domingo, abril 05, 2020

A CARTA QUE NUNCA TE ESCREVEREI – Take 24



O espaço do Salão de Festas da Colectividade de Cultura e Recreio abarrotava. O ar era irrespirável. A estridência das palavras e o calor abafado levavam ao limite do suportável aquela fusão de gritos, que se diziam e desdiziam, num tropel de emoções roucas, mais inflamadas ainda com a chegada do Presidente e do jovem arquitecto Manuel Maria. Os mais exaltados, à passagem de José Augusto Esquerdino, subiam o tom da voz, procurando chamar a atenção, numa demonstração viva de que, tantas vezes, quanto mais se grita, menos razão assiste. Outros procuravam o abraço e o gesto amistoso.

Sem se deter, porém, nem nos cumprimentos, nem nos gritos, abrindo passagem, em passada larga, José Augusto Esquerdino, arrastando com ele o jovem arquitecto, atravessou salão até ao pequeno estrado, ao fundo, onde uma jovem mulher, espartilhada numas calças de ganga, que lhe acentuavam a elegância e a forma das ancas e uma blusa larga e garrida, que lhe davam um certo chic revolucionário, empoleirada na cadeira, a esbracejar, procurando travar a anarquia e dar aparência de assembleia aquele amontoado de gritos e imprecações.

Foi, pois, providencial a chegada do Presidente, revestido da sua autoridade democrática e, com alívio, a jovem sentiu que lhe era arrebatado da mão o microfone e José Augusto Esquerdino, na sua voz bem timbrada, a impor-se, categórica, procurando dar à reunião alguma dignidade.

Manuel Maria, a regressar, paulatinamente, da sua peregrinação interior, que durante a curta viagem para a reunião, a personalidade abrasiva de José Augusto Esquerdino desencadeara, como um desatar de águas matriciais ou como revisitação das inscrições que moldam o carácter e sinalizam o caminho dos homens, ambos, José Augusto e Manuel Maria, na medida de cada um, bastardos da Casa Grande e do seu poder arbitrário, ligados pela mesma feroz determinação da Natureza, em Terras do Demo e, agora, neste tempo narrado, no fulgor da Revolução de 25 de Abril, também os dois do mesmo lado da vida, ao serviço da população, num grande Município da Área Metropolitana de Lisboa, Manuel Maria que ainda não se desfizera completamente desse mergulho da memória e da veemência da assombração que o arrastou, com a força de um tornado, depara-se com outro encontro predestinado, quase alucinação. corporizada pela jovem Cléo, que irrompe, novamente, no palco da sua vida, como explosão de uma flor primaveril.

Que fazia ali a Cléo? Depois de, na Leitaria, naquele tempo de cerejas e de todas as iniciações e canduras, em que uma certa Cléo, declinava, do alto de uma cadeira, para uma “selecta Tertúlia” (Dona Ludovina dixit) os seus poemas, em que, invariavelmente, “a alma se rebelava contra as torpezas do poder” e, em seu chic intelectual, ante as urgências e impaciências eróticas de um jovem estudante de arquitectura, declarava, que “não valia a pena, que não prestava na cama”, proclamação assaz precipitada, pois, como em devido tempo foi esclarecido, a frigidez da jovem Cléo, acabou por claudicar, perante as investidas do aguerrido estudante de arquitectura, que Manuel Maria então era. Enfim, sol de pouca dura, pois que, bem se sabe, o que é bom acaba depressa e, para desconsolo do aguerrido galã, a jovem, sem despedida ou aviso, desapareceu do seu radar. E nunca mais dela soube.

E, eis agora, que ali estava a mesmíssima Cléo, espartilhada dentro de um par de jeans que lhe arredondavam as formas e espicaçavam a elegância das pernas, a ver-se em palpos de aranha para conter aquele mar de gritos e assobios! Que fazia a Cléo ali, a saudosa Cléo, a Cléo do rescaldo de todos os Maios, a frequentar uma célebre Leitaria de Lisboa e a decorar, com sua gentil presença, uma Selecta Tertúlia Literária, onde aliás pontificava um “semiótico”, que lembrava um aranhiço, perante o qual a Cléo vivia em permanente devoção, a mexer e remexer-lhe o café e a sacudir-lhe a caspa dos ombros? Sabe-se lá que mais a Cléo não lhe sacudiria?

Interrogava-se, pois, Manuel Maria. Porém com a atenção dividida entre a Cléo e as palavras bem timbradas de José Augusto Esquerdino, a afirmar que o direito à palavra é uma conquista da Revolução e, em tudo o que estiver na sua mão, jamais tal direito será negado aos portugueses, nem que para defesa de tal direito tenha, mais uma vez, que pagar com seu corpo na prisão, pois nunca o fascismo o dobrou e, por isso, estejam certos, poderá toda a gente falar, aqueles que assim o entenderem, mas um de cada vez, de forma a gente se poder entender, pois a democracia não é anarquia e aquela é uma reunião democrática e que se alguém tem o direito e o dever de elevar a voz, será ele, José Augusto, eleito em grandes plenários da população Presidente da Comissão Administrativa, mas apenas o fará se estritamente necessário para que todos se respeitem e saibam ouvir-se uns aos outros e, por isso, pede para o ajudarem na tarefa de dirigir aquela reunião, abstendo-se de considerações desnecessárias e indo ao essencial, pois aquela reunião é a todos os títulos importante e que deseja exemplar, como demostração do exercício do poder revolucionário e como participação do Povo, com sua energia a criadora, na resolução dos seus problemas concretos; e, sobre o motivo daquela reunião fazia questão de dizer, que estava ali na qualidade de Presidente daquele grande município, para garantir que, unidos e todos juntos, saberão desatar a armadilha, em que o capitalismo e a ganância de uns quantos exploradores, meteram a população daquele e outros bairros do concelho. É assim o capitalismo - remata José Augusto Esquerdino, aplainando os aplausos – que explora e suga, como um vampiro, tudo o que pode e deixa para trás um rastro de destruição e morte ou um amontoado de problemas que depois o Estado, sob a direção da classe operária terá de resolver.

As palavras de José Augusto Esquerdino visavam as sequelas do processo de crescimento desordenado da Área Metropolitana de Lisboa, no final da década de sessenta e início dos anos setenta do século passado que, no final do regime fascista, a tímida abertura política do “marcelismo” propiciou e que arrastou para o litoral do País e, em especial, para a região de Lisboa, milhares de pessoas, provenientes do interior rural, o que alterou significativamente a fisionomia da cidade, com a proliferação de habitações precárias, em toda a volta da capital, desde margem norte à margem sul do Tejo, como um colar de vergonha, que mais não era do que um amontoado pungente de zinco, cartão e lixo, onde conviviam ratos e homens, em condições verdadeiramente degradantes. Paralelamente, mais para o interior, em segunda coroa, desenvolvia-se um lucrativo fenómeno de loteamento ilegal de terrenos e de “construções clandestinas”, à margem da intervenção dos poderes públicos e das regras de planeamento urbanístico, que criou grandes aglomerados de construções, sem as necessárias infraestruturas, alojando largos milhares de pessoas, sem as mínimas condições de dignidade.

Enfim, não busca o escrevente a minúcia do negócio, nem a anatomia da gigantesca burla ou a descrição pormenorizada do imbróglio jurídico, em que foram capturados poderes públicos e milhares de pessoas de boa fé, cujo único pecado terá sido a pulsão irresistível de desejarem ser proprietários e dançarem, acriticamente, a música em voga, a saber, o insidioso modelo de felicidade doméstica – “pois, pois … J. Pimenta! “. Não pretende, pois, o escrevente que se afaste o leitor (se leitores houver) das passadas, por vezes, tímidas e outras ousadas, do preclaro escritor Manuel Maria, que afastadas as inquietações de saber como se escreve um romance se compraz, neste tempo narrado, espicaçado pelo esplendor um par de jeans, na revisitação de memórias risonhas e se interroga“ o que faz ali Cléo”?

Deve, porém, acrescentar o escrevente que a Revolução apanhou este fenómeno loteamentos ilegais em cheio. E que José Augusto Esquerdino, eleito Presidente da Comissão Administrativa de um grande Concelho ali estava, voluntarioso e decidido, como sempre fora, valente e rijo, cuja vontade férrea em momento algum o fascismo e seus esbirros conseguiram quebrar, para, com a autoridade democrática em que estava investido, em conjunto com a população, para encontrar soluções para tão ingente problema e tão ciclópicos trabalhos.

Manuel Veiga



5 comentários:

Boop disse...

Uma primeira impressão inevitável... que saudades da multidão
Uma segunda... lembro-me sempre do espumante (delicioso) com o nome “terras do demo” cada vez que falas dessa região.
Terceira... a Cleo! :) quero saber mais dessa rapariga!

José Carlos Sant Anna disse...

E todos querem saber um pouco mais da rapariga!
Mera curiosidade! Aguardo mesmo a conjunção final de fatos, tempos e personagens.
Como há sempre um interstício entre uma carta e outra, reboam os acordes da última. E as notas desta carta estão primorosas. Talvez a presença da Cléo tenha apimentado o naipe de cordas ou teria sido dos metais?
Saberemos adiante. Reafirmo. Um primor a narrativa.
Um forte abraço, caro amigo!

Olinda Melo disse...


"José Augusto e Manuel Maria, na medida de cada um, bastardos da Casa Grande e do seu poder arbitrário, ligados pela mesma feroz determinação da Natureza, em Terras do Demo..."

Pois, gosto destes dois. Dantes mais familiarizada com o Manuel Maria, também agora o Esquerdino que começa a delinear-se nas suas intenções, apontando problemas nossos conhecidos. Com o Manuel Maria a trazê-lo ao nosso conhecimento e o escrevente a dar-lhe voz, través da sua narrativa, num discurso límpido e com bom ritmo.

O problema da Habitação aqui a pontuar este episódio: habitações precárias, amontoados de zinco, cartão e lixo, "onde conviviam ratos e homens", e num outro plano loteamentos ilegais, lucrativos para alguns, armadilhas para as pessoas de boa fé.

Vemos irromper neste cenário a Cléo, que, diga-se, vou começar a conhecer agora. Não tive oportunidade de ler os "takes" anteriores em que ela é apresentada.

Caro Manuel Veiga, foi um prazer a leitura de mais esta passagem da sua bela escrita, em "A Carta que nunca te escreverei", título que me traz muitas interrogações, que a seu tempo serão desvendadas, creio eu.

Abraço, meu amigo.

Olinda

Graça Pires disse...

Promete esta tua narrativa. Agora vamos andar todos a querer saber da Cléo "espartilhada dentro de um par de jeans que lhe arredondavam as formas"...
Uma boa semana, com muita saúde e cuidados, meu querido Amigo.
Um beijo.

Teresa Almeida disse...

A narrativa remete-nos para os contornos do pós 25 de Abril. Cada um viveu a seu modo e é espicaçante acompanhar o desenrolar dos passos de José Augusto Esquerdino que surpreende, agora, na luta pelo poder e pela mudança. José Maria vive, a seu lado, os ideais da juventude e Cleo encaixa, neste momento, como pitada de charme e desejo. É que o escrevente continua a saber agarrar o leitor em seu discurso escorreito e envolvente.

Forte abraço, caro amigo Manuel.

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