Este novo livro de Manuel Veiga, abre com uma marca identitária do poeta e a afirmação do seu empenho criativo e do modo e exercer esse mister: «A reinventar o léxico/E a desenhar o bailado/Desordem que arde/Sob o sol a pique». Não sei de melhor forma de um poeta dizer ao que vem: reinventar as palavras e a sua imanente desordem.
Sabemos que não vem – porque é do
espaço solar e lírico das palavras que ele fala, como se fora um bailado –,
tecer mágoas, carpir nostalgias, inventariar remorsos. Tarefas para outros, que
não para este poeta solar, que transfigura as dores de corpo e alma sem gritos
de amargura existencial, antes numa suavíssima viagem pela puerilidade dos
sentidos.
Diz-nos, como se nos falasse ao
ouvido, numa monódia com harpejos surreais,
de universos íntimos, fabulares, em torno dessa coisa enigmática,
fragmentária, vulcânica e metafísica que é o poema: abrigo aberto a todas as
configurações do Ser. Os sentidos planando nesse chão fértil, estremecendo aos
ecos do «Dia claro – e a asa ao sol/E esta morrinha a
tricotar/Distâncias.» Um universo
discursivo em que persiste a análise da essência da própria construção poética
e a separação entre o acto e a fala, em que se conjugam as pulsões íntimas,
emotivas e a responsabilidade ética no momento em que o poema acontece. Formas
de interligação sensoriais e similitudes dinâmicas entre um lirismo remoçado e a própria matéria do
poema, no sentido pessoano: «O verso curvo/E a alma ausente.»
Mas também o tempo aporta a esta
viagem, «A passagem/Das horas», faz caminho nesta modelar forma de enfrentar o
encapelado mar das palavras, as que descem ao rés da vida, que assumem os lanhos,
os vazios «E a memória/Em combustão», modo suplementar e fecundo de assumir
essa «Metamorfose/Dos dias perecíveis», esse escoar do tempo entre os dedos,
sem arroubos trágicos, antes com a sobriedade de quem encara a vida com lúcido
desapego, sabendo (os poetas são demiurgos do efémero) que se vive a crédito e
é necessário olhar de frente os declives da viagem, dado que o caminho se faz
quando no zénite se abre o escuro e estão «Serenas as águas depois dos
rios/Transbordarem.». Será já outra, quiçá mais estimulante, a viagem. E o
poeta sabe-o.
Lembro aqui, talvez a
despropósito, um dos grandes poemas de Raul de Carvalho, Serenidade és minha”,
quando ele escreve, referindo-se à poesia de Álvaro de Campos, que «aquilo era
demasiado meu/para ser dele»; ou, um outro verso, de Manuel António de Pina,
quando assume que os poetas (e, certamente, todos os criadores), são «Ladrões
que roubam a ladrões», e assim até aos começos dos tempos e da humana fala. E
isto para dizer que a poética de Manuel Veiga, o seu «modo poético», mesmo
transportando em seu bojo um singular cunho identitário, nos toca por ser
“nossa”, vem de uma geração de assertos e rebeldias ideoestéticas, posteriores
ao empenho social e à determinante influência que a poética neo-realista
exerceu entre o período da Guerra Civil de Espanha e os anos 1960, do século
XX. O «modo poético» de Manuel Veiga transporta ressonâncias sincrónicas com
alguns autores da Geração de 60/70, nomeadamente Gastão Cruz, Pedro Tamen,
António Franco Alexandre, Armando Silva Carvalho, que trouxeram para a poesia a
envolvência estética das palavras sem escamotear o olhar assertivo sobre «o
real quotidiano». Lugar de encontros de
uma fala e postura comuns.
Manuel Veiga, se já afirmava uma
marca digital própria nos livros pretéritos, ganha neste Coreografia dos
Sentidos, uma outra autonomia formal, um novo engenho, mais rarefeito e
incisivo na construção metafórica, um novo olhar – ainda vibrante, mas já
desencantado -, face às derivantes do amor, do tempo, da vida e do vivido. E,
neste domínio, detectamos igualmente resquícios do verbo de Eugénio de Andrade
(«são inúteis as palavras»), e laivos da língua dorida e sôfrega de António
Ramos Rosa («Não posso adiar o amor»). São já, em Manuel Veiga, «Os maduros
bagos» que o poeta recolhe nesta metafísica trajectória entre o tecer das
palavras, das vertentes afectivas «E o fluir leve/Dos nossos passos.»
Nesta viagem de interiores, de
urgências, de redescoberta do Ser, das matrizes identitárias e oníricas, o
poeta cresceu «A morder a orla/Do sonho», a palavra a transbordar de sentidos
«E a proclamar-se/Desmedida».
Escreve-se para exercitar a
memória, para, num último, fugaz apego, registarmos num verso as subjectivas
incandescência que nos vêm à fala; o que nela, memória, persiste desse «Imenso
lago que nos devolve o rosto»; mesmo quando esse rosto, ou rostos, devolvido
pela incursão das palavras, seja já um rosto «transfigurado», já outro que não
o que a memória resguardou dado que, como escreveu Bergson «nous a aurons plus
jamais notre âme de se soire» . Daí ser necessário registar o instante e
torná-lo absoluto, «Depois das casas morrerem...»
É pois, do registo sensitivo dos «instantes irrepetíveis», da transgressão/recolhimento/transfiguração da memória, que este livro encena, fazendo do poema a sua coreografia, dado que este conjunto de poemas são solos voláteis, quase sempre breves, preenchendo o vazio com um sopro de asa breve, abrindo a noite. Ou, melhor dizendo, desocultando o vazio como os passos de uma bailarina que se insinua no espaço, entre «sexo e seixo», «os potros sobre éguas», os cavalos que se rebolam «no declive dos seios», essa dança de cio, de clamores de pele e sangue, de ardências, nas formas eróticas do corpo, de um corpo que no vazio (ou nos lençóis?) se agita, o que o estio possui de lábios solares, que o poema, como forma superior de polarização dos sentidos, inebria, soletra e reflecte-
(...)
Manuel Veiga não escamoteia,
viaja dentro e fora do seu universo íntimo, expondo-se sem tibieza nem
formulários de ocultação. Na sua poética «Há um sopro em cada esquina/Uma
promessa. Uma viola», seguramente «Uma luta anunciada», o firme desatar da
«Ousadia sonhada», enfrentando os ardis da noite.
Percorremos o corpo textual
destes poemas sentindo-lhes o frémito, a substância, a lava – esses lídimos
alicerces da fala erguidos numa subtil depuração dos elementos e a lavrar
astros, noites e solstícios, paixões e desencontros – sem temores: «Nem meu
corpo é cacilheiro/.Porém, navio de corsário…/Parto. E passo – que nada
renego./Nem dou trocado./Que se soltem pois os ventos./Que ventos não temo.»
Sabemos pois, que o poeta não
teme os ventos, sequer o húmus deste canto.
As palavras que erguem este
subtil modo de dizer o vulcânico dos corpos e dos seus declives, o espanto e a
«argila líquida nas línguas», essa matéria que enforma e coreografa o corpo e
os seus desejos, contudo sabendo-lhe os limites, não se confinando à descrição
dos prazeres, do tempo e da transfiguração da memória, mesmo quando ela está
presente e o acossa: «Ergo-me medianeiro de um tempo/Que se despede para/além
das palavras/ E dos afectos. Respiração abstracta/Dos lugares ainda grávidos/E
lembranças/ A borbulhar fervuras/Primevas.»
Um discurso poético remoçado, a
um tempo extenso e ágil, fulgurante, a provar que o poeta se reconstrói nesses
sortilégios transitivos do Ser e da Memória – ilidindo o Tempo e os modos de o
desordenar. Muito caminho a percorrer, portanto.
Domingos Lobo
Edição MODOCROMIA
6 comentários:
Acredito que seja um livro fascinante de ler.
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Feliz fim-de-semana.
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Pensamentos e Devaneios Poéticos
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Aí esta, nesta sua postagem, caro amigo Manuel, a apresentação do seu novo livro, Coreografia dos Sentidos, com o ótimo prefácio de Domingos Lobo.
Agora, deve esperar o seu autor, Manuel Veiga, pela boa acolhida de mais uma obra sua, que certamente virá. É o que almejamos, Poeta.
Acho que não precisaria dizer, amigo Manuel, que desejo que você tenha o merecido o merecido êxito nessa nova empreitada.
Um ótimo final de semana, amigo Manuel.
Meu amigo Manuel Veiga, enfim, mais um belo livro lançado, imagino a sua felicidade! Desejo-lhe muito sucesso, que esse livro lhe traga muitas alegrias! Belo o prefácio de Domingos Lobo!
"Manuel Veiga não escamoteia, viaja dentro e fora do seu universo íntimo, expondo-se sem tibieza nem formulários de ocultação. Na sua poética «Há um sopro em cada esquina/Uma promessa. Uma viola», seguramente «Uma luta anunciada», o firme desatar da «Ousadia sonhada», enfrentando os ardis da noite".
Um beijo, meu amigo, sucesso sempre na sua vida!
Uma ótima semana, cuide-se bastante.
Ainda continuo à espera que me digas como posso adquiri-lo.
Uma boa semana com muita saúde.
Um beijo.
Boa tarde, Manuel Veiga
Magnifica esta recensão crítica de Domingos Lobo,
no Prefácio ao seu livro agora editado.
Conhecedor da obra do autor, ele percorre esta
"Coreografia dos Sentidos" com palavras que se
transformam, elas próprias, num bailado fluido
e, ao mesmo tempo, profundo. Faz-nos saber o que
aqui se passa e a forma como o Poeta se expõe.
E assim:
"Percorremos o corpo textual destes poemas sentindo-lhes o frémito, a substância, a lava – esses lídimos alicerces da fala erguidos numa subtil depuração dos elementos e a lavrar astros, noites e solstícios, paixões e desencontros – sem temores: «Nem meu corpo é cacilheiro/.Porém, navio de corsário…/Parto. E passo – que nada renego./Nem dou trocado./Que se soltem pois os ventos./Que ventos não temo.»"
Parabéns, Domingos Lobo.
Parabéns, meu amigo Poeta.
Grande abraço.
Olinda
No título deste livro adivinha-se o caminho, a ousadia e a efervescência da palavra. E, de facto, Domingos Lobo fez-se eco do pulsar poético de Manuel Veiga.
Partilho a tua alegria ao publicares mais um livro, caro amigo. Será um privilégio Tê-lo comigo.
Abraço arrochado.
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