sábado, dezembro 30, 2023

A CARTA QUE NUNCA TE ESCREVEREI...


Pressente o escrevente que esta prosa redonda, que se quer literária, se enrola cada vez mais, correndo, às cegas, como um rio sem margens. adensando percurso e a complexidade dos personagens, cultivando um certo mistério. como se de um conto da Senhora Agatha Christie se tratasse, hipótese megalómana, já se sabe. sendo bem mais provável que se despenhem todos, palavras, personagens e escrevente no mar profundo das banalidades literárias.

Seja como for, Manuel Maria sente-se em palpos de aranha para dominar a Cléo, cada vez mais intrigante e misteriosa no seu relacionamento com José Augusto Esquerdino, alegando que os laços que os unem, mais do que uma verdadeira relação sentimental, são uma espécie de nó górdio, que nada, nem ninguém poderá desatar, forjado, sim, é verdade! em forte cumplicidade política. Imagine o leitor a surpresa de Manuel Maria! Uns dias antes José Augusto oferecia-lhe a Cléo e falava da partilha, que ambos poderiam desfrutar e a Cléo. imperturbável com uma proposta, no mínimo, insólita, vem agora, ela que nada diz sobre a partilha sentimental, vem agora, dizíamos. a evocar inquebrantáveis laços, qual vestal incendiada de paixão política. Manuel Maria pasmava. Seria possível? A Cléo e o José Augusto poderiam imaginar-se, sem forçar a realidade, numa relação sentimental “solta” e fantasista, mas cumplicidade política? Essa era difícil de engolir! A Cléo era uma burguesinha um pouco mimada, sobretudo, preocupada em fazer carreira no cinema, e o seu interesse pela política esgotara-se na efervescência de Maio de 68, onde o “semiótico” Hilário lhe ferrou o dente, com sua” arte” de flibusteiro das ideias  que tanto a seduziam e, agora, mais madura, usava a política para atingir os seus superiores interesses e, nestas circunstâncias, era indiferente a cor política. Como, pois. “nó górdio “ a encimar os seus laços com José Augusto no campo político? Este era de outro timbre…

De facto. o Presidente da Comissão administrativa José Augusto Esquerdino era um convicto e pertinaz militante comunista, caldeado, na luta contra o fascismo, criado e educado no seio da classe operária ele, José Augusto,  que adolescente renegou ao chão que o viu nascer, renegou à família e renegou o Pai, com juras amargas  de nunca mais voltar “ porque nenhum homem deve ajoelhar perante outro homem” e seu pai, seu herói e seu modelo fui publicamente e enxovalhado pelo Senhor “seu dono”, que o diabo levou para o inferno, mas que do alto da sua soberba exigiu a suprema humilhação “ de joelhos, Esquerdo! De joelhos! Que perdão se pede de joelhos. “E, por isso, fugiu engolindo as  amargas lágrimas da sua vergonha, correu, correu, noites e dias, por montes e vales, sem olhar para trás, sempre distante, cada vez mais distante da sua vergonha, a fugir, noites e dias e a morrer de fome e sede, sem trocar uma palavra sequer, com alguma humana criatura até encontrar “o homem da bicicleta”, um homem de meia idade, com o cabelo todo branco e com um olhar, que atravessava uma pessoa, que subia uma pequena colina, com a bicicleta pela mão e visivelmente a evitar a povoação próxima e,  então, José Augusto, obedecendo a uma qualquer determinação, seja ela  o cansaço e a fome, ou a humana urgência de ter a compreensão e o calor do “outro”, seu semelhante, a verdade é que apressou o passo para chegar ao homem da bicicleta, que  após uma seca saudação, caminharam, largos minutos, “espiando-se” e a páginas tantas, inesperadamente, o homem da bicicleta puxou do seu bornal e num gesto estendeu um naco de pão ao rapaz, que não se fez rogado. comeram e beberam juntos e estava feita uma amizade, que os homens simples se reconhecem facilmente e partiram, lado a lado, com o rapaz a falar pelos cotovelos, na euforia da descoberta da amizade e no apaziguamento da sua amargura e e ambos seguiram clandestinos para Lisboa, num comboio de mercadorias, onde à chegada, o homem da bicicleta mergulhou na escuridão da noite, depois de entregar o rapaz aos seus camaradas. “E o teu nome?. Qual o teu nome? E perguntou, em ansiedade, José  Augusto, como quem se agarra, em desespero, a uma qualquer boia de salvação! E o homem da bicicleta “O meu nome? Que importa um nome?... Saberás um dia! E mergulhou na escuridão da noite…

Assim, com personalidades tão diversas e tão diferentes nas suas origens e vivências e, certamente, tão diferentes também na projeção do futuro, como pois poder acreditar que Cléo e José Augusto mantinham tão profunda comunhão de interesses políticos, que levava a rapariga a proclamar laços inquebrantáveis? Era de moer os miolos à mais paciente das criaturas! Mas Manuel Maria não desistia de encontrar razões que o convencessem. E era tão grande o interesse em aclarar “ a coisa “, isto é, conhecer, pela própria, o que fazia ali Cléo que chegou a desejar que as relações entre a rapariga e José Augusto, mais do que um “nó górdio” tudo não passasse de uma charada. E essa ideia que por momentos o iluminou, confortava Manuel Maria.

 

Manuel Veiga


3 comentários:

Tais Luso de Carvalho disse...

Olá, meu amigo Manuel, voltarei para ler
A CARTA, hoje é para desejar a você e sua querida família
um excelente Ano 2024, com saúde, alegria e paz!
Voltarei, querido amigo poeta, mas hoje sou só agradecimentos
e votos de muitas felicidades para todos, e que o mundo reflita mais...
Beijo!

Maria João Brito de Sousa disse...

Um abraço - o meu - por um ano melhor num mundo melhor!

Olinda Melo disse...


Olá, Manuel Veiga
Ou muito me engano ou o Escrevente está
a ver se ganha tempo. Tempo para cerzir esta história que Manuel Maria lhe encomendou.
Mas eu acredito na sua inspiração e há - de levar a bom porto esta tarefa.
Sempre a adnirá-lo, meu amigo.
Abraço
Olinda

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Escultor de paisagens o tempo. E estes rostos, onde me revejo. E as mãos, arados. E os punhos. Em luta erguidos…  S ons de fábrica...