terça-feira, maio 31, 2022

A CARTA QUE NUNCA TE ESCRVEREI 34


Manuel Maria, em dois passos rápidos, atravessou o adro, de cabeça erguida e olhar ausente, evitando cumprimentos e salamaleques e entrou, discretamente, na Igreja, pela porta lateral, com o deliberado propósito de passar despercebido, pois sabe Deus quanto lhe desagradava participar nas cerimónias fúnebres do Visconde, já que a sua presença, ali, no funeral, iria abrir feridas suas, mal saradas e levantar poeira adormecida.

Manuel Maria nascera na Casa Grande, em circunstâncias, um tanto estranhas, enfim, filho da crepitosa Violante, mas o nome do pai, que todo o mundo conhecia, era, no entanto,  tabu em toda a região e o povo na risota ia dizendo  que Manuel Maria era filho Espírito Santo, que na sua humanidade  não terá resistido aos encantos de Violante, ali chegada, vinda de Sul para norte, qual  peça do enxoval da Camilinha,  que mais que aia ou dama de companhia como irmã a consideravam que outra irmã não tivera.

Manuel Maria nascera pois na Casa Grande, onde viveu sob os cuidados de duas mulheres que o amavam, como de filho de ambas fosse, a Violante que o dera à luz e a Camilinha, que por razões muito dela, o adotara como filho amado e no nascimento e infância o protegeu e, na adolescência, o retirou da influência nefasta do ambiente da Casa Grande e o colocou, como aluno interno, em  Lisboa, numa instituição da Igreja, destinada a acolher crianças desvalidas, ou filhos de famílias ricas, que., naturalmente, por santas e nobres razões, desejavam os filhos rebeldes, o mais longe possível, educados com a mão rija, entregues aos bons ofícios da Santa Madre Igreja

E agora ali estava Manuel Maria, no funeral de Federico Amásio, Visconde de Malafaya e Senhor da Casa Grande e de outros vastos domínios por toda a região de Terras do Demo e carrasco da sua adolescência, e ele, Manuel Maria sem uma gota de rancor para aquele homem, agora amortalhado, de quem nunca recebera um afecto ou uma caricia, nem sequer pelo próprio nome o tratava, apenas aquela voz rouca e riso escarninho o interpelavam, como se fosse mais um cachorro da sua matilha da caça vem aqui zorro. Sentiu uma pequena náusea e estava decidido a sair da Igreja, tão lesto como entrara, quando sente a mão carinh de Violante e, num murmúrio, incita-o, anda, vem comigo, e tomando-lhe a mão e, por entre os fiéis, guiou-o até à urna, com os restos mortais do senhor da Casa Grande e visconde de Malafaya, com o rosto coberto com pano de linho escrupulosamente engomado. De cada lado da urna, depositada sobre um suporte de madeira entalhada, pintado de preto e debruado a oiro, ardiam, numa chama dolente dois círios da altura de um homem. Em redor do defunto, seis clérigos, devidamente paramentados, dispostos três de cada lado, entoavam, em latim, o cantochão de profundis e aspergindo água benta sobre o defunto e desfiando padre-nossos, replicados em coro Pai Nosso Que Estais no Céu.,, Manuel Maria e Violante, avançavam, lentamente, por entre a multidão de crentes, Violante à frente, com Manuel Maria pela mão, pedindo licença, forçando a passagem, aqui ou ali, até chegarem junto de Camilinha, totalmente vestida de negro, com um longo véu de renda. a cobrir-lhe o corpo.

A Camilinha abraçou Manuel Maria demoradamente, deixou-lhe uma carícia no rosto e puxou-o para lhe dizer em voz baixa que devia aproximar-se o mais possível da urna e ficar sozinho, à cabeceira do defunto. Manuel Maria interrogou com o olhar a Camilinha, sem alcançar  o sentido da proposta, mas Camilinha náo lhe deixou margem para se negar e, com voz firme insistiu vai , faz o que te digo, depois te  explicarei.

 

 Manuel Veiga

3 comentários:

Emília Pinto disse...

E aqui está mais um capitulo desta história que acompanho há muito tempo e que nos remete para épocas passadas onde casos como estes eram comuns, embora pouco falados; murmurava-se, aqui e ali em surdina, principalmente nas aldeias; os trabalhos eram mal pagos e ai se o senhor das terras desconfiasse sequer , lá se ia o pouco dinheiro que ganhavam " ao jornal " e a codea de pão que recebiam para merenda. Vivi sempre na aldeia até me casar e conheço as dificuldades daquela gente e os casos de mulheres que ficavam grávidas de " filhos de pais incógnitos " . Felizmente que hoje, nesse aspecto, as coisas melhoraram e, se há fikhos, tem de haver um pai e uma mãe. Manuel, cá fico à espera do próximo capitulo, pois estou muito surpree dida com a atitude da Camilinha e também muito curiosa. E enquanto espero deixo - te os meus votos de boa saúde para todos aí e casa e um abraço carinhoso
Emilia

Teresa Almeida disse...

Escreves de tal modo, que a necessidade de voltar é invencível.
Acompanho esta trama, deliciando-me em recortes criativos e literários.

Um grande abraço, amigo Manuel Veiga.

Olinda Melo disse...


Gostei de ler mais este "take", e de reencontrar
Manuel Maria, chegado precisamente na altura em
que acontecem as exéquias do Senhor da Casa Grande.

Desejo boa continuação e inspiração ao escrevente,
Manuel Veiga.

Saudações amigas.

Olinda

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