segunda-feira, abril 30, 2018
sexta-feira, abril 27, 2018
CLARIDADE(S) ...
A Poesia é o “grão na
voz” na fala do Mundo
……………………………
A Música é iluminação do
silêncio
………………………………………
A Vida é a decomposição
do Acaso
……………………………………….
As Estrelas não amam –
brilham!
…………………………………..
O Amor é o tédio dos deuses
…………………………………….
Tudo e Nada são balões
coloridos
Onde cegamos os olhos.
……………………………………….
Sem mácula o rumo dos
caminhos:
São os passos quem traça
os destinos
……………………………………….
Na escala do Tempo
Todas as viagens são
início
………………………………………….
Manuel Veiga
27/04/2018
quinta-feira, abril 26, 2018
SEARA NOVA N.º 1742 - EDITORIAL
“Do rio que tudo arrasta se diz que é
violento, mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem”. Esta frase
lapidar de Bertholt Brecht, cujo sentido último atravessa toda a História,
ganha a sua maior força e expressividade, a partir da época moderna, mediante
as diversas configurações do sistema capitalista à escala mundial e nas
consequentes irrupções de violência e tensão social que, com maior ou menor
intensidade, se verificam por todo o Mundo.
Como a
sociologia e a psicologia explicam, a violência social, em particular a
violência urbana, está estritamente correlacionada com a exclusão e a pobreza.
Os excluídos dos benefícios do desenvolvimento económico e social tendem, na
sua conduta, a ignorar as fronteiras da sociabilidade e da civilidade,
rejeitando os comportamentos padrão e as práticas sociais comuns, dadas como
adquiridas, regredindo, em muitos casos, para estádios próximos da barbárie.
Não se
pode, pois, com objectividade, ignorar que a violência do Mundo actual,
institucionalizada ou não, seja no Médio Oriente, seja no Brasil, quer se
exprima como violência de guerra, quer se exprima como violência difusa nas
grandes metrópoles, se inscreve no âmago das sociedades modernas e traz sempre
no seu bojo a miséria e a pobreza, num ciclo infernal de auto-reprodução, que
multiplica os excluídos da sociedade. E, em contra ponto, a mesma matriz de
exploração que exclui biliões de pessoas em todo o Mundo dos benefícios da
civilização, gera, por outro lado, uma escassa mão cheia de super-ricos, numa
escala de concentração de riqueza inimaginável.
De facto,
conforme denunciou a ONG britânica Oxfam, por ocasião do último Fórum Económico
Mundial, em Davos, as oito pessoas mais ricas do planeta possuem tanta riqueza,
(o montante assombroso de 427 biliões de dólares), quanto a metade mais pobre
da população mundial, numa proporção de 8 para 3,6 biliões de pessoas. Com a
agravante de que esta situação "indecente"
que "exacerba as
desigualdades", tem tendência para aumentar de ano para ano.
Também em
Portugal, estudos recentes do Banco Central Europeu (BCE) revelam que o peso da
fortuna dos mais ricos no conjunto da economia, ou seja a concentração da
riqueza e aumento das desigualdades sociais “é ainda maior do que se julgava”,
assinalando que, no caso português, um quarto da riqueza está nas mãos de 1% da
população.
Acresce
que dados da própria União Europeia revelam que a “pobreza no trabalho”, ou
seja, a percentagem das pessoas que trabalham e cujo rendimento disponível fica
abaixo do limiar de pobreza tem vindo a aumentar. Assim, se para além do
desemprego e dos desníveis salariais entre homens e mulheres, por exemplo, o
trabalho não tira as pessoas da pobreza, importa então reconhecer que estamos
perante uma sociedade, não apenas injusta, mas que raia a esfera da sua própria
desagregação.
Se bem
julgamos, face ao aumento da produtividade e do rendimento nacional, importa
pugnar por mais justa repartição da riqueza produzida, mediante o aumento dos
salários, cuja urgência se impõe como razão de erradicação da pobreza e da
exclusão social no País.
E, noutro
plano, face aos desígnios de uma governação que se pretende de esquerda,
importa também pugnar pela valorização do trabalho, como factor decisivo de
socialização e coesão social, o que tem como pressuposto questionar a economia,
a empresa, as relações mercantis e o mercado como regulador supremo da economia
e da sociedade.”
(Do Editorial)
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domingo, abril 22, 2018
O BRONZE E O TIMBRE
Asas ainda. Latejante flor de Abril
Alvoroçada. E desvelos a inflamar gargantas.
E memórias. Como se o tempo fosse
Sentido único.Veredas que se soltam e se derramam
No excesso.
E os olhos em febre
Que nada nesse caudal é
mesquinho:
Nem o canto, nem as
lágrimas
Nem a desmesura
Das bandeiras.
A rudeza onde estendemos
o pão
É pedra afeiçoada. E
frutos que germinam
Nas margens. E se desprendem
Em maciez de bocas
Sôfregas.
Na altivez precária do
porte
E dos gestos perfilam-se
então antigos ritos
Que rebentam as
grilhetas
De tão pródigos.
E no cerco dos dias
presentes
Na cidade sitiada de
sombras
Nos obscuros heróis
corroídos
Herdeiros do medo e da
fome
O bronze e o timbre
Modelam o rosto do tempo
E afeiçoam o imorredoiro
grito.
Viva a Liberdade!...
Manuel Veiga
(poema reeditado)
quinta-feira, abril 19, 2018
SOL E NADA...
Tensão do arco
E a palavra aberta
Avançada
No limite
Da seta.
E o poema - sol e nada
Meteorito de fogo
E água
Que se derrama na elisão
Da curva e explode
E arde
E se ilumina
Poalha e cascata de lume
Nas obscuras dores
Da humanidade.
Manuel Veiga
terça-feira, abril 17, 2018
EM LOUVOR DA AMIZADE...
Amizade é um
alagar-se por dentro
Num lento
movimento sem gestos: quase mudo!
Uma música sem
ritmo, um quase-nada
Que assinala e acrescenta
E sem tempo se
demora
A somar gente
À gente.
E
nada pede. E se deixa assim ficar
A bailar...
Como
se nada fora!...
Manuel
Veiga
"CALIGRAFIA ÍNTIMA"
POÉTICA Edições - Pág. 42
Maio 2017
"CALIGRAFIA ÍNTIMA"
POÉTICA Edições - Pág. 42
Maio 2017
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(Reedição)
segunda-feira, abril 16, 2018
ANTI CLÍMAX...(editado)
- “ O teu poema é fantástico!...
Fiquei sem palavras!...”
- “ Compreende-se:
As palavras são esquivas!...”
As palavras são esquivas!...”
Manuel
Veiga
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Versão Original
“ A tua performance é soberba!
Fiquei sem palavras!...”
- “ Compreende-se:
As palavras são esquivas!...”
As palavras são esquivas!...”
Manuel Veiga
quinta-feira, abril 12, 2018
Do AMOR e Da GUERRA - Fragmentos
(…)
“Manuel
Veiga, neste romance em que subverte, como experiência diegética, as normas
aristotélicas, investindo nos processos brechtianos, que Barthes também
defendia, da fragmentação discursiva, anti-aristotélica, o espaço é arquétipo,
diz o autor, expressa claramente estes sinais. A par, naturalmente, de uma
contextualização autobiográfica do conflito e da vida (os amores, o medo, as
vivências, as memórias geracionais que Manuel Veiga, com hábil contenção
narrativa, introduz no corpo discursivo): uma dimensão pedagógica e pragmática;
a assunção da verdade como método estruturante do narrado, o estigma da culpa e
da responsabilidade, a determinante intervenção no discurso do
narrador/protagonista, do autor/personagem, uma dextra capacidade de ficcionar
os factos, de reflectir sobre os elementos do vivido entrelaçando-o com a
reflexão do tempo social, afectivo e histórico – e o sujeito como interlocutor
privilegiado entre o narrador omnipresente e o leitor.
(---)
Se o acto
de escrever é um processo de responsabilização – cultural, cívico e ético,
Manuel Veiga, ao tratar neste livro a língua e as palavras com o peso e a
substância simbólica que elas devem ter, e nessa busca de signos se alimenta (o
que já acontecia em Notícias da Babilónia), que da guerra, e da vida, traça
amplas similitudes entre a realidade e a ficção, entre o discurso íntimo e a
exposição pública que os conflitos, por serem do domínio do histórico, implica,
mesmo quando a palavra fica angustiantemente presa na liana, a escrita de Manuel
Veiga atinge, quase sempre, esse estágio supremo de configuração, de imanente e
visceral criação literária, acrescentado ao discurso os elementos eufóricos e
disfóricos da sinceridade: emocional, ideológica, afectiva, sexual.
Raramente
a literatura portuguesa deu a dimensão trágica, o absoluto do drama, do épico,
como nos textos em que a Guerra Colonial surge como suporte ficcional. É a
tragédia do homem só com sua consciência, com o seu conflito entre o dever, a
justiça e a dignidade – o homem e o seu estupor existencial, a sua
circunstância, em estado de inquietação e perplexidade, e esses estágios do
ser, essa essência, raramente a literatura portuguesa conseguira traduzir tão
rigorosamente.
Outro dos
elementos que Manuel Veiga introduz no discurso narrativo é o do humor, do
sarcasmo, da ironia, da capacidade de auto-análise, de desmontagem do drama
(simultaneamente individual e colectivo) através do humor; a distanciação do
objecto ficcional, a contenção do trágico.
Este novo
livro de Manuel Veiga, estes fragmentos cumulativos que atravessam as memórias
da infância, da adolescência, da descoberta do medo, do amor, do absurdo,
dão-nos um romance modelar nos seus plurais modos de dizer, de (d)escrever um
dos períodos mais sofridos, em termos sociais, históricos e políticos (mesmo
quando o sujeito está fora da história, repete o autor), da segunda metade do
século XX português. Um épico geracional que nos diz, que rigorosamente, na sua
assumida dispersão narrativa, nos reflecte e questiona.
Um livro
mais a juntar ao largo espectro canónico da literatura que expressa o conflito
Colonial, mas que transcende esse período, esse tempo mordente e ácido: abre a
outras e mais profícuas coordenadas, ao investir nos modos de abordagem
estética, do fenómeno literário”.
Abril 2018
Domingos
Lobo, escritor, poeta e crítico literário
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Nota:
"Do Amor e da Guerra" está em fase de edição. Será apresentado no final do próximo mês de Maio e estará disponível nas livrarias durante o mês de Junho.
M. V.
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Nota:
"Do Amor e da Guerra" está em fase de edição. Será apresentado no final do próximo mês de Maio e estará disponível nas livrarias durante o mês de Junho.
M. V.
terça-feira, abril 10, 2018
Cortemos Cerce Os Enleios
Importa cortar as águas Lydia
Que também as águas corrompem!
E nada detém o movimento
Das correntes…
E nem sempre as pontes
são regresso
Nem os barcos são viagem.
Nem as âncoras
Enseadas límpidas.
Mergulhemos Lydia no
fragor das cascatas
E na nascente das
ribeiras. E que nossos corpos
Sejam os únicos
afluentes.
E apenas as margens
Aluvião dos dias.
E os dedos entrelaçados o
açude
Das águas sufragadas. E a
razão de nossos gestos.
E a copa dos salgueiros e
os frondosos freixos
Sejam o único alimento das
sombras.
E o sol a vibração de
nossas almas
Vagabundas.
Derrubemos Lydia todos
os arcos.
E todas as glórias. E
todas as pontes.
E todos os triunfos.
E cortemos cerce os
enleios.
E amemo-nos. Antes que a deletéria espuma
Nos tolha. E macule a
inocência
Dos sentidos.
Manuel Veiga
Nota
Lydia é uma criação
literária de Ricardo Reis
sábado, abril 07, 2018
SOLIDARIEDADE COM O BRASIL
(...)
porquê
esta sanha contra um operário brasileiro que teve a ousadia de se tornar
exemplo mundial de Presidente da República e criar um programa para acabar com
a fome de 50 milhões de cidadãos;
retirar as
crianças do trabalho escravo;
integrar
todos os brasileiros no sistema jurídico constitucional;
criar
medidas para permitir que todos os estudantes, quaisquer que sejam as origens
étnicas, possam cursar as universidades;
abrir o
caminho de desenvolvimento para todas as regiões do país e levar água e energia
elétrica para todas as casas;
apoiar as
mais diversas iniciativas de produção e criação de emprego;
atender
aos problemas de saúde dos milhões de brasileiros;
promover a
integração do Brasil nos mais altos escalões da política mundial;
projetar a
economia brasileira em associações internacionais pioneiras;
afirmar a
soberania da Nação perante todo o planeta;
cooperar
com os países latino-americanos para superarem as condições de atraso e
subdesenvolvimento;
receber da
ONU os louvores pelas conquistas democráticas que animaram os países africanos
e asiáticos, ainda em condição de miséria e domínio colonial disfarçado, a
levantarem a cabeça ...”
se calhar,
foi exatamente por Lula ter feito tudo isto que o imperialismo animou o processo
golpista que Temer iniciou e os juizes de vários escalōes se prestaram a dar um
tom de justiça."
ver Zilah Branco
sexta-feira, abril 06, 2018
A Merência
Recordo-me da Merência, espigadota, de
cabelos ruivos e sardas dispersas pelo rosto leitoso e bem desenhado. Um pouco
misteriosa nos seus silêncios, arredia às brincadeiras mais ousadas dos rapazes
que, com ela e outras rapariguinhas se juntavam no adro da Igreja, depois das
aulas, como potros selvagens, nos fins de tarde daqueles longínquos anos de
Primavera. E quando algum, mais afoito, lhe levantava a ponta da saia ou, no
pretexto das brincadeiras, atrevia a mão aos seios púberes e, ela soltava, numa
indignada recusa:
-
“Vê lá se apanhas um estalo!...”
Junto ao adro, descaindo um pouco para
oeste, rematando o pequeno largo, como vértice da rua da Igreja e a rua mais
estreita da Calheta, era a forja do Ti´ Alípio. De essencial direi apenas que o
“Tio” Alípio, viúvo, criava dois filhos ainda tenros, à força de marteladas na
forja e do esgravatar de uns alqueires de centeio, em terras arrendadas, nas
ladeiras íngremes dos rios da minha infância.
O Manuel, o mais velho, - em estrita
divisão social do trabalho (isto sou eu agora a falar...) - fora destinado às
agruras do centeio inóspito e ao cultivo de uma pequena horta a uns escassos
quilómetros da povoação, a qual, por razões que não antecipo, irá ser o mítico
lugar do desenlace desta “estória”.
Para o filho mais novo, o Tio Alípio havia
decidido que seria ferreiro e continuar assim a tradição da forja, apontando
relhas e aguçando enxadas ou, quando necessário, ajustar as ferraduras de
alguma besta. Pensaria o bom do “Tio” Alípio, que reservar para o seu benjamim
a tradição da forja seria, certamente, a maneira certa de homenagear a mulher,
falecida no momento do parto, de cuja família recebera a oficina.
Acontece, porém, que o Zé - é esta a sua
graça, embora mais conhecido por Zé “Sugão”, já que em criança compensou,
durante largo tempo, a carência de afectos maternais com o “sugar” dos dedos na
boca, hábito que pela adolescência se prolongou, mediante a substituição dos
dedos pelo permanente sugar de figos secos – acontece, dizia, que o Zé não
tinha nem físico, nem vontade para a violência da forja, a que fora
acorrentado...
Era, pois, com manifesto regozijo que,
espreitando pela fresta da porta da forja, acompanhava as nossas brincadeiras
no adro. Uma ou outra vez, quando o pai, por qualquer outro afazer, se
ausentava, era certo que Zé, a quem a vida reservara mais agreste passatempo,
subia a curta distância das nossas correrias.
Quando assim acontecia, a Merência de
olhar fixo no chão, sentava-se no muro do adro, ajeitava a saia, esticando o
tecido até à extensão das pernas, cobrindo a penugem incipiente que as adornava
e que os últimos raios do sol, descendo no horizonte, davam tonalidades
delicadas.
O Zé, a uns palmos de distância,
encostado ao muro, sem uma palavra, olhava-a de soslaio, mal disfarçando o
pudor do êxtase num pontapé ou outro, como quem enxota visita indesejada,
quando inadvertidamente a bola lhe chegava aos pés...
E assim ficavam aquelas duas alminhas,
mirando-se, sabe-se lá a que alturas transportados, até que o adro da igreja
ficava deserto ou, antes disso, o Ti´ Alípio, qual trombeta do juízo final,
reclamava a presença do filho, bem sabendo então o Zé que o deleite do paraíso
iria decair no ardor infernal de um bom par de estalos na cara. É que Ti´
Alípio, rigoroso “padre padrone”, não
admitia transgressões na ordem familiar e, muito menos que o filho, herdeiro
designado de seu brioso ofício, andasse “metido” com a “galdéria” da Merência...
Importa esclarecer que o Ti´ Alípio,
ainda que vagamente aparentados, não falava com a família da Merência. Uma
antiga rixa sobre partilha de águas com a propriedade confinante à horta que o
filho mais velho, o Manuel, zelosamente granjeava, alimentava entre eles um
verdete de ódio, que nem festa ou morte, alguma vez haveria de limpar. Toda a
aldeia o sabia. E respeitava aquela funesta zanga na profundeza (ou insensatez)
da sua autenticidade...
Passaram anos. A infância esgotou-se
como um suspiro. Com o alvor dos anos sessenta a aldeia despovoou-se com
emigração para França e outras araganças. Entretanto, o Ti´ Alípio falecera. O
Manuel largou a junta das escanzeladas mulas e as agruras da horta e do centeio
e enfileirou na emigração a salto. O Zé, porém, por lá se deixou ficar,
acantonado ao fervor da sua devoção maior...
A forja morreu de estertor natural. O
estiolamento, por falta de braços, da produção agrícola tornou-a supérflua. Nem
o Zé com isso se importou. Respeitava o nome do pai, mas odiava o seu ofício...
E a Merência lá continuava, firme, como estrela polar, marcando-lhe o rumo e a
vida...
Por essa ocasião, nas minhas subidas à
aldeia, em tempo de férias, ia sabendo de Zé, por quem tinha sincera amizade,
caldeada (no mais lídimo sentido da palavra) nas minhas escapadelas para à
oficina de Ti´ Alípio, onde, deslumbrado, acompanhava o contorcer do ferro em
brasa e a metamorfose de sons na bigorna sob a força do martelo, donde saltavam
fagulhas patéticas, que a meus olhos eram fadas ou estrelas caídas de um céu
por mim inventado...
Sabia, por isso, que o Zé ia
sobrevivendo, jeira aqui ou ali, ou como criado de lavoura por um período mais
ou menos longo, de algum lavrador mais teimoso, resistente aos caminhos da
emigração, para quem o cuidado das terras não lhe permitia partir, nem o fruto
do trabalho lhe permitia ficar.
Tempos negros, esses!...
Em minha ânsia de por em dia o balanço
de meus afectos, perguntava, então, também pela Merência. Todos os irmãos
haviam emigrado, mas ela ficara e era o amparo da mãe, cuja doença prendera, sem
remédio, à enxerga.
E, entre sorrisos mais ou menos explícitos
e insinuações picarescas ia então eu cimentando a suspeita que a Merência e o
Zé se encontravam, pela calada da noite, no recato dos lençóis, de que o Zé se
escapulia, lesto, já quando a alva brotava no último canto dos galos e
horizonte se tingia das tímidas cores da manhã.
Contava-se até, que um dia,
surpreendidos, entre estevas e giestas, em parte do termo mais distante, o Zé
obrigara o incauto pastor a ficar calado, mediante promessa de lhe guardar as
ovelhas, no dia da festa do Verão, em honra do santo padroeiro da freguesia,
quando os jovens da terra, de fatiota nova, se revolvem em bailaricos e, quando
Deus quer e a ocasião surge, nalgum canto mais esconso, os corpos suados na dança,
se soltam no frémito dos sentidos.
Contava-se, pois, na aldeia, os
encontros clandestinos dos dois amantes, sendo que as más-línguas logo
acrescentavam versão mais picante, posta a circular pelo lesto pastor: ou seja,
que o Zé, fazendo jus à sua alcunha de “sugão”, estaria a amestrar a língua nas
mais íntimas impudicícias da Merência.
Tal era o falatório e a risada pública
que, pelo Entrudo, entre os gritos e esgares, os “caretos” e os galfarros da
terra, mimavam o Zé, declamando, em coro: - “Haja
decência, Zé Sugão e a Merência!”...
Enfim, uma orgia de gritos e gestos, com
laivos de crueldade...
O picaresco episódio acentuou o divórcio
com o povo da aldeia. Em olímpico desprezo, porém. Raramente se viam juntos durante
o dia, mas pela calada da noite encontravam sempre engenho e arte de se amarem,
quando a mãe da Merência dormia ou, quando já mais débil na doença, não podia
atazanar a filha, “que era a sua
desgraça”...
Assim, por anos a fio. Claro que a lei
da vida, por vezes, é justa. A mãe da Merência acabou por falecer e, com seu
óbito, foram removidos os últimos obstáculos à felicidade daquele perene
noivado. Sem encargos familiares, eram ambos livres de se “juntarem” e o povo
da aldeia que se danasse...
À Merência coubera em partilhas o
terreno confinante à horta do tio Alípio centro das desavenças antigas entre as
duas famílias, que constituem, por assim dizer, os liames ignorados desta
história. Assim, à margem das regras, subvertendo a ordem social, juntaram os
trapinhos e os escassos atavios, que as vidas, essas, há muito haviam sido
fundidas numa única órbita, como os deuses costumam desenhar para os amantes
predestinados.
A horta, que de bom grado o Zé trocara
pela forja, em ajuste amigável com o irmão, agora um pouco mais alargada com
herança da Merência, era uma espécie de jardim das delícias. Reconstruíram o
casebre que lhes servia de guarida, à força de braços e teimosia, dando ao
escasso cubículo condições mínimas de dignidade e esmerada limpeza que a
Merência nessas coisas não transigia. O Zé, com ajuda de uma junta de bestas
tratava da vinha, da meia dúzia de oliveiras e de algum cereal. Ela, a Merência
tratava do “seu” Zé e da horta e dos primores, quando chegava o tempo.
Arredados assim do mundo e do destino da
aldeia, onde raramente desciam...
Quis o acaso (ou a estranha razão dos
afectos) que numa tarde de fim de Verão, quando o narrador percorria veredas e
memórias, em viagem circular de um tempo sem regresso, fosse desembocar ao
mítico lugar, onde o Zé e a Merência, havia construído o seu destino - o seu
porto de abrigo e o seu mar.
Devo esclarecer que, embora sabendo das
suas vidas, como ficou referido, haviam passado mais de vinte anos, desde a
última vez que o narrador falara com o casal. Receava, por isso, não ser
reconhecido e, em última análise, até que a sua vista pudesse ser entendida
como intromissão abusiva. Como bem se sabe, existem universos assim, em que uma
qualquer vibração exterior, por breve que seja, é bastante para os perturbar.
Estava, por isso, receoso o narrador e
hesitou por uns breves segundos. Mas afoitou-se, movido não tanto pela antiga
amizade, mas sobretudo – sabe-o agora – pela busca dele próprio, no registo de
outras vidas...
Apareceu a Merência ao sinal discreto no
portão. Acompanhada de belo exemplar de um cão malhado, que foi esfregar-se às
suas pernas e prontamente afastado pelo zelo da anfitriã.
- “Ah,
és tu!...” – exclamou sem qualquer surpresa, como se fosse ontem o último
dia, em que se tivessem visto, ou se como a visita tivesse sido previamente
anunciada. Limpou as mãos no avental e apertou a minha, com um vago sorriso de
acolhimento. E, sem mais, apontando uns metros mais abaixo:
- “O
Zé está lá em baixo, junto à figueira tentando arranjar a parede do poço!...”
Desceu o curto espaço, evocando memórias
vagas, que o local lhe despertava e deparou o narrador com Zé, absorto no seu
trabalho.
Foi, portanto, o visitante quem quebrou
o enguiço do tempo e do lugar. E num vago sorriso, ensaiado nas lides
citadinas, em ironia que não passou despercebida, exclamou, prazenteiro, mal o
Zé levantou os olhos, incrédulo:
- “Escusas
mostrar essa cara, a Merência abriu-me o portão e eu entrei...”
- “Pois
é, a Merência é assim: abre a porta ao primeiro vagabundo que passa” -
ripostou em sorriso aberto.
Acolheu-me com um forte abraço. E,
depois de algumas palavras de circunstância, cada um de nós tentando fazer
prognóstico da última vez que estivéramos juntos, com ar sério e formal, o Zé
disparou:
- “E
eu p´ra aqui a tratar-te por tu e não devia. Ouvir dizer que eras “doutor de
leis”...
- "Pois
sou Zé, mas não te embaraces... Para dizer a verdade, sou mais uma espécie de ferreiro
sem forja – ripostou o narrador numa gargalhada, mal sabendo do que ria, se
da frustre memória dos tempos de infância, se da finíssima dor da actualidade.
O olhar do Zé, como aço, procurou então
o olhar do narrador e assim ficou, por momentos, devassando-lhe as entranhas da
alma. E, depois, desta nesga de silêncio, em que cada um se perdeu, o Zé
alargou o olhar à Merência e aos dois palmos de terra que eram seus e ripostou:
- “A
minha forja agora é esta. Espero que sejas tão feliz quanto eu sou...”
Insistiu ainda o Zé num copo de vinho
branco, “como não se bebe em Lisboa”,
fresco, retirado com esmero das águas frias do poço. E beberam numa partilha
genuína, com a brisa da tarde a escoar-se por entre os dedos...
A saída, a Merência surpreendeu-o com um
ramo de inesperados lírios:
- “São
para a tua mulher, que adivinho merecer-te...”
Tanto quanto pode, disfarçou o narrador
a pontinha de emoção que a delicadeza do gesto desencadeara e, no seu jeito de
camuflar-se em palavras desajeitadas, exclamou em arroubo de sinceridade:
- “Mas,
Merência, como eu não sou digno das tuas flores, porque não vais tu
entregá-las? E assim ficavas a conhecer a família toda...”
Que não, que não iria!... Havia meses
que não descia à aldeia e não tencionava ir lá tão cedo...
E assim se despediram. O narrador com um
ramo de flores debaixo do braço. Sabendo uns e outros que passaria tempo sem
mais se verem. E que vida, em seus caminhos cruzados, dura apenas o perfume de
uns lírios...
……………………………………………………………………
Soube, agora, que o Zé e a Merência
foram encontrados mortos e abraçados, por um pastor que por ali passava, atraído
pelo latir magoado do velho Piloto malhado.
Manuel Veiga
Nota:
Afinal, penitencio-me
Ainda há cães que sabem latir...
M. V.
terça-feira, abril 03, 2018
ANTI ZOO
Depende…
Depende?
Sim, depende: gosto de
gatos que rosnem
E cães que miem!...
( ?!...)
“Cão que ladra não
morde!...”
..........................................................
Manuel Veiga
segunda-feira, abril 02, 2018
Cálida Epifania
Neste regresso uma cálida epifania
Como se o tempo fora
compasso e a memória
Movimento de cores redivivas,
A desenhar os timbres
No eco dos passos
Sou o medianeiro desse tempo
Que se funde e se solta
para além da palavra
E dos actos. Respiração abstracta
Dos lugares ainda
grávidos
A borbulhar ausências
Dispo-me e transido de
sonhos imperfeitos
Abraço a lassidão e
deixo que o corpo
Se filtre e percorra o itinerário
Das perdas. E no
movimento
Das águas subterrâneas
Se derrame como vestígio
E alicerce.
E que os nomes se inscrevam
Na pele ardente.
Manuel Veiga
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Sem Pena ou Magoa
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