida e sonhos e jogar-se toda num casamento providencial com homem abastado e poderoso, un peu sauvage é verdade, um tanto rústico e violento, é certo, e com fama de maus costumes, sem a menor dúvida, mas se Paris vale uma missa, também a sua nobre família merece, se não uma missa, um casamento faustuoso, ao arrepio das águas, que permitirá afastar a litigância dos credores e a desonra e – Deus não o há-de permitir! – o opróbrio da miséria. Mais valeria, mil vezes, a morte!...

Assim, Dona Camila Simone de Bernardette e Malafaya, chegada à Casa Grande, de sul para norte, a assumir culpas e pecados, que não dela, mas de sua fidalga estirpe e, imbuída dos mais nobres propósitos, decidida a aceitar, sem júbilo ou mágoa, as escolhas que a vida lhe reservar e a casar com homem que mal conhece e lhe causa, não amor, mas repulsa e, consciente da sua nobre missão de mulher, predisposta a conceber filho barão, o qual, por força das coisas estalecidas e a vontade dos homens, será o rosto visível, herdeiro e depositário do património e dos fidalgos pergaminhos das duas Casas e, pour cause, afastar o opróbrio a Casa Malafaya e a honra perdida do senhor, seu ilustre Pai, que isto de frequentar putas e jogo arruína famílias e desonra os homens mais ilustres.

E, a seu lado, para seu conforto e amenizar o degredo e a solidão na Casa Grande e melhor poder suportar aquele casamento ao arrepio das águas, a Camilinha terá sempre consigo a amizade e a dedicação da crepitosa Violante, de rijas e abundantes carnes, ali chegada, àquelas terras, montada, presume-se, qual fogosa amazona, em poderosa azémola e, para seu proveito ou perdição – vá lá saber-se! – um tanto estouvada, coitada, mas julgue-a quem poder, pois as tentações são muitas e carne é fraca.

A festa do casamento foi de arromba. Passados meses ainda se comentava, por toda a região, o número de convidados e o dispêndio de reses abatidas e almudes de vinho bebidos, durante os três dias de festa, para a qual foram convidadas as autoridades civis e religiosas e, à devida distância, quer dizer, para bem longe dos salões, a população, criados e serviçais da Casa Grande, engalanada com garridas colchas e panos festivos e flores silvestres derramadas pelos caminhos e veredas por onde o cortejo nupcial haveria de passar.

Dos pantagruélicos banquetes poderá ainda hoje falar um certo Zé Ninguém, à Casa Grande chegado, por esses dias, sem ter onde cair morto e, logo ali nomeado Zé Canhoto, por quem, sendo amo e senhor, tem o poder de nomear, fazendo jus à sua crença natural, sua dele, zé-ninguém, que por hábito adquirido, ou entorse congénito, tem queda para usar preferencialmente a mão esquerda e que, sôfrego e famélico, em lugar da malga de caldo e dura côdea, lhe caiu, como sopa no mel, lauta ceia, com os restos do festim que, de travessa em travessa, andavam abandonados, pela cozinha, não tendo então passado despercebido ao ilustre titular da Casa Grande e noivo recém-casado, nem a voracidade, nem a compleição física, nem o tamanho das mãos que hão-de ir da Terra ao Céu na febril imaginação de uma criança, que há-de ser, no corpo desta narrativa que se diz literária, nem a queda para o uso da mão esquerda, que filava os nacos de carne numa fome insaciável e o zé-ninguém, erguido no esplendor da sua recente alcunha, o Canhoto, não ficou um dia, nem dois, mas toda a vida, pois com risco de sua própria vida e sua valentia, haveria de salvar seu senhor e amo, de tiro certeiro, na feira de Trancoso, e, tamanho o susto que, logo ali, lhe foi prometida e jurada, soldada certa e constituído meeiro da Casa Grande, numas terras longínquas e sem préstimo e que pela força de seus braços haveriam de ser produtivas e sustento da ranchada de filhos e da mulher que recebera como sua, por decisão de seu amo e senhor e vontade Deus e, agora, noutro tempo narrado desta escrita, que se diz literária, a mulher a atazaná-lo “és um banana, o teu amo abusa de ti e tu não és capaz de te impor” e a verdade é que, por vezes, é obrigado a dar-lhe razão e a reconhecer que a sua servidão e funesta dependência de Federico Amásio é bem mais lamentável que a mansidão de um burro de carga, pois seu amo e senhor o explora e o carrega, sem que, ele, explorado, ao menos, seja capaz de disparar um coice e, então, a remoer tais inquietantes pensamentos, o Zé Canhoto, que zé-ninguém já não era, decide atirar a carga ao chão e enfrentar seu amo para requerer o que lhe era devido em soldadas nunca pagas e prometidas, quando num ajuste de contas, na Feira de Trancoso, onde apenas os dois, amo e criado, à força de varapau, correram com uma seita de ciganos, não sem que, antes, à traição, um deles tenha disparado arma de fogo e, se não fora a agilidade e destreza, com que Deus o dotara, a ele um zé-ninguém, funesta teria sido aquela hora para o Federico Amásio, que seria, então, estendido por terra, em estertor de morte, como um javali abatido.

Estava, pois, Zé Canhoto decidido a dar-se ao respeito e custasse o que custasse, a repor, se não a justiça, ao menos tentar endireitar a seu favor as suas ditas varas, pois, bem se sabe, que a Justiça dos ricos e poderosos é uma e, outra justiça, bem diferente, para os “zé-ninguém” deste mundo e nunca se viu um rico e poderoso abrir mão de seus privilégios e seu poder, sem que se tenha que lhe forçar a mão, isso a vida lhe tem ensinado, a ele um zé-ninguém, aquelas terra chegado, alguns anos atrás, em tempo de casamento e faustosa boda de seu amo e senhor Federico Amásio, com uma amável senhora, que, vinda de sul para norte, ao arrepio das águas e cuja vida sofrida em tal casamento, apesar de ser mulher distinta e fidalga é, por demais, exemplo das injustiças do Mundo, vítima do poder arbitrário dos homens, seja Pai ou Marido e que, para afastar do opróbrio a Casa Malafaya e a honra perdida de sua Família, a nobre e frágil senhora se sujeitou a enxovalhos e afrontas, que, pela sua condição, estaria longe de imaginar.

Deixemos, porém, as lucubrações do Zé Canhoto para a elas retornarmos, se tal o exigirem os caprichos da escrita e os humores do escrevente, mas anotemos, porém, a lenta metamorfose, qual larva em seu casulo, isto é, a trilha da sua lenta ascensão a estádio superior de consciência, sempre precário, aliás, e ao conhecimento dos logros e engodos com que se tecem as relações entre os homens, em que uns quantos, poucos, tudo podem e mandam e os restantes, muitos, que nada podem e para nada contam, sendo que aqueles que mandam, afirmam sempre assim ter sido e sempre assim continuará a ser, e os outros, que nada contam, para valerem alguma coisa, têm de libertar-se da canga onde estão amarrados e quererem, até ao limite da revolta, uma vida outra, mais justa e igualitária, para todos, mas isto é dizer de escrevente e contas de outro rosário, que para aqui não são chamadas, pois o que agora interessa, neste transe da escrita, que se quer literária, é deslindar as malhas que a vida tece e onde se enredam os enganos e desenganos de uma jovem e fidalga senhora, vinda de sul para norte, ao arrepio das águas, para contrair matrimónio com o senhor da Casa Grande, Federico Amásio.

O casamento foi de arromba, como ficou dito. O mesmo, porém, não poderá dizer-se da noite de núpcias. Fatigada da viagem e das emoções do dia, a festejada noiva recolheu cedo aos seus aposentos, em companhia da dedicada Violante. Federico Amásio, senhor da Casa Grande e, anfitrião da festa, ficou com os convidados, recebendo cumprimentos e elogios e, dando vazão ao seu primarismo atávico e à sua fama de folgazão, despachou o visconde de Malafya e sua luzidia comitiva e mais convidados e desceu ao terreiro, dançou, comeu e bebeu como um ogre, com criados e serviçais e, quando bem entendeu, por entre gargalhadas e piadas de mau gosto, anunciou, a cair de bêbado e a alimentar a galhofa, que se retirava por momentos, pois estava na hora de ir papar um petisco que estava a sua espera.

Os passos e a voz avinhada de Federico Amásio, a bolsar prosápias e vulgaridades, trôpego de bêbado, ecoavam pelos corredores, e a dócil Camilinha, a encolher-se toda, assustada como pomba tímida, ante o gavião e, trémula, encolheu-se ainda mais sobre o leito, abraçada à sua fiel Violante e, de repente, o temido momento, e a entrada abrupta e cambaleante do noivo nos aposentos nupciais, com uma garrafa de vinho dependurada da mão e a rir como um alarve, ordenou, com um gesto, a saída da crepitosa Violante, que num donaire inesperado se curvou a cumprimentar o noivo e, à passagem, o esboço de um sorriso, onde germinavam mal contidos propósitos, a que desbragado noivo, correspondeu com uma gargalhada alarve e uma sonora palmada do harmonioso traseiro da sorridente rapariga.

Trémula, no seu canto, a Camilinha, com o medo estampado no rosto e as lágrimas a aflorarem nos olhos, ainda balbuciou sou sua esposa e tem direito sobre o meu corpo, mas por alma de quem lá tem, meu marido, esta noite não! Mas Federico Amásio nem sequer a ouviu, cego pela bebedeira, mais do que pelo cio e girava em volta da presa, que procurava abraçar, anda cá, minha cachorrinha, que esta noite vais ver o que nunca viste, e esquivava-se lesta a Camilinha e esse jogo de gato e rato mais excitava o marido e a jovem noiva sem outra saída ainda que retraída e a medo consentiu que o marido se aproximasse de garrafa mão, da qual bebeu um longo trago e quis que também a mulher bebesse levando o gargalo da garrafa aos seus lábios e a jovem senhora, transida, fingiu o golo e o marido, com o polegar, limpou a gota nos lábios da mulher e quis beijá-la e hálito do homem e o arroto alarve e o odor fétido do vinho e o nojo e o asco a treparem e a mulher a subir em dignidade e a empurrar o homem para se libertar do peso do corpo e da prisão do amplexo e o homem bêbado a tombar no chão alcatifado e a erguer-se lívido e a cólera a subir no sangue e a raiva e o bofetão no rosto pálido e o insulto soez sua puta vais saber como te mordem e a violência do homem sem escrúpulos e bêbado, ajudado pelo diabo, e o estupro e o sangue e o grito amordaçado e o Federico Amásio, Senhor da Casa Grande na cama a ressonar como um suíno e a doce Camilinha a chorar lágrimas de sangue.

Nunca mais a Camilinha foi a mesma. Fechou-se. O marido servia-se dela, mas ela fechava-se, terra infértil, como seu ventre, Maria, incapaz de gerar filho e sem Espírito Santo que a guarde. Passou a ser a Machorra, assim conhecida por toda a parte e assim nomeada por quem tudo manda e tem o poder de nomear.

O Visconde de Malafaya morreu pouco depois, roído pela sífilis. E o seu património executado pelos credores. E sem gravidez que se visse, a Camilinha, cada vez mais só no Mundo, é agora a Machorra. Entregou-se a Deus e as obras da Igreja, que grandes serão seus pecados, a que Deus não concedeu o dom da fertilidade. Que mais poderá uma frágil mulher fazer?

O marido, Senhor da Casa Grande, há muito que não a procura. Dormem em se aposentos separados. Desde sempre sabe que a estouvada Violante, de crepitosas carnes, ocupa o seu lugar na cama do marido. Não se importa. Cada um é para o que nasce. E Deus, em sua infinita Sabedoria bem sabe o que faz.

E quando a estouvada (e incauta) Violante apareceu grávida, opôs-se, terminantemente, farei escândalo e todo o Mundo ficará a saber quem e o pai! a que seu marido expulsasse a pobre de Cristo da Casa Grande. Ela amaria aquela criança como se fora seu filho. E seria criado com o amor de duas mulheres.

Quando a criança nasceu, foi ela quem, como madrinha, levou o neófito à pia baptismal. E lhe chamou Manuel Maria. E com pai incógnito foi registado.

Manuel Veiga

5 comentários:

Jaime Portela disse...

Uma narrativa impressionante.
Só ao alcance dos bons romancistas.
Caro Veiga, um bom fim de semana.
Abraço.

Teresa Almeida disse...

É realmente surpreendente caminhar para trás na vida deste país em que sobressaem as desigualdades sociais, as condições de vida, a condição feminina e a questão cultural como pano de fundo. Apesar da evolução, há muito caminho a desbravar. Ao ler-te, caro amigo Manuel Veiga, vem-me à ideia a obra "Ernestina" de Rentes de Carvalho. Escreve sobre Trás-os-Montes, mais precisamente do concelho de Freixo de Espada à Cinta (1930-50). Li com imenso interesse pois até passa por Lagoaça.
Continuo a seguir o teu romance sem me perder dos personagens e da forma como evoluem no enredo.

Grande abraço e boa inspiração.

Olinda Melo disse...


Caro Manuel Veiga

Muito satisfeita com o nascimento de Manuel Maria, o meu/nosso herói nesta história: Com duas mães e de pai incógnito. Adivinho-lhe um crescimento cuidado, mas com muitas interrogações quando começar a perceber o ambiente que o rodeia.

A Camilinha, coitada, com a experiência traumática da noite núpcias a persegui-la a vida toda. De tão sensível passa a "Machorra". Sabe, querido escritor, que eu não conhecia o significado desta palavra? Mas, saberei a seu tempo, tenho a certeza, o peso que ela, a palavra "Machorra", representará em todo o seu percurso.

E neste fantástico texto a representação da Mulher sob o jugo de outras vontades, em detrimento dos seus mais cálidos desejos e aspirações.

Um grande abraço, meu amigo.

Olinda

José Carlos Sant Anna disse...

Sem tempo para reatar os fios da meada, bem que gostaria de tê-lo feito, o que posso dizer-lhe é que esta nova carta flui como um rio na nascente. Bela narrativa, ou melhor, vigorosa narrativa, meu caro Manuel!
Um abraço,

Agostinho disse...

Farta e torrencial narrativa, abundante em descrições de um tempo mais ou menos pretérito mas que teima ainda, no presente, despontar ladrões no trono dito polido.
Vai em frente!
Abraço.

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