Um pouco agitado, na sequência da
azeda troca de palavras com o GNR e ansioso por chegar à Casa Grande e
desembaraçar-se o melhor que pudesse das razões da sua chamada urgente à Casa Grande e,
depois, regressar imediatamente a Lisboa, para se colocar ao serviço da
Revolução, onde melhor a pudesse servir, pois tamanha era a sua convicção
revolucionária que, nem por momentos lhe passou pela cabeça que a agitação dos
militares pudesse ter outra natureza e que não se resolvesse na Revolução
Democrática, há tanto tempo esperada.
Em passo acelerado, atravessou a
sala de espera e as bilheteiras e saiu da Estação dos Caminhos de Ferro, e
dirigia-se para velho autocarro que, finalmente, o levaria à Casa Grande, quando se dá conta do reluzente Ford V8, e o velho
Viriato, encaixado na mal ajustada libré de chauffeur,
numa das mãos o boné, que retirara numa vénia, como está o menino, faça o favor de entrar, mantendo a porta aberta com a mão livre.
Manuel Maria pasmava! O automóvel
estava ao serviço exclusivo da Federico Amásio, Senhor
da Casa Grande, que aliás raras vezes usava,
preferindo a volúpia de uma de boa desfilada a galope, num de cavalo “com
sangue na guelra”, como era seu timbre montar. O vistoso automóvel era apenas
um luxo, “sinal” de riqueza e ostentação de poder, que o dono da Casa Grande conhecia
“arte” em todas as suas expressões. Tão excessiva magnanimidade colocou Manuel
Maria de pé atrás, digamos assim, e mesmo antes de perguntar
pelas duas mulheres que o esperavam e que ambas amava como filho, interrogou com
o olhar o condutor e. como se para si próprio falasse, que significa isto?...
Vamos,
não há tempo a perder… respondeu o velho
motorista; tenho ordens para o levar
diretamente à Igreja…
-
À Igreja? Mas que diabo vou eu fazer à Igreja? Manuel Maria, visivelmente indignado… Face à
insistência muda, mas nem por isso menos eloquente, compreendeu Manuel Maria,
que não tinha forma de se livrar do chauffeur e do luxoso automóvel.
Entrou, pois. o jovem para viatura
um pouco intrigado e inquieto, pois bem sabia que Federico Amásio, Senhor da
Casa Grande, tinha por ele, Manuel Maria, tanta afeição quanta um galgo tem por
uma lebre. A que propósito, portanto,
a distinção do luxuoso automóvel? –
interrogava-se!..- ou que
maquinação, naquela mente perversa?.
cismava... Intrigado, embora Manuel Maria não dedicou, porém, mais
que uns breves segundos à questão do automóvel e já que ali estava era ir em
frente e despachar-se o mais rãpido possível das razões urgentes que o traziam
à Casa Grande. A Revolução estava nas ruas de Lisboa e outras cidades e não
seria o “mando” de Federico Amásio, nem o afecto das duas mulheres, que o
amavam, como se ambas, sua mãe de Manuel Maria fossem, Ninguém o irua reter…
O velho chauffeur mal arrancou com
o automóvel, começou a despejar as
notícias e acontecimentos trágicos dos últimos dias, o Senhor da Casa Grande
faleceu e está toda a gente à espera na Igreja a para o funeral – uma tristeza!
Ainda se, ao menos. tivesse sido uma morte
natural era lá com Deus e suas
contas, que bem sabemos não seriam poucas, mas morrer assim, arrastado, com o
rosto desfeito, irreconhecível, um monte de carne e ossos, como se
peça de açogue, E, olhando de soslaio
Manuel Maria em busca do efeito das
suas palavras, perante a estupefação do jovem, o zeloso mensageiro, prosseguiu
a narrativa, conferindo à voz tonalidades tragico-cómicas, Sua Senhoria era doido por cavalos, bem o sabíamos
todos – acentuava – e acabara de comprar um potro loução, fino
e luzidio, como a seda, mas mais bravo que um toiro desembestado. Nâo faltou
quem tivesse o cuidado de avisar Sua Senhoria que o garrano era má rês que não
deixava passar a mão pelo lombo ,quanto mais colocar os arreios. Foram
necessários três homens valentes para colocar o selim, Sua Senhoria teimava em
ser ele próprio a desbastar o animal e ordenou a dois homens para segurarem o
cavalo pela barbela, enquanto um terceiro homem procurava aparelhar o animal,
que mal sentia o selim sobre o lombo saltava em duas piruetas e lá iam
os arreios pelo ar, uma, duas, varias vezes, até o animal parece ter acalmado e
finalmente ser possivel apresentar a Sua Senhoria, o potro rebelde para
primeira lição.
Enfim, o
cavalo seguro, agora, apenas pelas rédeas, fez meia dúzia de piruetas, que
Federico Amásio aguentou com perícia, dando a ideia que. sim senhor, tínhamos
cavalo e cavaleiro. Federico Amásio sorria, Mas – vão lá conhcer-se os
caprichos e melindres de um cavalinho loução, de pelo fino e luzidio como
seda?!..Mandava o bom senso, que o cavaleiro se respaldasse na ajuda dos seus
empregados para, com maior segurança, poder montar. Mas Federico Amásio, não. Toldado pela vaidade (e
pelo alcool), mandou que toda a gente se afastasse, formando um círculo, em
volta do cavalo e do cavaleiro, atento o pessoal a qualquer auxilio. O
cavalinho, seguro com mão firme nas rédeas, batia com as patas no terreiro,
mostrando impaciência que Federico Amásio procurava dominar, com palavras
dóceis e palmadas carinhosas no pescoço e espádua e, quando lhe pareceu o
momento oportuno, meteu o pé no estribo e elevou perna contrária, com vista a ultrapassar a altura do animal e ficar
instilado no selim.
Se era essa a intenção do cavaleiro,
não era esse, porém, o interesse do cavalo. Dito isso, no momento em que
Federico Amásio, com o pé firme no estribo, eleva o corpo, no momento em que o cavaleiro forma o salto,
nesse momento decisivo, de destreza e arte, com o cavaleiro, a “voar” sobre a
garupa, para ficar sentado, com elegância, no selim, o cavalinho arredio na
iminência ser montado, solta um relincho lancinante, ergue-se, sobre as patas traseiras e tomba
sobre o cavaleiro, que ficou, literalmente espalmado debaixo do cavalo, corpos
de cavalo e do cavaleiro a espernearem no chão, Federico Amásio a procurar
desenvencilhar-se do estribo que lhe prendia o pé e o cavalinho solto das
rédeas, ergue-se num ápice, evita os
homens que lhe querem deitar mão e corre portão fora, levado, na corrida
o corpo indefeso de Federico Amásio, que com a perna presa no estribo e incapaz
de se libertar, é arrastado fatalmente pelo galope cego do cavalo, que, como um relâmpago, zarpou porta fora, a correr a
toda a brida, vencendo todos obstáculos,
nessa corrida endiabrada. Horas mais tarde, o cavalinho loução, fino e luzidio
como seda, foi encontrado à sombra de um carvalho, calmo e dócil, com os restos
do cadáver de Federico Amásio, membros e corpo da dependurado do selim e o
crâneo partido, expelindo pela chaga aberta pedaços massa encefálica…
O velho chauffeur, suspende por uns
segundos a minuciosa descrição e, olhando de soslaio o jovem Manuel Maria eu sei que há gente que não acredita, mas
para mim esta tragédia foi obra do Diabo. Manuel
Maria não teve tempo para replicar. Tinham chegado para o funeral do Senhor da
Casa, que decorriam no interior da Igreja e extravasava para o exterior.
No adro da Igreja, pequenos grupos
falavam em voz baixa, Alguns homens tiraram o chapéu à passagem de Manuel Maria
que mal dava por conta, pois o seu
espírito vibrava na evocação da
criança enfermiça, a esconder de vergonha o rosto no colo de duas mulheres, que
ambas o amavam, como se ambas sua mãe fossem e a lembrança de um homem, de mãos
grandes, tão grandes que vão da Terra ao Céu, um homem ajoelhado frente a outro
homem. a pedir perdão... Mas a pedir perdão de quê, meu Deus? se o homem que,
ajoelhado, pedia perdão, apenas desejava um pouco de dignidade, trabalho para
sustentar a família, que mãos e corpo para trabalhar tinha ele. Com essas
memórias a arderem como ferro em brasa, Manuel Maria entrou na Igreja..
Por essa hora, no quartel do Carmo,
em Lisboa, negociava-se a destituição de Macelo Caetano, com cravos vermelhos
na rua e o Povo em festa – Fascismo
Nunca Mais!...
A centenas de quilómetros de distância,
vindo de sul para norte, Manuel Mara como se a tômbola da vida naquela naquele
dia e naquela hora, tivesse condenado Manuel Maria à liturgia da morte, em
lugar da euforia colectiva nas ruas de Lisboa e da orgástica explosão do grito
do “povo unido jamais será vencido”, que breve grito ganharia densidade e consciência social,
exprimindo a profunda unidade e a profícua
aliança Povo/Forças Armadas, isto é
Aliança POVO/MFA.
Seja como for, Manuel Maria estava
decidido a regressar a Lisboa o mais cedo que pudesse, passando sobre a vontade
das mulheres que ambas o amavam, como filho de ambas fossem.
Manuel Veiga
3 comentários:
Um belo texto que, se não fora a alusão à Revolução e quejandos, diria ser algo semelhante ao romance de Aquilino Ribeiro " A Casa Grande de Romarigães".
Até o título, algo ensarilhado, me fez lembrar esta observação do autor:
"Se me saiu romance, aconteceu-me a mesma coisa que a um triste e tosco carpinteiro dos meus sítios, de quem toda a gente zombava, decerto por milagre desenfadado do Espírito Santo: estava a fazer um gamelo para o cão e saiu-lhe uma viola."
Um grande abraço, caro poeta/escritor.
Um belo capítulo que muito gostei de ver
Feliz fim de semana
Mais um belo episódio. A ligação entre o passado e a esperança no futuro com a revolução do presente.
Abraço, saúde, bom domingo e feliz Outono
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