O
toque de clarim acordou o Alferes de seu torpor. Ajustou a farda e os cabelos e
saiu apressado ao encontro dos deveres militares. O “Assobio”, graduado em
ordenança do comando, acompanhado pelo “cabo cozinheiro” aproximava-se de
tabuleiro em riste para prova do rancho.
Cá
fora, alinhados na parada, os militares aguardavam ordem para a última refeição do dia.
FRAGMENTOS XVI
Não sabe o Alferes dos dias contados na
Tabanca. Os trabalhos de alargamento e preparação das instalações militares
prosseguem sobre a orientação competente do furriel Serrão, sobrando tempo ao
Alferes para apascentar suas leituras e ócios, bem avisado, porém, que a sua
participação, pequena que fosse, no movimento académico de contestação ao regime, fora seguramente
notada pelas forças repressivas e que, por isso, sabia ser o exercício
(provisório) do comando militar da Tabanca, medido e escrutinado pelo agente da
Pide, que “zelava” por aquela fronteira do império para que a “ordem e os bons
costumes” reinassem nos mais remotos recantos, tarefa em que era graciosamente acompanhado
pelo Gaspar, seu permanente acólito após a morte do Armando, que o Diabo levou
para as profundezas do Inferno e, no dizer da palavra certa e justa de Dona
Rosalinda, bom seria que, para descanso das suas dores de corpo e da alma, o
Diabo tivesse feito obra completa e, do mesmo golpe, tivesse também arrebanhado
o Gaspar e o maligno senhor Antunes, torcionário de 1ª classe da famigerada
Pide, que escassos anos mais tarde, num tempo de enganadoras Primaveras, em que
o regime colonial-fascista se enredou e se pretendeu regenerar, em vã tentativa
de ultrapassar o isolamento internacional, os torcionários da Pide foram
reciclados em zelosos funcionários da Direcção Geral de Segurança, sendo que
merda era e merda ficou, porventura, mais fétida ainda.
Tinham, assim como se compreende, outro
fito (que não lembrar correrias à frente da polícia) os passos do Alferes
naquela manhã, emoldurada a oriente por um clarão de fogo e, em redor, a
sinfónica chilreada que lhe chegava da mata e do capim, prenúncio de um dia a
crestar a pele da terra e o corpo dos homens.
Colhia-se no despertar da Tabanca, a
atmosfera e os odores acres e os esparsos sinais da humidade da noite a fecundar
o viço das flores e plantas rasteiras e em alguma ou outra ave descuidada ou
caprichosa que teimava em por ali ficar em voo perdido e no choro disperso da
crianças e no som cavo dos monocórdicos pilões moendo os escassos grãos e
na revoada de mulheres, dirigindo-se para as colheitas na bolanha, em seus
risos em cascata, despidas em coloridos panos e vestidas de frescas
gargalhadas.
Este mosaico de cheiros, sons,
movimentos e cores imiscuía-se, como música apetecível, na sensibilidade do
Alferes, tão empolgado e descontraído se sentia, por efeito de contágio, que
ensaiou um assobio de pássaro e um subtil piscar de olho para o “apoucalhado”
mancebo da Serra da Gardunha, que um dia, não distante, mas com o peso de
séculos, como mancebo “apoucalhado” chegou para recruta ao Regimento de
Cavalaria e depois adoptado por um bando de reguilas alfacinhas do Bairro de
Alcântara e com eles renascido na fecunda dádiva da camaradagem e da amizade e
hoje, então “apoucalhado”, se reconhece no glorioso nome de Eusébio da Silva
Ferreira, seu nome de baptismo, arvorado, com tal nome, em “ordenança do
comando”, por ordem de serviço lida em parada, a que acumula, por sua vontade e
alta recreação, as garbosas funções de “impedido da messe oficiais” e, para o
Alferes, mais que impedido, leal “escudeiro”, agora ambos embarcados naquela
lide, provisória que seja, da “governaça” político militar da Tabanca.
Acontece então que o Alferes, após a
cerimónia do hastear da bandeira e do briefing diário, com a mente a martelar
nas palavras que Dona Rosalinda, em suas amorosas preocupações e desvelos
maternais, por entre robustos e devoradores beijos e meladas carícias, o
alertava para os perigos do mundo e as “emboscadas” da vida numa Tabanca longínqua,
em seu entender bem mais funestas que as da selva “meu filho, tu és bonito por dentro e por fora, tens uma alma linda e já
provaste que tens fibra, mas nem imaginas a ruindade da gente com quem tens que
lidar, por isso, meu filho vai falar com o senhor Gomes, ele está velho e
gasto, quase não vê e mal pode andar, mas vai falar com ele, vê se lhe arrancas
o segredo da sua vida e as razões por que os pretos o respeitam e os brancos o
escutam, ou escutavam, pois esta porra da guerra meteu o mundo de pernas para o
ar e já não se sabe quem é quem, mas vai falar com ele, tu és lindo também por
dentro e o senhor Gomes vai gostar de ti, estou certa, e em alguma coisa há-de
falar que tu precises saber para lidar com essas bestas do Antunes e do Gaspar
que tudo farejam e pretendem dominar, seja pela força, seja pela perfídia, como
aconteceu na provocação com a cena da bandeira portuguesa mal hasteada pelo
Sargento de quem fazem gato-sapato, pelo Antunes e pelo Gaspar congeminada e
que tu, tão novinho e tenro, soubeste desenvencilhar-te, com desenvoltura”.
Proponha-se pois o Alferes seguir o
conselho avisado de Dona Rosalinda, tanto mais que fervia em determinação para
conhecer “senhor Gomes”, o primeiro colono a estabelecer-se no local e, como
corria a meia voz entre a oficialidade do Comando Territorial da Guiné, à
Tabanca chegara décadas anteriores, para cumprir pena de degredo naquelas inóspitas
paragens tropicais, pagando com o corpo a “ousadia” de ser rebelar contra a
injustiça, ele brioso cabo da marinha, com o sangue na guelra e com o sonho no
olhar altivo, “embarcou” com outros seus camaradas, oficiais, sargentos e
marinheiros na acção revolucionária, que haveria ficar conhecida como “Revolta
dos Marinheiros” de 1936.
Mas se a vontade dos homens guia seus
passos, o acaso ou imprevisto, ou um qualquer absurdo e interminável jogo de
dados determinam os desígnios individuais e colectivos, em que a vida se
esgota. Desejava, pois, o Alferes, nessa manhã encantatória, conhecer o
“mistério” do desterrado “senhor Gomes, como sábia e amorosamente Dona
Rosalinda o incentivava, e saiu-lhe a caminho Sanhá Mané, filho do Régulo,
“alferes” do corpo auxiliar do Exército Português e consagrado Chefe das
milícias da zona de intervenção da Tabanca, a reivindicar o “comando”, não das
milícias, que detinha, mas o comando militar de todo destacamento, como
veremos.
Manuel Veiga
2 comentários:
Caro Manuel,
Os teus Fragmentos são momentos de leituras singulares e de
uma admirável qualidade literária.
Saliento na tua envolvente narrativa, a humanidade das
personagens e assim, como na vida os "excluídos" ou
"rebeldes" sempre fazem deste mundo melhor, nem que
seja na beleza manisfestada através da literatura.
A "Dona Rosalinda" e "Senhor Gomes" são exemplos
desta expressão sublime humana!
Muito Grata por este momento de leitura!!
Bjs
Sabe, Manuel, belíssima narrativa. Suzete está coberta de razão.
Como não sou bobo (risos), bebi dessa seiva narrativa e confesso que tive ímpetos de roubar-lhe os frutos, mas fui sensato.
Abraços, caro amigo,
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