terça-feira, janeiro 23, 2024

A CARTA QUE NUNCA TE ESCREVEREI


                

                                                                        

José Augusto ficou seriamente afetado como o curso da revolução, após o 25 de novembro. Educado no interior da classe operária no combate heroico contra o fascismo e acreditando, convictamente, no socialismo e na revolução mundial, que mais tarde ou mais cedo, acabaria por se implantar em todos os cantos da Terra e, embora apostado em levar a bom termo as trefas que, naquele tempo literário fora incumbido, como presidente da Comissão Administrativa de um grande Município da Área Metropolitana de Lisboa, embora contra sua vontade, pois era um homem de ação e não de gabinete, não se conformava com o rumo que as coisas tomaram depois de 25 de Novembro, companheiros seus perseguidos e presos e o processo de recuperação capitalista a cilindrar as conquistas da revolução, designadamente, a Reforma Agrária, tudo isto era para ele, José Augusto Esquerdino um martírio e, aceitar tal rumo. era quase uma dupla morte cívica. Pois não fora ele quem virou costas à Terra que o viu nascer, algures em Terras do Demo.  onde nunca mais voltou e abjurou o seu próprio pai porque, nunca um homem deve ajoelhar perante outro homem e não aguentou a vergonha de ver seu próprio Pai, seu herói e seu mestre, ajoelhado perante homem soberbo que, do alto da sua soberba ordenava, “de joelhos, Zé Esquerdo, que perdão pede-se de joelhos”, mas pedir perdão de quê, se o desgraçado moía-se de trabalho para matar a fome.? E correu por montes e vales, dia e noite, noite e dia sem ao menos saber qual o seu destino, mas fugindo, correndo sempre, contra a vergonha e o opróbrio de ver seu pai ajoelhado, a pedir perdão estendendo suas longas mãos, tão enormes que iam da Terra ao Céu, essas longas mãos, mãos de trabalho que ele, José Augusto, lembrava em súplica, erguidas perante um homem todo poderoso e impante de soberba e, por isso, fugia, correndo, correndo sempre, evitando as povoações e as pessoas, ou qualquer ser vivo até encontrar “o homem da bicicleta”, de olhar tão intenso que atravessava uma pessoa. E que partilhou com ele o seu pão e bebeu do seu cantil e com ele seguiu, clandestino, num comboio de mercadorias para Lisboa e o entregou aos seus camaradas, que passaram a ser seus camaradas e seu amigos e que o ajudaram a encontrar emprego e habitação e lhe deram uma profissão e o iniciaram na luta política e reconheceram a sua dedicação e a sua bravura e, quando chegou o tempo certo o enviaram para um país socialista, onde em segurança, adquiriu conhecimentos, que doutra forma não teria e cresceu e se fez homem e se cultivou, “aprendendo, aprendendo, aprendendo sempre…” e quando preparado para “revolucionário a tempo inteiro” ao serviço da Revolução mundial, o devolveram ao seu País e aos seus camaradas portugueses que travava aguerrida luta contra o fascismo e, com eles haveria de continuar até sempre pela conquista da democracia e do socialismo. E a sua bravura e sentido de responsabilidade convenceram seus camaradas, a elevar o nível de novas e mais perigosas missões na luta clandestina. E, então, organizou manifestações e comícios e a sua palavra fluente e calorosa, que arrebatava quem o escutava, determinaram a sua participação no arremedo de eleições  que o fascismo promovia e, por essas e outras foi perseguido e preso e torturado pela polícia política e por violentas e insuportáveis que fossem as torturas, nunca sua boca se abriu, nem renegou aos seus ideais e, quando a polícia política, depois de um interrogatório, que o levou à beira da morte, numa crueldade sem nome, o deixou um farrapo humano, nu e seviciado, à porta do hospital e mesmo no maior  sofrimento, nunca traiu os seus camaradas ou renegou aos seus ideais; pelo contrário, cada vez que era preso e maiores as violências, maior era a sua determinação na luta contra o capitalismo explorador e, se fosse necessário, estaria sempre pronto para, em qualquer parte do Mundo, combater os inimigos do povo e da classe  operária. Pois não foi ele, José Augusto Esquerdino, quem, a pedido dos camaradas franceses e, perante tibieza de alguns, se ofereceu para ir a França “limpar o sebo” a um general pertencente à OAS, por ocasião da Independência da Argélia. E se recorda este facto não é para se vangloriar, pois não é um criminoso sem princípios, nem sequer um “matador” contratado, mas um homem livre, que se for necessário sujar as mãos pelas causas em que acredita, pois considera ser esse o seu dever não hesitaria em entrar em acção, pelos meios mais certeiros, pois que quando os valores são imperativos, conta sobretudo, a convicção de que a nossa ação é um contributo para  projeto de sociedade que acabe com a exploração do homem pelo homem e o liberte, finalmente, de todas as amarras da Natureza. Estou grato aos camaradas franceses pela rigorosa preparação, que minimizou os perigos de insucesso da 0peração e em especial reconhecido à jovem que me acompanhou nessa tarefa de execução justiceira e destacar o papel fundamental da jovem luso-francesa que, não apenas se expos fisicamente, acompanhando-me , e reconhecendo a vítima, como contribuiu decisivamente para que mesma tarde estivessem em segurança de novo em Lisboa, guiando-me por vielas e travessas, abreviando o itinerário para o aeroporto, depois do tiro fatal que liquidou o torcionário General da OAS, um bárbaro com uma grande lista dehediondos contra as populações da Argélia. 

Não, não se conformava, José Augusto Esquerdino com a evolução das coisas após o 25 de novembro. Outros, que não ele, poderiam ficar satisfeito com uma democracia burguesa, invólucro sedutor, com que o capitalismo justifica a sua existência e  mistifica a noção de  o, sendo certo, que a liberdade e a igualdade são irmãs siamesas, no conceito dos propios teóricos da revolução burguesa. Cedo, porém, a igualdade foi sacrificada, em nome da Propriedade. pois que, em rigor, a liberdade capitalista, não passa da liberdade de exploração do trabalho, daqueles que, na base da pirâmide social. nada têm, nem nada podem, pagando caro a sua ilusão da liberdade política. Ao fim e na cabo, como diria, num tempo histórico outro, posterior ao tempo literário desta narrativa redonda, como diria, pois, anos mais tarde, um grande escritor português e político atento e prémio Nobel de literatura, a liberdade é como a santa nos altares., todos a veneram, mas a santa permanece muda …

Que não contassem, pois, com ele para este jogo, à partida viciado, bem como para ficar sereno, conformado e quieto com um arremedo de democracia e assistir impávido à recuperação capitalista e reconstituição dos monopólios e das elites financeiras que foram o sustentáculo do regime fascista. Se ainda que em sonhos, José Augusto Esquerdino pudesse aceitar tal estado de coisas, significava que se tinha rendido, quem sabe se ajoelhado, perante a soberba exploradora do capital e, então, a sua vida, desde a abjuração de seu pai, seu herói e seu mestre, e o abandono da terra que o viu nascer para nunca mais voltar porque nenhum homem deve mandar noutro homem e muito menos ajoelhar ,e esse acto de rebelião foi o acto  fundador da sua personalidade e de tudo o que se seguiu assentou sua vida, e nem as lutas politicas. nem  as prisões ,nem as tortonde uras, nem as sevícias da polícia política, nem a sua entrega, sem  reservas à causa do socialismo e da Revolução Mundial,  nem todas as fraternas amizades, nem toda a  camaradagem, nem  todo o amor por uma mulher, nem toda a sua vida faria sentido e não passaria de um grande equivoco.

Visivelmente, não  gostava José Augusto  do rumo das coisas, após a noite de 25 de novembro!...  Mas não era homem para abandonar uma causa derrotado e sem ânimo. Demitiu-se das funções que desempenhava que o Presidente da comissão administrativa de um município da área metropolitana de Lisboa, depois de dar conhecimento aos seus colaboradores mais próximos entre os quais se contavam Manuel Maria e a Cléo. Ambos argumentaram como podiam e sabiam na vã tentativa de o deter numa decisradical, lembrando-lhe o seu compromisso com o povo do concelho, pois que as as funções que desempenhava, não lhe pertenciam, mas sim ao Povo do Concelho que em amplos plenários o elegeram, em votação de braço no ar, e com a sua demissão iria desiludir muita gente, que contava com a sua acção de Presidente do Municipio para a construção de uma vida melhor. Nada o demoveu, afirmando reiteradamente que o primeiro dever que tinha era consigo próprio e toda a sua vida perderia sentido se pactuasse com a nova realidade politica, após a noite de 25 de Novembro e não se colocasse ao serviço do verdadeiro socialismo e da revolução mundial.

E assim foi!... Em dissidência com os camaradas de sempre, juntou-se a um pequeno grupo de radicais que defendiam ação direta que abalassem as estruturas do capitalismo e dessem visualidade aos interesses da classe operária.

 

Manuel Veiga

 

                                                   


1 comentário:

Olinda Melo disse...

Uma surpresa o currículo de José Augusto Esquerdino. Sabia da fuga da casa paterna por não aguentar a humilhação que o Senhor da Casa Grande inflingiu ao pai, para além de tudo o que lhe aconteceu desde que ali chegara.
Também já sabia do seu encontro com o "homem da bicicleta" que tomou José Augusto ao seu cuidado. O que nos conta agora vem completar o seu percurso e dá para compreender melhor a sua devoção à causa revolucionária. E também a decisão de abandonar tudo depois do 25 de Novembro.
Isto para lhe dizer, Manuel Veiga, que razão tem Manuel Maria em ter incumbido o Escrevente de registar todos esses acontecimentos. Não só nos traz a prepotência de certas elites perante os mais fracos como também nos relata a efervescência daqueles memoráveis dias.
Fico a aguardar o que vem a seguir.
Grande abraço.
Olinda

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