segunda-feira, outubro 19, 2020

Os Cães Da Minha Vida...


Escrever poemas também cansa. Assim, enquanto o arquiteto-escritor Manuel Maria não resolve uns pequenos quiproquós da escrita, que têm impedido a sua celebrada verve de fazer avançar os episódios da Carta Que Nunca Te Escreverei, venho hoje falar-vos dos cães da minha vida.

Aliás, já em tempos publiquei, como os leitores/as mais atentos se lembrarão, um imaginário diálogo aqui sobre os cães que rosnam, mas não mordem e, de tal forma, lhe apanhei o jeito, que reincido  neste gosto de escrever sobre canídeos.

Devo dizer-vos que mantenho com os cães, a mesma equidistância que mantenho como os humanos – sem excessivas familiaridades, mas, quando é caso, com calorosa simpatia. Sem distinção de género, ou raça, ou temperamento, ou feitio, ou forma de estar na vida.

Tenho de reconhecer que os cães já se têm atirado às minhas canelas. Mas, também, algumas pessoas me têm espetado a faca nas costas. Coisas de nada! Evito uns e outros, mas não os temo.

Na minha adolescência tive um cão. Como todos os jovens têm um cão. Real ou imaginário, vá lá saber-se! O meu chamava-se Leão. Era um belo exemplar da sua espécie, cruzado da raça S. Bernardo, que mantinha farto pêlo branco, onde sobressaiam amplas manchas acastanhadas.

Era um cão de guarda. Com ele e um velho pastor, aprendi, então jovem, que um rebanho é bem mais do que uma “carneirada acéfala”.

O Leão morreu de velho. E o jovem fez-se homem. Mas em suas andanças, nunca mais teve, de seu, um cão. Porém, agora, quando o círculo se estreita, parece terem-se soltado, nos últimos tempos, as represas de uma ternura canina e os meus cães regressam, assim, pela porta grande.

Primeiro foi o aristocrático Tommy. As crianças, à viva força, desejavam um cão. Os pais não menos. E, sempre que assim acontece, com tantas vontades reunidas, não há volta a dar – procura-se, razoavelmente, satisfazer o desejo familiar. Sempre na mira do que houver de melhor.

Foi assim, com todos os diplomas e certificados, que entrou naquela casa um esplêndido Komondor , alto e elegante, como um príncipe húngaro, felpudo e de uma brancura imaculada, com umas belas crinas a cobrirem-lhe os minúsculos olhos, como cortina de protecção contra os reflexos da luz fria, que percorrem as montanhas geladas da Hungria, donde era originário.

Vi crescer o Tommy, entre afagos e afectos. Sociável e inteligente, sempre lhe admirei a pose de “afabilidade e pouca confiança”. Suspeito que sempre me considerou hóspede e não da família, apesar do convívio frequente e das minhas tentativas de o cativar.

Morreu novo. Com quatro ou cinco anos, não sei ao certo. Sem doença conhecida, nem acidente que o justifique. Porventura apenas saudades das montanhas geladas do centro da Europa, onde mergulha a aristocrática estirpe do Tommy – mas isto sou eu a dizer.

Por razões que não vêm ao caso, recentemente, estivemos, minha mulher e eu, durante umas semanas, a residir com os filhos, netos e o Xico no seu amplo duplex, no 11º andar de um prédio de apartamentos, com largas vistas sobre a cidade.

O Xico é um must de afecto naquele espaço. Trata-se de magnífico exemplar de cão Labrador , com pêlo curto e luzidio, de um negro azeviche, como carvão aceso, que chegou para substituir o Tommy, nas quotidianas dedicações caninas (e alegrias) de meus filhos e netos.

Embora velhos amigos, o Xico, desta vez, excedeu-se em atenções e, manifestamente, adotou-nos como avós.

O seu lugar de eleição, durante esses dias, foi sempre ficar deitado, aos pés de minha mulher, donde raramente saía, como se de atalaia a alguma necessidade ou emergência.

Comigo divertia-se a jogar com a ocupação do cadeirão em que gostava de me sentar. Sempre que eu me levantava, segundos que fosse, era certo e sabido que o Xico se instalava no cadeirão, punha a sua melhor cara de sorna, que é como que diz, focinho de sorna, fazendo-se desatendido e apenas desocupava o lugar, perante a ordem firme dos donos.

O Xico é, manifestamente, é um trabalhador (meu filho para o irritar chama-lhe Xicão rss). De manhã, conforme os respectivos horários, o Xico, corre, de quarto em quarto, a tirar literalmente da cama cada um dos “locatários”, sejam eles os adolescentes ou os adultos.

No entanto, nunca passou a porta do quarto dos avós, bem sabendo que estes deixaram, há muito tempo, de obedecer a horários.

O Xico tem um feitio folgazão. E gosta de sair à rua, pois claro. E detesta conflitos. Para os evitar, aliás, inventou uma técnica apuradíssima. Nos seus passeios e correrias, quando algum ser da sua espécie se aproxima, a ladrar, seja cão grande ou pequeno, o Xico pára, deita-se e encolhe-se o mais que pode, até ficar reduzido a um insignificante novelo, como quem diz deixa-te tretas, pá; não vou em brigas, o dia está lindo e tenho mais que fazer do que te aturar. 

De uma maneira geral, a técnica resulta, plenamente. O adversário, como percebendo o ridículo de seu desafio inútil, afasta-se cabisbaixo, vencido pela resistência passiva do Xico. Não é raro ficar amigo do adversário. E, então, é vê-los pular e saltar, como se nada fora 

E, quando, algum cão mais quezilento e zaragateiro,  a julgar-se dono da rua, não percebe mensagem  de paz, então o Xico levanta-se, desenrola a sua insignificância e, do mais fundo dos seus genes, solta o seu poderoso latir, como se fora pescador ainda, a sobrepor seu ladrar ao rugido ondas dos mares bravios da Terra Nova.

Os pimpões metem, então. o rabo entre as pernas, acagaçados, e desandam, a ladrar para outra freguesia, que como quem diz, a chatear outro …

São as estas as raras vezes em que se ouve o Xico ladrar.

Aqui, têm, pois, os cães da minha vida. Nem melhores, nem piores que tantos outros. Aliás, cães há muitos. Quase tantos como os chapéus do Vasco Santana. Ao que parece, há até quem os queira cães de loiça. Ou cães de pedra. Ou cães de barro, não sei bem.

Mas, quanto a esses, não é assunto meu. Ou melhor, de cães de pedra, revejo-me apenas naqueles que aparecem, por vezes, em pórticos e capitéis de catedrais e templos da Idade Média, simbolizando, ao que julgo, as tentações carnais e as penas do inferno.

Pois bem, nem sequer desses diabólicos cães tenho medo – as muitas missas (em latim) que papei na infância e adolescência, garantem-me, estou certo, lugar entre os justos.

Eis-me, portanto, apaziguado com meus cães! Assunto a que prometo não voltar. E, em vez cães – quem sabe? – talvez um dia, quando menos se espera, vos possa falar de outro dos meus afectos, ou seja, o Pêndulo do Meu Relógio!

Manuel Veiga




10 comentários:

Boop disse...

Só tive um cão em adulta, já depois dos 40.
Muito gostei de conhecer os teus cães!
:)

Maria João Brito de Sousa disse...

Forte abraço de quem nasceu entre pessoas, cães e gatos e conta morrer a escrever, junto de uma gata chamada Mistral!

Teresa Almeida disse...

Um texto a que tiro o chapéu, adereço que uso com gosto.
Os homens da minha família foram caçadores. E, assim, passaram muitos cães pela minha vida. Nunca me morderam. As pessoas sim.
E acrescento que uma das peças mais estimadas da nossa casa é um relógio de pêndulo.
Tudo isto para dizer que o tema deste texto me encantou e até me apetece trazer a lume memórias parecidas.

Um forte abraço de quem se identifica.
Teresa Almeida

São disse...

O texto é muito bom, mas isso não é nenhuma novidade.

O cão é lindo.

Tive uma dálmata que morreu de doença vai fazer nestes dias 16 anos, e tenho uma imensa saudade dela.

Abraço grande, meu amigo

Tais Luso de Carvalho disse...

Acabo de ler uma belíssima e sensível crônica!
Os primeiros cães, lindos e de nomes pomposos, gostei muito, mas o Xico me conquistou, pois cachorreiros que somos aqui em casa, (cachorreiro é aquele que adora cães), sabemos que os cães nada pedem, a não ser amor e comida. Sabemos que sua fidelidade e amor aos donos são sentimentos para sempre. Essa posição que Xico toma, de afastar-se de rosnadas e brigas com cachorros desconhecidos ou parentes implicantes (rss) significa para sua vida ter paz!
Pois não é que descubro aqui que eu e Xico temos algo em comum!? Ultimamente saio de fininho, não aceito desatinos ou provocações, realmente com isso conseguimos muita paz. Dê um abraço no Xico, diga a ele que ele ‘é o CARA!’ Que não mude, que ele é um sábio em qualidade de vida.
Tivemos 3 cães, quase morri quando os perdi: o Bimbo, a Nena e o Guga. A dor da perda é grande. Um dia contarei sobre eles.
Espero ler mais crônicas aqui, meu amigo Manuel!
Uma boa semana, com cuidados com a saúde.
Beijo, amigo.

Ana Tapadas disse...

Excelente! Deu-me para me afastar um pouco do mundo virtual, pois os meus dias são longos e sem «sorna» (quem me dera!). Alentejana, sempre tive um cão, mas não papei missas em Latim...a minha origem sefardita poupou-me a uma educação tradicional :)
Texto digno de ti, maravilhoso também na prosa. Não ofendam o cão com esse aumentativo :)
Bj

Emília Pinto disse...

Pois é Manuel, muito interessante a tua escrita sobre os cães da família e, prestando atenção à foto, vi que o vosso xico é igualzinho ao Pinga da minha neta Eduarda, de onze anos, pretinho, brincalhão e que também nunca late; só gosta de brincadeira. A minha filha e a minha netinha de 2 anos têm um pug, aquele cãozinho doce, de focinho feio e olhar que parece sempre triste, embora não o seja. Quanto a mim, só tive uma cadela Fila brasileiro, para guardar a casa e o meu marido teve um perdigueiro para a caça . Agora, nada de cães, pois vivemos em apartamento; só o pug, o chico Bento ( n sei se é com ch...-personagem da turma da Monica ) e o Pinga, o labrador. Gostei muito de conhecer a tua familia ( os cães têm que ser considerados da familia ) e desejo que estejam todos bem, principalmente os avós. Um beijinho, Manuel e fica bem! SAÚDE a todos
Emilia

Maria Rodrigues disse...

Adorei conhecer os cães da sua vida através da sua cativante narrativa.
Quando os meus filhos eram pequenos, bem me chatearam para ter um cão, mas eu nunca aceitei. Logo que a minha filha foi para a casa dela, arranjou um cão, o Cuki. À 4 anos atrás ela e a família foram viver para Macau e o Cuki acabou por vir viver comigo. É uma companhia maravilhosa, uma ternura, um amigo.
Também adorei o seu relógio de pêndulo.
Beijinhos

Ulisses de Carvalho disse...

os jovens têm cães, e os mais velhos, que se sabem parte da verdadeira natureza, também têm! eu tenho um cão que foi adotado pela minha família há mais de dezesseis anos, é das maiores alegrias da minha vida, e eu aprendo tanto com ele! cães, e todos os outros bichos, já nascem sabendo a que vieram, ao contrário de nós, humanos, "uns macacos pelados e pretensiosos", como disse Elke Maravilha, que vivem a caçar porquês para os seus instintos. os bichos não precisam de Filosofia, banho de loja, e nós? precisamos de tanto! Clarice Lispector tinha um cão chamado Ulisses, meu xará, ela dizia que sentia inveja do Ulisses porque ele "só ficava sendo"... e deve ser tão bom apenas ser. um abraço, Manuel.

José Carlos Sant Anna disse...

Nunca tive cães. Será que não? De meu, não me lembro; de minha mãe, sim. Das filhas, com a avó, sim. Não tinha coleira. O portão da casa da vó ficou aberto, fugiu. Morreu atropelado. Choro convulsivo de crianças e adultos. Tias e avós. Depois um cão de rua, leproso, se aboletou no meu fusca e deu trabalho para tirá-lo de lá. E a minha filha ficou traumatizada com o cão dentro do carro. O medo se apossou dela. Receava que o cão avançasse no pai... Não a chama para uma visita a sua casa se ele for guarnecida por cão... Ela não irá...
Daria uma crônica, como vês, mas não tão bonita quanto esta da sua lavra, meu caro amigo. Li, reli e treli porque é um texto requintado, com o seu DNA...
Também guardo na memória a história de Veludo... a triste história de Luís Guimarães, salvo engano...
Epa! me estendi demais...
Um abraço, caro amigo!

Orquestração de Hinos

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