sexta-feira, abril 27, 2018

CLARIDADE(S) ...



A Poesia é o “grão na voz” na fala do Mundo
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A Música é iluminação do silêncio
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A Vida é a decomposição do Acaso
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As Estrelas não amam – brilham!
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O Amor é o tédio dos deuses
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Tudo e Nada são balões coloridos
Onde cegamos os olhos.
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Sem mácula o rumo dos caminhos:
São os passos quem traça os destinos
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Na escala do Tempo
Todas as viagens são início
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Manuel Veiga
27/04/2018



quinta-feira, abril 26, 2018

SEARA NOVA N.º 1742 - EDITORIAL






Do rio que tudo arrasta se diz que é violento, mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem”. Esta frase lapidar de Bertholt Brecht, cujo sentido último atravessa toda a História, ganha a sua maior força e expressividade, a partir da época moderna, mediante as diversas configurações do sistema capitalista à escala mundial e nas consequentes irrupções de violência e tensão social que, com maior ou menor intensidade, se verificam por todo o Mundo.

Como a sociologia e a psicologia explicam, a violência social, em particular a violência urbana, está estritamente correlacionada com a exclusão e a pobreza. Os excluídos dos benefícios do desenvolvimento económico e social tendem, na sua conduta, a ignorar as fronteiras da sociabilidade e da civilidade, rejeitando os comportamentos padrão e as práticas sociais comuns, dadas como adquiridas, regredindo, em muitos casos, para estádios próximos da barbárie.

Não se pode, pois, com objectividade, ignorar que a violência do Mundo actual, institucionalizada ou não, seja no Médio Oriente, seja no Brasil, quer se exprima como violência de guerra, quer se exprima como violência difusa nas grandes metrópoles, se inscreve no âmago das sociedades modernas e traz sempre no seu bojo a miséria e a pobreza, num ciclo infernal de auto-reprodução, que multiplica os excluídos da sociedade. E, em contra ponto, a mesma matriz de exploração que exclui biliões de pessoas em todo o Mundo dos benefícios da civilização, gera, por outro lado, uma escassa mão cheia de super-ricos, numa escala de concentração de riqueza inimaginável.

De facto, conforme denunciou a ONG britânica Oxfam, por ocasião do último Fórum Económico Mundial, em Davos, as oito pessoas mais ricas do planeta possuem tanta riqueza, (o montante assombroso de 427 biliões de dólares), quanto a metade mais pobre da população mundial, numa proporção de 8 para 3,6 biliões de pessoas. Com a agravante de que esta situação "indecente" que "exacerba as desigualdades", tem tendência para aumentar de ano para ano.
 (…)

Também em Portugal, estudos recentes do Banco Central Europeu (BCE) revelam que o peso da fortuna dos mais ricos no conjunto da economia, ou seja a concentração da riqueza e aumento das desigualdades sociais “é ainda maior do que se julgava”, assinalando que, no caso português, um quarto da riqueza está nas mãos de 1% da população.

Acresce que dados da própria União Europeia revelam que a “pobreza no trabalho”, ou seja, a percentagem das pessoas que trabalham e cujo rendimento disponível fica abaixo do limiar de pobreza tem vindo a aumentar. Assim, se para além do desemprego e dos desníveis salariais entre homens e mulheres, por exemplo, o trabalho não tira as pessoas da pobreza, importa então reconhecer que estamos perante uma sociedade, não apenas injusta, mas que raia a esfera da sua própria desagregação.

Se bem julgamos, face ao aumento da produtividade e do rendimento nacional, importa pugnar por mais justa repartição da riqueza produzida, mediante o aumento dos salários, cuja urgência se impõe como razão de erradicação da pobreza e da exclusão social no País.

E, noutro plano, face aos desígnios de uma governação que se pretende de esquerda, importa também pugnar pela valorização do trabalho, como factor decisivo de socialização e coesão social, o que tem como pressuposto questionar a economia, a empresa, as relações mercantis e o mercado como regulador supremo da economia e da sociedade.”

(Do Editorial)

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domingo, abril 22, 2018

O BRONZE E O TIMBRE


Asas ainda. Latejante flor de Abril
Alvoroçada. E desvelos a inflamar gargantas.
E memórias. Como se o tempo fosse
Sentido único.Veredas que se soltam e se derramam
No excesso.

E os olhos em febre

Que nada nesse caudal é mesquinho:
Nem o canto, nem as lágrimas
Nem a desmesura
Das bandeiras.

A rudeza onde estendemos o pão
É pedra afeiçoada. E frutos que germinam
Nas margens. E se desprendem
Em maciez de bocas
Sôfregas.

Na altivez precária do porte
E dos gestos perfilam-se então antigos ritos
Que rebentam as grilhetas
De tão pródigos.

E no cerco dos dias presentes
Na cidade sitiada de sombras
Nos obscuros heróis corroídos
Herdeiros do medo e da fome

O bronze e o timbre
Modelam o rosto do tempo
E afeiçoam o imorredoiro grito.

Viva a Liberdade!...

Manuel Veiga

(poema reeditado)





quinta-feira, abril 19, 2018

SOL E NADA...


Tensão do arco
E a palavra aberta
Avançada
No limite
Da seta.

E o poema - sol e nada
Meteorito de fogo
E água

Que se derrama na elisão  
Da curva e explode
E arde

E se ilumina
Poalha e cascata de lume
Nas obscuras dores
Da humanidade.


Manuel Veiga



terça-feira, abril 17, 2018

EM LOUVOR DA AMIZADE...


Amizade é um alagar-se por dentro
Num lento movimento sem gestos: quase mudo!
Uma música sem ritmo, um quase-nada
Que assinala e acrescenta
E sem tempo se demora
A somar gente
À gente.

E nada pede. E se deixa assim ficar     
A bailar...

Como se nada fora!...

Manuel Veiga

"CALIGRAFIA ÍNTIMA" 
POÉTICA Edições - Pág. 42
Maio 2017
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(Reedição)





segunda-feira, abril 16, 2018

ANTI CLÍMAX...(editado)


- “ O teu poema é fantástico!... 
Fiquei sem palavras!...”

- “ Compreende-se: 
As palavras são esquivas!...”



Manuel Veiga

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Versão Original 

“ A tua performance é soberba! 
Fiquei sem palavras!...”

- “ Compreende-se: 
As palavras são esquivas!...”



Manuel Veiga


quinta-feira, abril 12, 2018

Do AMOR e Da GUERRA - Fragmentos






(…)
“Manuel Veiga, neste romance em que subverte, como experiência diegética, as normas aristotélicas, investindo nos processos brechtianos, que Barthes também defendia, da fragmentação discursiva, anti-aristotélica, o espaço é arquétipo, diz o autor, expressa claramente estes sinais. A par, naturalmente, de uma contextualização autobiográfica do conflito e da vida (os amores, o medo, as vivências, as memórias geracionais que Manuel Veiga, com hábil contenção narrativa, introduz no corpo discursivo): uma dimensão pedagógica e pragmática; a assunção da verdade como método estruturante do narrado, o estigma da culpa e da responsabilidade, a determinante intervenção no discurso do narrador/protagonista, do autor/personagem, uma dextra capacidade de ficcionar os factos, de reflectir sobre os elementos do vivido entrelaçando-o com a reflexão do tempo social, afectivo e histórico – e o sujeito como interlocutor privilegiado entre o narrador omnipresente e o leitor.
(---)
Se o acto de escrever é um processo de responsabilização – cultural, cívico e ético, Manuel Veiga, ao tratar neste livro a língua e as palavras com o peso e a substância simbólica que elas devem ter, e nessa busca de signos se alimenta (o que já acontecia em Notícias da Babilónia), que da guerra, e da vida, traça amplas similitudes entre a realidade e a ficção, entre o discurso íntimo e a exposição pública que os conflitos, por serem do domínio do histórico, implica, mesmo quando a palavra fica angustiantemente presa na liana, a escrita de Manuel Veiga atinge, quase sempre, esse estágio supremo de configuração, de imanente e visceral criação literária, acrescentado ao discurso os elementos eufóricos e disfóricos da sinceridade: emocional, ideológica, afectiva, sexual.

Raramente a literatura portuguesa deu a dimensão trágica, o absoluto do drama, do épico, como nos textos em que a Guerra Colonial surge como suporte ficcional. É a tragédia do homem só com sua consciência, com o seu conflito entre o dever, a justiça e a dignidade – o homem e o seu estupor existencial, a sua circunstância, em estado de inquietação e perplexidade, e esses estágios do ser, essa essência, raramente a literatura portuguesa conseguira traduzir tão rigorosamente.

Outro dos elementos que Manuel Veiga introduz no discurso narrativo é o do humor, do sarcasmo, da ironia, da capacidade de auto-análise, de desmontagem do drama (simultaneamente individual e colectivo) através do humor; a distanciação do objecto ficcional, a contenção do trágico.

Este novo livro de Manuel Veiga, estes fragmentos cumulativos que atravessam as memórias da infância, da adolescência, da descoberta do medo, do amor, do absurdo, dão-nos um romance modelar nos seus plurais modos de dizer, de (d)escrever um dos períodos mais sofridos, em termos sociais, históricos e políticos (mesmo quando o sujeito está fora da história, repete o autor), da segunda metade do século XX português. Um épico geracional que nos diz, que rigorosamente, na sua assumida dispersão narrativa, nos reflecte e questiona.

Um livro mais a juntar ao largo espectro canónico da literatura que expressa o conflito Colonial, mas que transcende esse período, esse tempo mordente e ácido: abre a outras e mais profícuas coordenadas, ao investir nos modos de abordagem estética, do fenómeno literário”.

Abril 2018

Domingos Lobo, escritor, poeta e crítico literário

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Nota:

"Do Amor e da Guerra" está em fase de edição. Será apresentado no final do próximo mês de Maio e estará disponível nas livrarias durante o mês de Junho.

M. V.


terça-feira, abril 10, 2018

Cortemos Cerce Os Enleios


Importa cortar as águas Lydia
Que também as águas corrompem!
E nada detém o movimento
Das correntes…

E nem sempre as pontes são regresso
Nem os barcos são viagem. Nem as âncoras
Enseadas límpidas.

Mergulhemos Lydia no fragor das cascatas
E na nascente das ribeiras. E que nossos corpos
Sejam os únicos afluentes.
E apenas as margens
Aluvião dos dias.

E os dedos entrelaçados o açude
Das águas sufragadas. E a razão de nossos gestos.

E a copa dos salgueiros e os frondosos freixos
Sejam o único alimento das sombras.
E o sol a vibração de nossas almas
Vagabundas.

Derrubemos Lydia todos os arcos.
E todas as glórias. E todas as pontes.
E todos os triunfos.

E cortemos cerce os enleios.

 E amemo-nos. Antes que a deletéria espuma
Nos tolha. E macule a inocência
Dos sentidos.


Manuel Veiga

Nota
Lydia é uma criação literária de Ricardo Reis

sábado, abril 07, 2018

SOLIDARIEDADE COM O BRASIL


(...)

 “O que importa agora é entender :

porquê esta sanha contra um operário brasileiro que teve a ousadia de se tornar exemplo mundial de Presidente da República e criar um programa para acabar com a fome de 50 milhões de cidadãos;

retirar as crianças do trabalho escravo;

integrar todos os brasileiros no sistema jurídico constitucional;

criar medidas para permitir que todos os estudantes, quaisquer que sejam as origens étnicas, possam cursar as universidades;

abrir o caminho de desenvolvimento para todas as regiões do país e levar água e energia elétrica para todas as casas;

apoiar as mais diversas iniciativas de produção e criação de emprego;

atender aos problemas de saúde dos milhões de brasileiros;

promover a integração do Brasil nos mais altos escalões da política mundial;

projetar a economia brasileira em associações internacionais pioneiras;

afirmar a soberania da Nação perante todo o planeta;

cooperar com os países latino-americanos para superarem as condições de atraso e subdesenvolvimento;

receber da ONU os louvores pelas conquistas democráticas que animaram os países africanos e asiáticos, ainda em condição de miséria e domínio colonial disfarçado, a levantarem a cabeça ...”

se calhar, foi exatamente por Lula ter feito tudo isto que o imperialismo animou o processo golpista que Temer iniciou e os juizes de vários escalōes se prestaram a dar um tom de justiça."

ver  Zilah Branco


sexta-feira, abril 06, 2018

A Merência


Recordo-me da Merência, espigadota, de cabelos ruivos e sardas dispersas pelo rosto leitoso e bem desenhado. Um pouco misteriosa nos seus silêncios, arredia às brincadeiras mais ousadas dos rapazes que, com ela e outras rapariguinhas se juntavam no adro da Igreja, depois das aulas, como potros selvagens, nos fins de tarde daqueles longínquos anos de Primavera. E quando algum, mais afoito, lhe levantava a ponta da saia ou, no pretexto das brincadeiras, atrevia a mão aos seios púberes e, ela soltava, numa indignada recusa:

- “Vê lá se apanhas um estalo!...”

Junto ao adro, descaindo um pouco para oeste, rematando o pequeno largo, como vértice da rua da Igreja e a rua mais estreita da Calheta, era a forja do Ti´ Alípio. De essencial direi apenas que o “Tio” Alípio, viúvo, criava dois filhos ainda tenros, à força de marteladas na forja e do esgravatar de uns alqueires de centeio, em terras arrendadas, nas ladeiras íngremes dos rios da minha infância.

O Manuel, o mais velho, - em estrita divisão social do trabalho (isto sou eu agora a falar...) - fora destinado às agruras do centeio inóspito e ao cultivo de uma pequena horta a uns escassos quilómetros da povoação, a qual, por razões que não antecipo, irá ser o mítico lugar do desenlace desta “estória”.

Para o filho mais novo, o Tio Alípio havia decidido que seria ferreiro e continuar assim a tradição da forja, apontando relhas e aguçando enxadas ou, quando necessário, ajustar as ferraduras de alguma besta. Pensaria o bom do “Tio” Alípio, que reservar para o seu benjamim a tradição da forja seria, certamente, a maneira certa de homenagear a mulher, falecida no momento do parto, de cuja família recebera a oficina.

Acontece, porém, que o Zé - é esta a sua graça, embora mais conhecido por Zé “Sugão”, já que em criança compensou, durante largo tempo, a carência de afectos maternais com o “sugar” dos dedos na boca, hábito que pela adolescência se prolongou, mediante a substituição dos dedos pelo permanente sugar de figos secos – acontece, dizia, que o Zé não tinha nem físico, nem vontade para a violência da forja, a que fora acorrentado...

Era, pois, com manifesto regozijo que, espreitando pela fresta da porta da forja, acompanhava as nossas brincadeiras no adro. Uma ou outra vez, quando o pai, por qualquer outro afazer, se ausentava, era certo que Zé, a quem a vida reservara mais agreste passatempo, subia a curta distância das nossas correrias.

Quando assim acontecia, a Merência de olhar fixo no chão, sentava-se no muro do adro, ajeitava a saia, esticando o tecido até à extensão das pernas, cobrindo a penugem incipiente que as adornava e que os últimos raios do sol, descendo no horizonte, davam tonalidades delicadas.

O Zé, a uns palmos de distância, encostado ao muro, sem uma palavra, olhava-a de soslaio, mal disfarçando o pudor do êxtase num pontapé ou outro, como quem enxota visita indesejada, quando inadvertidamente a bola lhe chegava aos pés...

E assim ficavam aquelas duas alminhas, mirando-se, sabe-se lá a que alturas transportados, até que o adro da igreja ficava deserto ou, antes disso, o Ti´ Alípio, qual trombeta do juízo final, reclamava a presença do filho, bem sabendo então o Zé que o deleite do paraíso iria decair no ardor infernal de um bom par de estalos na cara. É que Ti´ Alípio, rigoroso “padre padrone”, não admitia transgressões na ordem familiar e, muito menos que o filho, herdeiro designado de seu brioso ofício, andasse “metido” com a “galdéria” da Merência...

Importa esclarecer que o Ti´ Alípio, ainda que vagamente aparentados, não falava com a família da Merência. Uma antiga rixa sobre partilha de águas com a propriedade confinante à horta que o filho mais velho, o Manuel, zelosamente granjeava, alimentava entre eles um verdete de ódio, que nem festa ou morte, alguma vez haveria de limpar. Toda a aldeia o sabia. E respeitava aquela funesta zanga na profundeza (ou insensatez) da sua autenticidade...

Passaram anos. A infância esgotou-se como um suspiro. Com o alvor dos anos sessenta a aldeia despovoou-se com emigração para França e outras araganças. Entretanto, o Ti´ Alípio falecera. O Manuel largou a junta das escanzeladas mulas e as agruras da horta e do centeio e enfileirou na emigração a salto. O Zé, porém, por lá se deixou ficar, acantonado ao fervor da sua devoção maior...

A forja morreu de estertor natural. O estiolamento, por falta de braços, da produção agrícola tornou-a supérflua. Nem o Zé com isso se importou. Respeitava o nome do pai, mas odiava o seu ofício... E a Merência lá continuava, firme, como estrela polar, marcando-lhe o rumo e a vida...

Por essa ocasião, nas minhas subidas à aldeia, em tempo de férias, ia sabendo de Zé, por quem tinha sincera amizade, caldeada (no mais lídimo sentido da palavra) nas minhas escapadelas para à oficina de Ti´ Alípio, onde, deslumbrado, acompanhava o contorcer do ferro em brasa e a metamorfose de sons na bigorna sob a força do martelo, donde saltavam fagulhas patéticas, que a meus olhos eram fadas ou estrelas caídas de um céu por mim inventado...

Sabia, por isso, que o Zé ia sobrevivendo, jeira aqui ou ali, ou como criado de lavoura por um período mais ou menos longo, de algum lavrador mais teimoso, resistente aos caminhos da emigração, para quem o cuidado das terras não lhe permitia partir, nem o fruto do trabalho lhe permitia ficar.

Tempos negros, esses!...

Em minha ânsia de por em dia o balanço de meus afectos, perguntava, então, também pela Merência. Todos os irmãos haviam emigrado, mas ela ficara e era o amparo da mãe, cuja doença prendera, sem remédio, à enxerga.

E, entre sorrisos mais ou menos explícitos e insinuações picarescas ia então eu cimentando a suspeita que a Merência e o Zé se encontravam, pela calada da noite, no recato dos lençóis, de que o Zé se escapulia, lesto, já quando a alva brotava no último canto dos galos e horizonte se tingia das tímidas cores da manhã.

Contava-se até, que um dia, surpreendidos, entre estevas e giestas, em parte do termo mais distante, o Zé obrigara o incauto pastor a ficar calado, mediante promessa de lhe guardar as ovelhas, no dia da festa do Verão, em honra do santo padroeiro da freguesia, quando os jovens da terra, de fatiota nova, se revolvem em bailaricos e, quando Deus quer e a ocasião surge, nalgum canto mais esconso, os corpos suados na dança, se soltam no frémito dos sentidos.

Contava-se, pois, na aldeia, os encontros clandestinos dos dois amantes, sendo que as más-línguas logo acrescentavam versão mais picante, posta a circular pelo lesto pastor: ou seja, que o Zé, fazendo jus à sua alcunha de “sugão”, estaria a amestrar a língua nas mais íntimas impudicícias da Merência.

Tal era o falatório e a risada pública que, pelo Entrudo, entre os gritos e esgares, os “caretos” e os galfarros da terra, mimavam o Zé, declamando, em coro: - “Haja decência, Zé  Sugão e a Merência!”...

Enfim, uma orgia de gritos e gestos, com laivos de crueldade...

O picaresco episódio acentuou o divórcio com o povo da aldeia. Em olímpico desprezo, porém. Raramente se viam juntos durante o dia, mas pela calada da noite encontravam sempre engenho e arte de se amarem, quando a mãe da Merência dormia ou, quando já mais débil na doença, não podia atazanar a filha, “que era a sua desgraça”...

Assim, por anos a fio. Claro que a lei da vida, por vezes, é justa. A mãe da Merência acabou por falecer e, com seu óbito, foram removidos os últimos obstáculos à felicidade daquele perene noivado. Sem encargos familiares, eram ambos livres de se “juntarem” e o povo da aldeia que se danasse...

À Merência coubera em partilhas o terreno confinante à horta do tio Alípio centro das desavenças antigas entre as duas famílias, que constituem, por assim dizer, os liames ignorados desta história. Assim, à margem das regras, subvertendo a ordem social, juntaram os trapinhos e os escassos atavios, que as vidas, essas, há muito haviam sido fundidas numa única órbita, como os deuses costumam desenhar para os amantes predestinados.

A horta, que de bom grado o Zé trocara pela forja, em ajuste amigável com o irmão, agora um pouco mais alargada com herança da Merência, era uma espécie de jardim das delícias. Reconstruíram o casebre que lhes servia de guarida, à força de braços e teimosia, dando ao escasso cubículo condições mínimas de dignidade e esmerada limpeza que a Merência nessas coisas não transigia. O Zé, com ajuda de uma junta de bestas tratava da vinha, da meia dúzia de oliveiras e de algum cereal. Ela, a Merência tratava do “seu” Zé e da horta e dos primores, quando chegava o tempo.

Arredados assim do mundo e do destino da aldeia, onde raramente desciam...

Quis o acaso (ou a estranha razão dos afectos) que numa tarde de fim de Verão, quando o narrador percorria veredas e memórias, em viagem circular de um tempo sem regresso, fosse desembocar ao mítico lugar, onde o Zé e a Merência, havia construído o seu destino - o seu porto de abrigo e o seu mar.

Devo esclarecer que, embora sabendo das suas vidas, como ficou referido, haviam passado mais de vinte anos, desde a última vez que o narrador falara com o casal. Receava, por isso, não ser reconhecido e, em última análise, até que a sua vista pudesse ser entendida como intromissão abusiva. Como bem se sabe, existem universos assim, em que uma qualquer vibração exterior, por breve que seja, é bastante para os perturbar.

Estava, por isso, receoso o narrador e hesitou por uns breves segundos. Mas afoitou-se, movido não tanto pela antiga amizade, mas sobretudo – sabe-o agora – pela busca dele próprio, no registo de outras vidas...

Apareceu a Merência ao sinal discreto no portão. Acompanhada de belo exemplar de um cão malhado, que foi esfregar-se às suas pernas e prontamente afastado pelo zelo da anfitriã.

- “Ah, és tu!...” – exclamou sem qualquer surpresa, como se fosse ontem o último dia, em que se tivessem visto, ou se como a visita tivesse sido previamente anunciada. Limpou as mãos no avental e apertou a minha, com um vago sorriso de acolhimento. E, sem mais, apontando uns metros mais abaixo:

- “O Zé está lá em baixo, junto à figueira tentando arranjar a parede do poço!...”

Desceu o curto espaço, evocando memórias vagas, que o local lhe despertava e deparou o narrador com Zé, absorto no seu trabalho.

Foi, portanto, o visitante quem quebrou o enguiço do tempo e do lugar. E num vago sorriso, ensaiado nas lides citadinas, em ironia que não passou despercebida, exclamou, prazenteiro, mal o Zé levantou os olhos, incrédulo:

- “Escusas mostrar essa cara, a Merência abriu-me o portão e eu entrei...”
- “Pois é, a Merência é assim: abre a porta ao primeiro vagabundo que passa” - ripostou em sorriso aberto.

Acolheu-me com um forte abraço. E, depois de algumas palavras de circunstância, cada um de nós tentando fazer prognóstico da última vez que estivéramos juntos, com ar sério e formal, o Zé disparou:

- “E eu p´ra aqui a tratar-te por tu e não devia. Ouvir dizer que eras “doutor de leis”...
- "Pois sou Zé, mas não te embaraces... Para dizer a verdade, sou mais uma espécie de ferreiro sem forja – ripostou o narrador numa gargalhada, mal sabendo do que ria, se da frustre memória dos tempos de infância, se da finíssima dor da actualidade.

O olhar do Zé, como aço, procurou então o olhar do narrador e assim ficou, por momentos, devassando-lhe as entranhas da alma. E, depois, desta nesga de silêncio, em que cada um se perdeu, o Zé alargou o olhar à Merência e aos dois palmos de terra que eram seus e ripostou:

- “A minha forja agora é esta. Espero que sejas tão feliz quanto eu sou...”

Insistiu ainda o Zé num copo de vinho branco, “como não se bebe em Lisboa”, fresco, retirado com esmero das águas frias do poço. E beberam numa partilha genuína, com a brisa da tarde a escoar-se por entre os dedos...

A saída, a Merência surpreendeu-o com um ramo de inesperados lírios:

- “São para a tua mulher, que adivinho merecer-te...”

Tanto quanto pode, disfarçou o narrador a pontinha de emoção que a delicadeza do gesto desencadeara e, no seu jeito de camuflar-se em palavras desajeitadas, exclamou em arroubo de sinceridade:

- “Mas, Merência, como eu não sou digno das tuas flores, porque não vais tu entregá-las? E assim ficavas a conhecer a família toda...”

Que não, que não iria!... Havia meses que não descia à aldeia e não tencionava ir lá tão cedo...

E assim se despediram. O narrador com um ramo de flores debaixo do braço. Sabendo uns e outros que passaria tempo sem mais se verem. E que vida, em seus caminhos cruzados, dura apenas o perfume de uns lírios...

……………………………………………………………………
Soube, agora, que o Zé e a Merência foram encontrados mortos e abraçados, por um pastor que por ali passava, atraído pelo latir magoado do velho Piloto malhado.


Manuel Veiga


Nota:
Afinal, penitencio-me
Ainda há cães que sabem latir...

M. V.

terça-feira, abril 03, 2018

ANTI ZOO


 Não gostas de cães? Nem de gatos?

Depende…

Depende?

Sim, depende: gosto de gatos que rosnem
E cães que miem!...

( ?!...)

“Cão que ladra não morde!...”
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Manuel Veiga


segunda-feira, abril 02, 2018

Cálida Epifania


Neste regresso uma cálida epifania
Como se o tempo fora compasso e a memória
Movimento de cores redivivas,
A desenhar os timbres
No eco dos passos

Sou o medianeiro desse tempo
Que se funde e se solta para além da palavra
E dos actos. Respiração abstracta
Dos lugares ainda grávidos
A borbulhar ausências

Dispo-me e transido de sonhos imperfeitos
Abraço a lassidão e deixo que o corpo
Se filtre e percorra o itinerário
Das perdas. E no movimento
Das águas subterrâneas
Se derrame como vestígio
E alicerce.

E que os nomes se inscrevam
Na pele ardente.


Manuel Veiga



Sem Pena ou Magoa

  Lonjuras e murmúrios de água E o cântico que se escoa pelo vale E se prolonga no eco evanescente…     Vens assim inesperada me...