O espaço do Salão de
Festas da Colectividade de Cultura e Recreio abarrotava. O ar era irrespirável.
A estridência das palavras e o calor abafado levavam ao limite do suportável aquela
fusão de gritos, que se diziam e desdiziam, num tropel de emoções roucas, mais inflamadas
ainda com a chegada do Presidente e do jovem arquitecto Manuel Maria. Os mais
exaltados, à passagem de José Augusto Esquerdino, subiam o tom da voz, procurando
chamar a atenção, numa demonstração viva de que, tantas vezes, quanto mais se
grita, menos razão assiste. Outros procuravam o abraço e o gesto amistoso.
Sem se deter, porém, nem
nos cumprimentos, nem nos gritos, abrindo passagem, em passada larga, José
Augusto Esquerdino, arrastando com ele o jovem arquitecto, atravessou salão até
ao pequeno estrado, ao fundo, onde uma jovem mulher, espartilhada numas calças
de ganga, que lhe acentuavam a elegância e a forma das ancas e uma blusa larga
e garrida, que lhe davam um certo chic revolucionário, empoleirada
na cadeira, a esbracejar, procurando travar a anarquia e dar aparência de
assembleia aquele amontoado de gritos e imprecações.
Foi, pois, providencial
a chegada do Presidente, revestido da sua autoridade democrática e, com alívio,
a jovem sentiu que lhe era arrebatado da mão o microfone e José Augusto
Esquerdino, na sua voz bem timbrada, a impor-se, categórica, procurando dar à
reunião alguma dignidade.
Manuel Maria, a
regressar, paulatinamente, da sua peregrinação interior, que durante a curta
viagem para a reunião, a personalidade abrasiva de José Augusto Esquerdino
desencadeara, como um desatar de águas matriciais ou como revisitação das inscrições
que moldam o carácter e sinalizam o caminho dos homens, ambos, José Augusto e
Manuel Maria, na medida de cada um, bastardos da Casa Grande e do seu poder
arbitrário, ligados pela mesma feroz determinação da Natureza, em Terras do Demo e, agora, neste tempo
narrado, no fulgor da Revolução de 25 de Abril, também os dois do mesmo lado da
vida, ao serviço da população, num grande Município da Área Metropolitana de
Lisboa, Manuel Maria que ainda não se desfizera completamente desse mergulho da
memória e da veemência da assombração que o arrastou, com a força de um
tornado, depara-se com outro encontro predestinado, quase alucinação.
corporizada pela jovem Cléo, que irrompe, novamente, no palco da sua vida, como
explosão de uma flor primaveril.
Que fazia ali a Cléo?
Depois de, na Leitaria,
naquele tempo de cerejas e de todas as iniciações e canduras, em que uma certa Cléo, declinava, do alto de uma
cadeira, para uma “selecta Tertúlia” (Dona
Ludovina dixit) os seus poemas, em que, invariavelmente, “a alma se rebelava contra as torpezas do poder”
e, em seu chic intelectual, ante as urgências e impaciências eróticas de um jovem
estudante de arquitectura, declarava, que “não valia a
pena, que não prestava na cama”, proclamação assaz precipitada,
pois, como em devido tempo foi esclarecido, a frigidez da jovem Cléo, acabou
por claudicar, perante as investidas do aguerrido estudante de arquitectura,
que Manuel Maria então era. Enfim, sol de pouca dura, pois que, bem se sabe, o
que é bom acaba depressa e, para desconsolo do aguerrido galã, a jovem, sem
despedida ou aviso, desapareceu do seu radar. E nunca mais dela soube.
E, eis agora, que ali
estava a mesmíssima Cléo, espartilhada dentro de um par de jeans que lhe
arredondavam as formas e espicaçavam a elegância das pernas, a ver-se em palpos
de aranha para conter aquele mar de gritos e assobios! Que fazia a Cléo ali, a saudosa Cléo, a Cléo do rescaldo de todos
os Maios, a frequentar uma célebre Leitaria de Lisboa e a decorar, com
sua gentil presença, uma Selecta Tertúlia Literária, onde aliás pontificava
um “semiótico”, que lembrava um aranhiço, perante o qual a Cléo vivia em
permanente devoção, a mexer e remexer-lhe o café e a sacudir-lhe a caspa dos
ombros? Sabe-se lá que mais a Cléo não lhe sacudiria?
Interrogava-se, pois,
Manuel Maria. Porém com a atenção dividida entre a Cléo e as palavras bem
timbradas de José Augusto Esquerdino, a afirmar que o
direito à palavra é uma conquista da Revolução e, em tudo o que estiver na sua
mão, jamais tal direito será negado aos portugueses, nem que para defesa de tal
direito tenha, mais uma vez, que pagar com seu corpo na prisão, pois nunca o fascismo
o dobrou e, por isso, estejam certos, poderá toda a gente falar, aqueles que
assim o entenderem, mas um de cada vez, de forma a gente se poder entender,
pois a democracia não é anarquia e aquela é uma reunião democrática e que se alguém
tem o direito e o dever de elevar a voz, será ele, José Augusto, eleito em
grandes plenários da população Presidente da Comissão Administrativa, mas apenas
o fará se estritamente necessário para que todos se respeitem e saibam ouvir-se
uns aos outros e, por isso, pede para o ajudarem na tarefa de dirigir aquela
reunião, abstendo-se de considerações desnecessárias e indo ao essencial, pois
aquela reunião é a todos os títulos importante e que deseja exemplar, como
demostração do exercício do poder revolucionário e como participação do Povo,
com sua energia a criadora, na resolução dos seus problemas concretos; e, sobre
o motivo daquela reunião fazia questão de dizer, que estava ali na qualidade de
Presidente daquele grande município, para garantir que, unidos e todos juntos,
saberão desatar a armadilha, em que o capitalismo e a ganância de uns quantos
exploradores, meteram a população daquele e outros bairros do concelho. É assim
o capitalismo - remata José
Augusto Esquerdino, aplainando os aplausos – que explora
e suga, como um vampiro, tudo o que pode e deixa para trás um rastro de
destruição e morte ou um amontoado de problemas que depois o Estado, sob a direção
da classe operária terá de resolver.
As palavras de José
Augusto Esquerdino visavam as sequelas do processo de crescimento desordenado
da Área Metropolitana de Lisboa, no final da década de sessenta e início dos
anos setenta do século passado que, no final do regime fascista, a tímida abertura política do “marcelismo” propiciou
e que arrastou para o litoral do País e, em especial, para a região de Lisboa,
milhares de pessoas, provenientes do interior rural, o que alterou significativamente
a fisionomia da cidade, com a proliferação de habitações precárias, em toda a
volta da capital, desde margem norte à margem sul do Tejo, como um colar de
vergonha, que mais não era do que um amontoado pungente de zinco, cartão e
lixo, onde conviviam ratos e homens, em condições verdadeiramente degradantes.
Paralelamente, mais para o interior, em segunda coroa, desenvolvia-se um lucrativo
fenómeno de loteamento ilegal de terrenos e de “construções clandestinas”, à
margem da intervenção dos poderes públicos e das regras de planeamento
urbanístico, que criou grandes aglomerados de construções, sem as necessárias
infraestruturas, alojando largos milhares de pessoas, sem as mínimas condições de
dignidade.
Enfim, não busca o escrevente a minúcia do negócio, nem a anatomia da gigantesca
burla ou a descrição pormenorizada do imbróglio jurídico, em que foram capturados
poderes públicos e milhares de pessoas de boa fé, cujo único pecado terá sido a pulsão irresistível de desejarem ser proprietários e dançarem, acriticamente, a música em voga, a saber, o insidioso
modelo de felicidade doméstica – “pois, pois … J.
Pimenta! “. Não pretende, pois, o escrevente
que se afaste o leitor (se leitores houver) das passadas, por vezes, tímidas e
outras ousadas, do preclaro escritor Manuel
Maria, que afastadas as inquietações de saber como se escreve
um romance se compraz, neste tempo narrado, espicaçado pelo esplendor
um par de jeans, na revisitação de memórias risonhas e se interroga“ o que faz ali Cléo”?
Deve, porém, acrescentar
o escrevente que a Revolução apanhou este fenómeno loteamentos ilegais em cheio. E que José Augusto
Esquerdino, eleito Presidente da Comissão Administrativa de um grande Concelho ali
estava, voluntarioso e decidido, como sempre fora, valente e rijo, cuja vontade
férrea em momento algum o fascismo e seus esbirros conseguiram quebrar, para,
com a autoridade democrática em que estava investido, em conjunto com a
população, para encontrar soluções para tão ingente problema e tão ciclópicos trabalhos.
Manuel Veiga
5 comentários:
Uma primeira impressão inevitável... que saudades da multidão
Uma segunda... lembro-me sempre do espumante (delicioso) com o nome “terras do demo” cada vez que falas dessa região.
Terceira... a Cleo! :) quero saber mais dessa rapariga!
E todos querem saber um pouco mais da rapariga!
Mera curiosidade! Aguardo mesmo a conjunção final de fatos, tempos e personagens.
Como há sempre um interstício entre uma carta e outra, reboam os acordes da última. E as notas desta carta estão primorosas. Talvez a presença da Cléo tenha apimentado o naipe de cordas ou teria sido dos metais?
Saberemos adiante. Reafirmo. Um primor a narrativa.
Um forte abraço, caro amigo!
"José Augusto e Manuel Maria, na medida de cada um, bastardos da Casa Grande e do seu poder arbitrário, ligados pela mesma feroz determinação da Natureza, em Terras do Demo..."
Pois, gosto destes dois. Dantes mais familiarizada com o Manuel Maria, também agora o Esquerdino que começa a delinear-se nas suas intenções, apontando problemas nossos conhecidos. Com o Manuel Maria a trazê-lo ao nosso conhecimento e o escrevente a dar-lhe voz, través da sua narrativa, num discurso límpido e com bom ritmo.
O problema da Habitação aqui a pontuar este episódio: habitações precárias, amontoados de zinco, cartão e lixo, "onde conviviam ratos e homens", e num outro plano loteamentos ilegais, lucrativos para alguns, armadilhas para as pessoas de boa fé.
Vemos irromper neste cenário a Cléo, que, diga-se, vou começar a conhecer agora. Não tive oportunidade de ler os "takes" anteriores em que ela é apresentada.
Caro Manuel Veiga, foi um prazer a leitura de mais esta passagem da sua bela escrita, em "A Carta que nunca te escreverei", título que me traz muitas interrogações, que a seu tempo serão desvendadas, creio eu.
Abraço, meu amigo.
Olinda
Promete esta tua narrativa. Agora vamos andar todos a querer saber da Cléo "espartilhada dentro de um par de jeans que lhe arredondavam as formas"...
Uma boa semana, com muita saúde e cuidados, meu querido Amigo.
Um beijo.
A narrativa remete-nos para os contornos do pós 25 de Abril. Cada um viveu a seu modo e é espicaçante acompanhar o desenrolar dos passos de José Augusto Esquerdino que surpreende, agora, na luta pelo poder e pela mudança. José Maria vive, a seu lado, os ideais da juventude e Cleo encaixa, neste momento, como pitada de charme e desejo. É que o escrevente continua a saber agarrar o leitor em seu discurso escorreito e envolvente.
Forte abraço, caro amigo Manuel.
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