domingo, janeiro 05, 2020

A CARTA QUE NUNCA TE ESCREVEREI - Take 22

Neste ofício de narrar, o escrevente, tal como arquiteto em seus desenhos, tropeça, por vezes, num muro branco de (im)possibilidades e, nessa encruzilhada se detém, suspenso, numa escuta de caçador furtivo, disponível para o lampejo criador, gesto, desenho ou palavras, que, do magma da criação emergem, com urgências várias, aptas ou não a desatar as demiúrgicas obscuridades e, no que à narrativa diz respeito, na permanente abertura às palavras, matéria ígnea em que se molda o perfil dos personagens e, em sua singularidade, se alimenta a narrativa e a emancipa do mundo obscuro das formas para se despenhar, como cintilação, no barro existencial do Mundo, enquanto literatura.

Assim, o escrevente, neste balancear, a tatear o esboço e o ritmo e, por entre tentativas e rasuras, a procurar  a consistência da personagem Manuel Maria, jovem arquitecto, distante ainda, neste tempo da narrativa, das anunciadas incursões literárias, a debater-se, no entanto, em lances decisivos como herói desta trama e que, em tempo outro, o sabemos sentado, com José Augusto Esquerdino, Presidente da Comissão Administrativa de um grande Município da Área Metropolitana de Lisboa, num jeep camarário, em trânsito pelo Concelho, cada um, Presidente e jovem arquitecto, em seu respectivo itinerário preocupações e lucubrações, José Augusto Esquerdino, assoberbado com milhentos afazeres e tarefas, em permanente luta contra o tempo, dando sequência a uma fogosa enumeração de obras e projectos ali uma escola, além uma creche, acolá um centro da 3ª Idade, mais além um polidesportivo, um parque, uma estrada, um edifício histórico a necessitar recuperação, ali o saneamento, acolá a electricidade e fornecimento de água, mais além uma colectividade centenária, uma biblioteca ou uma banda de música e o jovem arquitecto, Manuel Maria, qual náufrago, a vogar no torrencial entusiasmo do Presidente e dividido, porém, entre a urgência das palavras do companheiro e, por outro lado, aquelas largas mãos, como fetiche, fincadas no volante do jeep, tão grandes, como apenas outras vistas, e que, irremediavelmente, o subjugavam e projectavam para outro espaço e outras distâncias, cruzamento de destinos, algures no norte do País, na margem esquerda do rio Douro e para um tempo de memória distante, mas tão vivo como um luzeiro no deserto, a iluminar, entre a certeza e a dúvida, o esplendor da miragem. E, tal foi a veemência desse tumulto interior, a povoar-lhe o cérebro febril que o tempo constituía, agora, no interior do jeep, uma espécie de mantra, a abrir-se no entendimento dos diversos acasos, que, na vida de ambos, Presidente e jovem arquitecto, se cruzavam.

E, no mergulho da memória, que o arrastou, com a força de um tornado, Manuel Maria desprende-se, então, do discurso de José Augusto Esquerdino e, nesse hiato, se calaram, ainda que provisoriamente, os cálidos projectos de uma arquitectura para o Povo, devorados por uma espécie assombração, nascida das longas mãos do companheiro, sobre o volante da viatura, que galgou as distâncias e, nessa alucinação, viu-se menino, não mais de cinco anos, entre duas mulheres, qual delas a mãe, se ambas como filho o amavam, cada uma, segurando, cálidas, sua mão de criança, uma de cada lado, a saírem da Igreja, depois da missa dominical e, cá fora, no adro, um burburinho de imprecações e rezas, mulheres embiocadas, balbuciando jaculatórias ou maldições, sabe-se lá o que a raiva de uma mulher sofrida, perante vilões e vítimas, pode trazer aos lábios, ou calar no peito, se veneno ou piedade e os homens, de todas as idades, trabalhadores à jorna ou caseiros, todos em fila, de chapéus na mão, cabisbaixos, numa saudação surda, quebrados no seu brio de homens, submissos e obedientes, pois bem se sabe quem tudo tem, tudo pode e, quem nada tem, nada vale e que, por aquelas terras, celebrizadas Terras do Demo, não por um qualquer escrevente, mas pela pena de um grande escritor, naquelas terras, dizia-se, nem uma folha nas árvores bulia, sem a autorização do Senhor da Casa Grande, Federico Amásio Jacinto Silvestre Campelo do Rego, que ali estava, impante de poder e soberba, a mostrar quem manda e não seria um borra botas, um qualquer  Zé Ninguém aquelas terras chegado, sabe-se lá por que águas ou por que ventos movido, que iria levantar a garimpa e a insurgir-se sobre o que pagava ou não pagava como tributo das terras que cultivava, onde já se viu o atrevimento? e logo aquele Zé Ninguém, a quem dera guarida e fizera dele seu guarda costas e lhe dera nome e mulher e baptizara os filhos e, com a bênção da Santa Igreja e por inspiração do Divino Espírito Santo, lhe concedera o vistoso apelido de Esquerdino, a engalanar a escassez do nome e a limpar o estigma da alcunha de Canhoto, pois que, sem o privilégio de um nome e um apelido que o possa nomear e distinguir, esse alma do diabo seria apenas um pária sem ter onde cair morto, ignorado, portanto, sem registo que o reconheça como homem, e vem, agora, esta besta quadrada a morder a mão do dono, qual cão danado, sem açaime, e a alanzoar dividas de soldadas não pagas, como se a Casa Grande fosse baldio, sem rei, nem roque e não fosse ele, Federico Amásio Jacinto Silvestre Campelo do Rego, a determinar  o que devido ou não é devido, o que é justo ou injusto e a estimar o que cada um merece, seja zé ninguém, ou pilha galinhas, seja meeiro ou caseiro, mal sabe aquele piolhoso com quem está metido, os cães abatem-se com um tiro e o tinhoso do Zé Canhoto, já que os tempos não permitem dar-lhe um tiro de caçadeira,  vai pagar com língua de palmo a afronta, ele e a canzoada dos filhos, mais a puta da mulher, pois ninguém lhe tira da cabeça que a afronta é obra daquela cabra, pois não seria o frouxo do Canhoto a atrever-se, se não tivesse sido empurrado.

No olho da rua deviam estar todos eles, escumalha mal-agradecida, o cornudo do Canhoto, a puta da mulher e a ninhada de cachorros, que se fodessem, que morressem gelados debaixo de um castanheiro, era essa a sua vontade e só não estão todos ao léu, a viver por debaixo das estrelas, porque a Machorra, numa aliança contranatura com o cabrão e a sua ninhada, fez  um chinfrim dos diabos, uma escandaleira, aquela cabra mais a mãe do zorro, umas desvergonhadas, onde já se viu, patroa e criada a dormirem juntas, sempre uma nos passos da outra, sempre a morderem pela calada e a procurarem levar a água ao seu moinho, com suas manhas, puta que as pariu que mereciam ser corridas a pontapé com o Zé Canhoto e a sua trupe de maltrapilhos, cambada ratos e um homem vê-se, assim, rodeado de traições por todo lado, sabe-se lá se até na sua própria cama e a Machorra a gritar histérica e a ameaçar que faria escândalo, que era uma vergonha, uma questão de honra que nunca um Malafaya deixou de pagar um dívida de um tostão que fosse, que iria ao Governo Civil, que iria ao Bispo e, se fosse necessário, iria a Lisboa e toda a gente ficaria a saber que espécie de homem é o Senhor da Casa Grande, um bandalho, um homem sem carácter e sem vergonha que toda a gente teme e ninguém respeita, mas não ela, uma Malafaya, que a ninguém se verga e, por seu mal e seus pecados, nem sequer ao marido, por quem perdeu todo o respeito devido à sua condição. Enfim, rol infindável de impropérios de mulher de cabeça perdida, que não respeita ninguém, nem se dá ao respeito, a precisar de freio que a contenha. Que outras ignomínias lhe havia perdoado, mas não aquela lhe perdoaria!...

Havia, pois, que levar a sério as ameaças. A Machorra, quando as coisas azedavam, era levada dos diabos e os Malafayas, longe, porém, do poder de velhos tempos, detinham ainda prestígio que bastasse para arruinar a carreira política de qualquer um que não colhesse suas graças. Havia, por isso, que calar os rumores, antes que o caldo se entornasse e que acautelar o lugar de deputado da Nação, que lhe estava destinado pelo seu zelo e aguerrida militância nas hostes da Legião Portuguesa.

Que ficasse, porém, bem claro. Nem o filho da puta do Canhoto, nem a histérica Machorra se ficariam a rir. Estava disposto a readmitir aquele cabrão e a calar as más línguas, mas não esqueceria a afronta e, do caso, faria exemplo para todos os que ousassem os passos mal medidos do Zé Canhoto e do seu atrevimento. 

E ali estava, portanto, o Zé Canhoto, um zé ninguém aquelas terras chegado, vindo de norte para sul ao sabor das águas e da sorte, num tempo outro, a bater à porta da Casa Grande, a quem deram guarida e dele fizeram guarda costas e salvou a vida de seu amo e lhe deram nome e mulher e lhe baptizaram os filhos e lhe prometeram soldada e soldada não pagaram, ali estava, pois um zé ninguém, rodeado de mulher e seus cinco filhos, que eram a única riqueza que Deus lhe dera, ali estavam todos, homem, mulher e filhos, descalços, andrajosos, dobrados, vergados, à saída da Igreja, depois da missa dominical, para que todos vissem e constasse, as mulheres embiocadas a rezarem jaculatórias e engolindo imprecações e os homens de chapéu na mão,  humilhados e servis, de olhos no chão, a murmurarem uma saudação que Deus o guarde, patrão!... pois bem sabe que quem tudo tem tudo pode, e as palavras da mulher a martelarem a cabeça do Zé Canhoto vê lá o que vais fazer, homem! o Federico Amásio não é flor que se cheire, ainda acabas por meter em sarilhos maiores, ali estava, pois, um zé ninguém, preso por ter cão e preso não ter cão, vá lá entender-se as mulheres, sempre a mudarem de opinião, como a mãe de seus filhos, conhecida apenas como a mulher do Zé Canhoto, tanto a atazaná-lo és um banana nas mãos do Federico Amásio, como a procurar retê-lo o que vais tu fazer, homem, ainda acabas por meter em sarilho maior, ali estava, portanto, o zé ninguém, que nem nome trazia, tão ninguém que era, quando aquela terra foi chegado, rodeado de mulher e filhos, que eram a única riqueza, ali estava, pois, com sua família a pedirem perdão, mas a pedirem perdão de quê, meu Deus! se tudo o que se pretendia era o pagamento do que era devido e cumprimento da palavra, que entre homens honrados é sagrada.

E ali estava a voz do poder e de sua infame prepotência, na gargalhada boçal e imunda do Senhor da Casa Grande, Federico Amásio Jacinto Silvestre Campelo do Rego, de joelhos, Zé Canhoto, que o perdão se pede de joelhos!  E ali estava uma criança, não mais de cinco anos, entre duas mulheres que o amavam, a misturar seu choro às lágrimas de outras crianças e ali estava um homem de joelhos perante outro homem e umas grandes mãos, largas e enormes mãos de trabalho, tão enormes mãos que vão da terra aos Céus a pedirem perdão, a pedirem perdão de quê, meu Deus! e um homem ajoelhado perante outro homem e ali estavam as duas mulheres, que o amavam, como filho de ambas fora, a tapar-lhe o rosto para lhe evitar a ignominia e ali estava o rosto da consternação de homens e mulheres, depois da missa dominical, a saírem da Igreja, quebrados e impotentes, pois, bem se sabe, manda quem pode e ali estava, sem o saber ainda, o gesto redentor nas lágrimas de revolta e suprema raiva de uma outra criança, descalça e andrajosa, mal chegada a adolescência, que negou ajoelhar, na vergonha do pai e, na insuportável dor, virou costas e correu montes e vales, dias e noites, meses e anos para nunca mais voltar e tudo abandonou, a terra madrasta em que nasceu, o  amor da mãe e a vergonha do pai, de quem apenas ostenta as longas mãos de trabalho, tão longas mãos que ainda vão da Terra ao Céu e ainda hoje corre, noutros homens e outros lugares, sem nunca esmorecer e correrá sempre a ocorrer, com suas longas mãos de trabalho, aonde houver uma injustiça a morder a consciência dos homens.

E ali estão os dois, agora, neste tempo de escrita, que se quer literária, testemunhas privilegiadas dos acontecimentos atrás narrados, José Augusto Esquerdino, Presidente da Comissão Administrativa de um grande município da Área Metropolitana de Lisboa e Manuel Maria, novel arquitecto, entusiasta de uma Arquitectura para o Povo, no interior da mesma viatura de trabalho,  em visita pelo concelho, irmanados no mesmo projecto e na mesma luta contra todas as prepotências e injustiças.

Manuel Veiga
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A amiga Olinda Melo, blog Xaile de Seda, distinguiu o livro "Do Amor e da Guerra" e o seu autor com referências que me sensibilizam e muito agradeço.  

Quero salientar que, independentemente do apreço pelo livro. o texto da Olinda Melo é uma finíssima leitura e uma profunda e elegante análise que proporciona, em si mesmo, um grande prazer de leitura, pelo que recomendo vivamente.

M.V.

11 comentários:

Agostinho disse...

Boa noite. Para depois este naco.
Abraço.

Olinda Melo disse...

Caro Manuel Veiga

Reencontramos aqui Manuel Maria e José Augusto Esquerdino, depois de alguns capítulos, e começamos a descortinar as suas origens comuns e de quanto a vida tem de imprevisível ou talvez não, pois que o escrevente sabe transmitir-nos as voltas que ela dá. Duas crianças, no mesmo espaço, a sofrer as mesmas ignomínias e agora unidos em projectos para o bem comum. O mesmo é dizer que o mal que nos acontece na infância não determina o que seremos em adultos.

O vernáculo utilizado ajuda no retrato do Senhor da Casa Grande, homem sem escrúpulos, que tudo pode e tudo faz e exige, desrespeitoso e cruel em relação àqueles que dele dependem.

Tempos cruzados e sobrepostos que o autor desenleia na perfeição trazendo-nos o contacto com a realidade e a mentalidade dessa época.

Meu amigo, é um prazer, sempre, ler a sua escrita. E é gratificante acompanhar esta apaixonante trama.

Abraço

Olinda

Emília Pinto disse...

Sim, Manuel, vi no Xaile de seda, da minha Grande Amiga Olinda a homenagem que te faz ; muito merecida, caro Amigo. Já acompanhava este teu relato de uma época em que muito se explorava os desgraçados dos empregados e continuarei a fazê-lo com muito gosto. Estou curiosa para ver o destino destes dois, o Manuel Maria e o José Augusto Esquerdino e portando, estarei por cá de certeza. Tudo de bom, querido amigo, especialmente SAÚDE para ti e para os teus. Um abraço
Emília

Larissa Santos disse...

Voltamos com gratidão por todos vós, desejando um óptimo 2020. Para poder chegar a todos, hoje, numa breve visita. Bem hajam por não nos terem abandonado.

Hoje : A fé de voltar...

Bjos
Votos de uma óptima Terça - Feira.

Ailime disse...

Boa noite Manuel,
Um tratado de bela literatura o que acabei de ler.
Parabéns, Manuel.
Da parte da manhã acedi ao Blogue da Olinda e fiquei fascinada com a crítica literária que teceu ao seu livro.
O meu respeito e admiração para ambos.
Um beijinho.
Ailime

Teresa Almeida disse...

Épocas diferentes neste take onde personagens se cruzam e a arte literária do autor se evidencia. É, realmente, arrepiante o episódio à saída da missa, não se poupando o autor a vergastar com palavras, eivadas de ironia, o procedimento dos homens do poder e a vergonha dos injustiçados. A descrição quase nos permite ver a cena e a menina, símbolo da revolta, a correr pela vida fora.

Parabéns, amigo Manuel.

Abraço forte.

Tais Luso de Carvalho disse...

Excelente, vê-se o outro lado literário do poeta Manuel Veiga, com uma criação muito interessante e expressões bem diferentes (rss) das do poeta! E gostei muito.
Estive na nossa amiga Olinda, homenagem mais do que merecida, meu amigo!
Sempre aplausos!
beijo, boa semana!

Graça Pires disse...

A tua forma de narrar continua excelente. É mesmo um exercício de boa literatura onde cruzas personagens e acontecimentos.
Um beijo, meu Amigo.

Ana Freire disse...

Um enredo, admiravelmente bem arquitectado... e com as personagens principais, extraordinariamente bem delineadas... por entre circunstancias, rumores pudores e aparências... em que os meandros políticos, acrescentam, qual erva aromática, uma maior sabor a todos os ingredientes...
Um capitulo absolutamente notável, Manuel! Parabéns!...
Beijinho! E noutro dia, cá estarei apreciando outros posts que se me terão escapado, por aqui em Dezembro!...
Desejando a continuação de uma óptima semana!...
Ana

Jaime Portela disse...

A narrativa é magnífica, o que já não é novidade.
Também gostei muito da análise que a Olinda Melo fez no seu Xaile de Seda.
Caro Veiga, um bom fim de semana.
Abraço.

José Carlos Sant Anna disse...

Pois, ainda visitarei o Xaile de Seda. Não vejo a hora de juntar as cartas e debruçar-me no conjunto. Já o fiz uma vez... Não há a menor possibilidade de não render-se à sua escrita...
Um grande abraço,

ESCULTOR O TEMPO

Escultor de paisagens o tempo. E estes rostos, onde me revejo. E as mãos, arados. E os punhos. Em luta erguidos…  S ons de fábrica...