sábado, novembro 13, 2021

COREOGRAFIA DOS SENTIDOS - PREFÁCIO - Domingos Lobo



Este novo livro de Manuel Veiga, abre com uma marca identitária do poeta e a afirmação do seu empenho criativo e do modo  e exercer esse mister: «A reinventar o léxico/E a desenhar o bailado/Desordem que arde/Sob o sol a pique». Não sei de melhor forma de um poeta dizer ao que vem: reinventar as palavras e a sua imanente desordem.

Sabemos que não vem – porque é do espaço solar e lírico das palavras que ele fala, como se fora um bailado –, tecer mágoas, carpir nostalgias, inventariar remorsos. Tarefas para outros, que não para este poeta solar, que transfigura as dores de corpo e alma sem gritos de amargura existencial, antes numa suavíssima viagem pela puerilidade dos sentidos.

Diz-nos, como se nos falasse ao ouvido, numa monódia com harpejos surreais,  de universos íntimos, fabulares, em torno dessa coisa enigmática, fragmentária, vulcânica e metafísica que é o poema: abrigo aberto a todas as configurações do Ser. Os sentidos planando nesse chão fértil, estremecendo aos ecos do «Dia claro – e a asa ao sol/E esta morrinha a tricotar/Distâncias.»  Um universo discursivo em que persiste a análise da essência da própria construção poética e a separação entre o acto e a fala, em que se conjugam as pulsões íntimas, emotivas e a responsabilidade ética no momento em que o poema acontece. Formas de interligação sensoriais e similitudes dinâmicas entre  um lirismo remoçado e a própria matéria do poema, no sentido pessoano: «O verso curvo/E a alma ausente.»

Mas também o tempo aporta a esta viagem, «A passagem/Das horas», faz caminho nesta modelar forma de enfrentar o encapelado mar das palavras, as que descem ao rés da vida, que assumem os lanhos, os vazios «E a memória/Em combustão», modo suplementar e fecundo de assumir essa «Metamorfose/Dos dias perecíveis», esse escoar do tempo entre os dedos, sem arroubos trágicos, antes com a sobriedade de quem encara a vida com lúcido desapego, sabendo (os poetas são demiurgos do efémero) que se vive a crédito e é necessário olhar de frente os declives da viagem, dado que o caminho se faz quando no zénite se abre o escuro e estão «Serenas as águas depois dos rios/Transbordarem.». Será já outra, quiçá mais estimulante, a viagem. E o poeta sabe-o.

Lembro aqui, talvez a despropósito, um dos grandes poemas de Raul de Carvalho, Serenidade és minha”, quando ele escreve, referindo-se à poesia de Álvaro de Campos, que «aquilo era demasiado meu/para ser dele»; ou, um outro verso, de Manuel António de Pina, quando assume que os poetas (e, certamente, todos os criadores), são «Ladrões que roubam a ladrões», e assim até aos começos dos tempos e da humana fala. E isto para dizer que a poética de Manuel Veiga, o seu «modo poético», mesmo transportando em seu bojo um singular cunho identitário, nos toca por ser “nossa”, vem de uma geração de assertos e rebeldias ideoestéticas, posteriores ao empenho social e à determinante influência que a poética neo-realista exerceu entre o período da Guerra Civil de Espanha e os anos 1960, do século XX. O «modo poético» de Manuel Veiga transporta ressonâncias sincrónicas com alguns autores da Geração de 60/70, nomeadamente Gastão Cruz, Pedro Tamen, António Franco Alexandre, Armando Silva Carvalho, que trouxeram para a poesia a envolvência estética das palavras sem escamotear o olhar assertivo sobre «o real quotidiano».  Lugar de encontros de uma fala e postura comuns.

Manuel Veiga, se já afirmava uma marca digital própria nos livros pretéritos, ganha neste Coreografia dos Sentidos, uma outra autonomia formal, um novo engenho, mais rarefeito e incisivo na construção metafórica, um novo olhar – ainda vibrante, mas já desencantado -, face às derivantes do amor, do tempo, da vida e do vivido. E, neste domínio, detectamos igualmente resquícios do verbo de Eugénio de Andrade («são inúteis as palavras»), e laivos da língua dorida e sôfrega de António Ramos Rosa («Não posso adiar o amor»). São já, em Manuel Veiga, «Os maduros bagos» que o poeta recolhe nesta metafísica trajectória entre o tecer das palavras, das vertentes afectivas «E o fluir leve/Dos nossos passos.»

Nesta viagem de interiores, de urgências, de redescoberta do Ser, das matrizes identitárias e oníricas, o poeta cresceu «A morder a orla/Do sonho», a palavra a transbordar de sentidos «E a proclamar-se/Desmedida».

Escreve-se para exercitar a memória, para, num último, fugaz apego, registarmos num verso as subjectivas incandescência que nos vêm à fala; o que nela, memória, persiste desse «Imenso lago que nos devolve o rosto»; mesmo quando esse rosto, ou rostos, devolvido pela incursão das palavras, seja já um rosto «transfigurado», já outro que não o que a memória resguardou dado que, como escreveu Bergson «nous a aurons plus jamais notre âme de se soire» . Daí ser necessário registar o instante e torná-lo absoluto, «Depois das casas morrerem...»

É pois, do registo sensitivo dos «instantes irrepetíveis», da transgressão/recolhimento/transfiguração da memória, que este livro encena, fazendo do poema a sua coreografia, dado que este conjunto de poemas são solos voláteis, quase sempre breves, preenchendo o vazio com um sopro de asa breve, abrindo a noite. Ou, melhor dizendo, desocultando o vazio como os passos de uma bailarina que se insinua no espaço, entre «sexo e seixo», «os potros sobre éguas», os cavalos que se rebolam «no declive dos seios», essa dança de cio, de clamores de pele e sangue, de ardências, nas formas eróticas do corpo, de um corpo que no vazio (ou nos lençóis?) se agita, o que o estio possui de lábios solares, que o poema, como forma superior de polarização dos sentidos, inebria, soletra e reflecte-

(...)

Manuel Veiga não escamoteia, viaja dentro e fora do seu universo íntimo, expondo-se sem tibieza nem formulários de ocultação. Na sua poética «Há um sopro em cada esquina/Uma promessa. Uma viola», seguramente «Uma luta anunciada», o firme desatar da «Ousadia sonhada», enfrentando os ardis da noite.

Percorremos o corpo textual destes poemas sentindo-lhes o frémito, a substância, a lava – esses lídimos alicerces da fala erguidos numa subtil depuração dos elementos e a lavrar astros, noites e solstícios, paixões e desencontros – sem temores: «Nem meu corpo é cacilheiro/.Porém, navio de corsário…/Parto. E passo – que nada renego./Nem dou trocado./Que se soltem pois os ventos./Que ventos não temo.»

Sabemos pois, que o poeta não teme os ventos, sequer o húmus deste canto.

As palavras que erguem este subtil modo de dizer o vulcânico dos corpos e dos seus declives, o espanto e a «argila líquida nas línguas», essa matéria que enforma e coreografa o corpo e os seus desejos, contudo sabendo-lhe os limites, não se confinando à descrição dos prazeres, do tempo e da transfiguração da memória, mesmo quando ela está presente e o acossa: «Ergo-me medianeiro de um tempo/Que se despede para/além das palavras/ E dos afectos. Respiração abstracta/Dos lugares ainda grávidos/E lembranças/ A borbulhar fervuras/Primevas.»

Um discurso poético remoçado, a um tempo extenso e ágil, fulgurante, a provar que o poeta se reconstrói nesses sortilégios transitivos do Ser e da Memória – ilidindo o Tempo e os modos de o desordenar. Muito caminho a percorrer, portanto.

Domingos Lobo

Edição MODOCROMIA

6 comentários:

" R y k @ r d o " disse...

Acredito que seja um livro fascinante de ler.
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Feliz fim-de-semana.
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Pensamentos e Devaneios Poéticos
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Pedro Luso de Carvalho disse...

Aí esta, nesta sua postagem, caro amigo Manuel, a apresentação do seu novo livro, Coreografia dos Sentidos, com o ótimo prefácio de Domingos Lobo.

Agora, deve esperar o seu autor, Manuel Veiga, pela boa acolhida de mais uma obra sua, que certamente virá. É o que almejamos, Poeta.

Acho que não precisaria dizer, amigo Manuel, que desejo que você tenha o merecido o merecido êxito nessa nova empreitada.

Um ótimo final de semana, amigo Manuel.

Tais Luso de Carvalho disse...

Meu amigo Manuel Veiga, enfim, mais um belo livro lançado, imagino a sua felicidade! Desejo-lhe muito sucesso, que esse livro lhe traga muitas alegrias! Belo o prefácio de Domingos Lobo!

"Manuel Veiga não escamoteia, viaja dentro e fora do seu universo íntimo, expondo-se sem tibieza nem formulários de ocultação. Na sua poética «Há um sopro em cada esquina/Uma promessa. Uma viola», seguramente «Uma luta anunciada», o firme desatar da «Ousadia sonhada», enfrentando os ardis da noite".

Um beijo, meu amigo, sucesso sempre na sua vida!
Uma ótima semana, cuide-se bastante.

Graça Pires disse...

Ainda continuo à espera que me digas como posso adquiri-lo.
Uma boa semana com muita saúde.
Um beijo.

Olinda Melo disse...


Boa tarde, Manuel Veiga

Magnifica esta recensão crítica de Domingos Lobo,
no Prefácio ao seu livro agora editado.

Conhecedor da obra do autor, ele percorre esta
"Coreografia dos Sentidos" com palavras que se
transformam, elas próprias, num bailado fluido
e, ao mesmo tempo, profundo. Faz-nos saber o que
aqui se passa e a forma como o Poeta se expõe.

E assim:
"Percorremos o corpo textual destes poemas sentindo-lhes o frémito, a substância, a lava – esses lídimos alicerces da fala erguidos numa subtil depuração dos elementos e a lavrar astros, noites e solstícios, paixões e desencontros – sem temores: «Nem meu corpo é cacilheiro/.Porém, navio de corsário…/Parto. E passo – que nada renego./Nem dou trocado./Que se soltem pois os ventos./Que ventos não temo.»"

Parabéns, Domingos Lobo.
Parabéns, meu amigo Poeta.

Grande abraço.
Olinda

Teresa Almeida disse...

No título deste livro adivinha-se o caminho, a ousadia e a efervescência da palavra. E, de facto, Domingos Lobo fez-se eco do pulsar poético de Manuel Veiga.

Partilho a tua alegria ao publicares mais um livro, caro amigo. Será um privilégio Tê-lo comigo.

Abraço arrochado.

CELEBRAÇÃO DO TRABALHO

  Ao centro a mesa alva sonho de linho distendido como altar ou cobertura imaculada sobre a pedra e a refeição parca… e copo com...