quinta-feira, setembro 22, 2022

A CARTA QUE NUNCA TE ESCECEREI - TAKE 32


Um pouco agitado, na sequência da azeda troca de palavras com o GNR e ansioso por chegar à Casa Grande e desembaraçar-se o melhor que pudesse das razões  da sua chamada urgente à Casa Grande e, depois, regressar imediatamente a Lisboa, para se colocar ao serviço da Revolução, onde melhor a pudesse servir, pois tamanha era a sua convicção revolucionária que, nem por momentos lhe passou pela cabeça que a agitação dos militares pudesse ter outra natureza e que não se resolvesse na Revolução Democrática, há tanto tempo esperada.

Em passo acelerado, atravessou a sala de espera e as bilheteiras e saiu da Estação dos Caminhos de Ferro, e dirigia-se para velho autocarro que, finalmente, o levaria à Casa Grande, quando se dá conta do reluzente Ford V8, e o velho Viriato, encaixado na mal ajustada libré de chauffeur, numa das mãos o boné, que retirara numa vénia, como está o menino, faça o favor de entrar, mantendo a porta aberta com a mão livre.

Manuel Maria pasmava! O automóvel estava ao serviço exclusivo da Federico Amásio, Senhor da Casa Grande, que aliás raras vezes usava, preferindo a volúpia de uma de boa desfilada a galope, num de cavalo “com sangue na guelra”, como era seu timbre montar. O vistoso automóvel era apenas um luxo, “sinal” de riqueza e ostentação de poder, que o dono da Casa Grande conhecia “arte” em todas as suas expressões. Tão excessiva magnanimidade colocou Manuel Maria de pé atrás, digamos assim,  e mesmo antes de perguntar pelas duas mulheres que o esperavam e que ambas amava como filho, interrogou com o olhar o condutor e. como se para si próprio falasse, que significa isto?...

Vamos, não há tempo a perder… respondeu o velho motorista; tenho ordens para o levar diretamente à Igreja…

- À Igreja? Mas que diabo vou eu fazer à Igreja? Manuel Maria, visivelmente indignado… Face à insistência muda, mas nem por isso menos eloquente, compreendeu Manuel Maria, que não tinha forma de se livrar do chauffeur e do luxoso automóvel.

Entrou, pois. o jovem para viatura um pouco intrigado e inquieto, pois bem sabia que Federico Amásio, Senhor da Casa Grande, tinha por ele, Manuel Maria, tanta afeição quanta um galgo tem por uma lebre. A que propósito, portanto, a distinção do luxuoso automóvel? – interrogava-se!..- ou que maquinação, naquela mente perversa?. cismava... Intrigado, embora Manuel Maria não dedicou, porém, mais que uns breves segundos à questão do automóvel e já que ali estava era ir em frente e despachar-se o mais rãpido possível das razões urgentes que o traziam à Casa Grande. A Revolução estava nas ruas de Lisboa e outras cidades e não seria o “mando” de Federico Amásio, nem o afecto das duas mulheres, que o amavam, como se ambas, sua mãe de Manuel Maria fossem, Ninguém o irua reter…

O velho chauffeur mal arrancou com o automóvel, começou a despejar as notícias e acontecimentos trágicos dos últimos dias, o Senhor da Casa Grande faleceu e está toda a gente à espera na Igreja a para o funeral – uma tristeza! Ainda se, ao menos. tivesse sido uma morte natural era lá com Deus e suas contas, que bem sabemos não seriam poucas, mas morrer assim, arrastado, com o rosto desfeito, irreconhecível, um monte de carne e ossos, como se peça de açogue, E, olhando de soslaio Manuel Maria em busca do   efeito das suas palavras, perante a estupefação do jovem, o zeloso mensageiro, prosseguiu a narrativa, conferindo à voz tonalidades tragico-cómicas, Sua Senhoria era doido por cavalos, bem o sabíamos todos – acentuava – e acabara de comprar um potro loução, fino e luzidio, como a seda, mas mais bravo que um toiro desembestado. Nâo faltou quem tivesse o cuidado de avisar Sua Senhoria que o garrano era má rês que não deixava passar a mão pelo lombo ,quanto mais colocar os arreios. Foram necessários três homens valentes para colocar o selim, Sua Senhoria teimava em ser ele próprio a desbastar o animal e ordenou a dois homens para segurarem o cavalo pela barbela, enquanto um terceiro homem procurava aparelhar o animal, que mal sentia o selim sobre o lombo saltava em duas piruetas e lá iam os arreios pelo ar, uma, duas, varias vezes, até o animal parece ter acalmado e finalmente ser possivel apresentar a Sua Senhoria, o potro rebelde para primeira lição.

Enfim, o cavalo seguro, agora, apenas pelas rédeas, fez meia dúzia de piruetas, que Federico Amásio aguentou com perícia, dando a ideia que. sim senhor, tínhamos cavalo e cavaleiro. Federico Amásio sorria, Mas – vão lá conhcer-se os caprichos e melindres de um cavalinho loução, de pelo fino e luzidio como seda?!..Mandava o bom senso, que o cavaleiro se respaldasse na ajuda dos seus empregados para, com maior segurança, poder montar. Mas  Federico Amásio, não. Toldado pela vaidade (e pelo alcool), mandou que toda a gente se afastasse, formando um círculo, em volta do cavalo e do cavaleiro, atento o pessoal a qualquer auxilio. O cavalinho, seguro com mão firme nas rédeas, batia com as patas no terreiro, mostrando impaciência que Federico Amásio procurava dominar, com palavras dóceis e palmadas carinhosas no pescoço e espádua e, quando lhe pareceu o momento oportuno, meteu o pé no estribo e elevou perna  contrária, com  vista a ultrapassar a altura do animal e ficar instilado no selim.

Se era essa a intenção do cavaleiro, não era esse, porém, o interesse do cavalo. Dito isso, no momento em que Federico Amásio, com o pé firme no estribo, eleva o corpo,  no momento em que o cavaleiro forma o salto, nesse momento decisivo, de destreza e arte, com o cavaleiro, a “voar” sobre a garupa, para ficar sentado, com elegância, no selim, o cavalinho arredio na iminência ser montado, solta um relincho lancinante,  ergue-se, sobre as patas traseiras e tomba sobre o cavaleiro, que ficou, literalmente espalmado debaixo do cavalo, corpos de cavalo e do cavaleiro a espernearem no chão, Federico Amásio a procurar desenvencilhar-se do estribo que lhe prendia o pé e o cavalinho solto das rédeas, ergue-se num ápice, evita os  homens que lhe querem deitar mão e corre portão fora, levado, na corrida o corpo indefeso de Federico Amásio, que com a perna presa no estribo e incapaz de se libertar, é arrastado fatalmente pelo galope cego do cavalo, que, como um relâmpago, zarpou porta fora, a correr a toda a brida, vencendo todos obstáculos, nessa corrida endiabrada. Horas mais tarde, o cavalinho loução, fino e luzidio como seda, foi encontrado à sombra de um carvalho, calmo e dócil, com os restos do cadáver de Federico Amásio, membros e corpo da dependurado do selim e o crâneo partido, expelindo pela chaga aberta pedaços massa encefálica…

O velho chauffeur, suspende por uns segundos a minuciosa descrição e, olhando de soslaio o jovem Manuel Maria eu sei que há gente que não acredita, mas para mim esta tragédia foi obra do Diabo. Manuel Maria não teve tempo para replicar. Tinham chegado para o funeral do Senhor da Casa, que decorriam no interior da Igreja e extravasava para o exterior.

No adro da Igreja, pequenos grupos falavam em voz baixa, Alguns homens tiraram o chapéu à passagem de Manuel Maria que mal dava por conta, pois o seu  espírito  vibrava na evocação da criança enfermiça, a esconder de vergonha o rosto no colo de duas mulheres, que ambas o amavam, como se ambas sua mãe fossem e a lembrança de um homem, de mãos grandes, tão grandes que vão da Terra ao Céu, um homem ajoelhado frente a outro homem. a pedir perdão... Mas a pedir perdão de quê, meu Deus? se o homem que, ajoelhado, pedia perdão, apenas desejava um pouco de dignidade, trabalho para sustentar a família, que mãos e corpo para trabalhar tinha ele. Com essas memórias a arderem como ferro em brasa, Manuel Maria entrou na Igreja..

Por essa hora, no quartel do Carmo, em Lisboa, negociava-se a destituição de Macelo Caetano, com cravos vermelhos na rua e o Povo em festa – Fascismo Nunca Mais!...

A centenas de quilómetros de distância, vindo de sul para norte, Manuel Mara como se a tômbola da vida naquela naquele dia e naquela hora, tivesse condenado Manuel Maria à liturgia da morte, em lugar da euforia colectiva nas ruas de Lisboa e da orgástica explosão do grito do “povo unido jamais será vencido”, que breve grito ganharia densidade e consciência social, exprimindo a profunda unidade  e a profícua  aliança Povo/Forças Armadas, isto é Aliança POVO/MFA.

Seja como for, Manuel Maria estava decidido a regressar a Lisboa o mais cedo que pudesse, passando sobre a vontade das mulheres que ambas o amavam, como filho de ambas fossem.

Manuel Veiga

3 comentários:

Janita disse...

Um belo texto que, se não fora a alusão à Revolução e quejandos, diria ser algo semelhante ao romance de Aquilino Ribeiro " A Casa Grande de Romarigães".

Até o título, algo ensarilhado, me fez lembrar esta observação do autor:

"Se me saiu romance, aconteceu-me a mesma coisa que a um triste e tosco carpinteiro dos meus sítios, de quem toda a gente zombava, decerto por milagre desenfadado do Espírito Santo: estava a fazer um gamelo para o cão e saiu-lhe uma viola."

Um grande abraço, caro poeta/escritor.

- R y k @ r d o - disse...

Um belo capítulo que muito gostei de ver
Feliz fim de semana

Elvira Carvalho disse...

Mais um belo episódio. A ligação entre o passado e a esperança no futuro com a revolução do presente.
Abraço, saúde, bom domingo e feliz Outono

ESCULTOR O TEMPO

Escultor de paisagens o tempo. E estes rostos, onde me revejo. E as mãos, arados. E os punhos. Em luta erguidos…  S ons de fábrica...