O Mestre Lao Chang tinha um discípulo
muito amado, de nome Lie Tsé.
Lie Tsé procurava aprender a arte de
julgar. Durante três penosos anos, Lie Tsé leu todas as leis do Império,
consultou todos os mandarins, visitou todas as prisões. E regressou junto do seu
Mestre, apto a qualquer exame.
Este não o recebeu.
Então Lie Tsé fechou-se no seu jardim,
ignorando todos. Meditou e orou. Ao cabo de três anos, bateu novamente à porta
de Lao Chang.
Esta permaneceu cerrada.
Lie Tsé compreendeu então que não tinha estudado,
nem meditado o suficiente. Despediu-se dos pais e recolheu-se numa montanha,
onde viveu asceticamente, entre êxtase e pergaminhos, durante mais cinco longos
anos.
Quando desceu da Montanha (...) não foi
sequer abraçar os pais: correu logo à casa de Lao Chang.
Não obteve senão silêncio.
Sem desânimo, Lie Tsé saiu e passou à
terra dos bárbaros. Aí permaneceu mais quatro anos, estudando e aprendendo
outros costumes de julgar. Regressou trazendo na sacola novidades e presentes
para Lao Chang.
Os portões da habitação deste
permaneceram frios e impenetráveis.
Então, Lie Tsé passou a comportar-se
como homem normal, relembrando o ensinamento de Lao Tsé:
“Se estudar renunciares/cuidados deixas
de ter/pois que diferença há-de haver/entre negares e afirmares?/ (...) pois o
estudo é imenso/ e fica sempre suspenso”.
Com estes versos consolou a sua assumida
leviandade. E um dia, quando houvera já esquecido as leis e os julgados e as
masmorras, passou pelo jardim de Lao Chang. Foi aí que este pela primeira vez o
honrou com um olhar.
Lie Tsé começou a compreender.
Cinco anos mais tarde, Lie Tsé
limitava-se a considerar os actos humanos em silêncio, timidamente, quase com
pudor. Foi nesse estado que voltou à casa do Mestre.
Aí pela primeira vez o viu ao de leve
sorrir.
Entusiasmado, Lie Tsé levou sete anos a
procurar olvidar o negro e o branco, o avesso e o direito, como preparação para
a maior tarefa: esquecer o bem e o mal.
(...)
Ainda não preparado, apresentou-se
arquejante na sala do Mestre, o qual, num gesto vago, pela primeira vez lhe
indicou um assento.
Voltou Li Tsé a vaguear pela sua terra
natal e a correr mundo, tido como louco, pois já não distinguia nenhuma cor,
não mostrava preferência por nenhum sabor, não proferia nenhum juízo. Ou
fazendo-o, baralhava-os. Ora chamava amarelo ao verde, ora pérfido ao amável.
Os pais choravam-lhe o juízo perdido.
Quando em si passou a ser frequente
encolher os ombros a tudo e tudo aceitar como possível, sem sequer trocar “o em
cima” pelo “o em baixo” nem recto pelo torto, tomou o caminho do jardim de Lao
Chang.
Lao Chang não o reconheceu, mas
venerou-o como a um Mestre. Ao ouvi-lo sobre as artes de julgar, pensou em
recomendá-lo ao seu velho discípulo Lie Tsé ausente já nove anos.
E Lie Tsé, (...) recordou então
intimamente, saboreando o seu triunfo :
- “Não será teu Mestre aquele a quem escutes, mas aquele
de quem aprendas; nem será aquele que te dê lições, mas o que deixe no teu
coração o sinal dos seus ensinamentos; (...); nem o que te brinde com as suas
palavras, mas antes o que te excite em ti os seus próprios estados
espirituais.”
In
“O Verdadeiro Clássico da Vida Perfeita” – Lie-Tseu – Philosofies Taoiste.
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Mas por que raio me lembrei deste conto
antigo, aprendido há anos na obra de um velho Mestre de Direito?
Vá lá saber-se...
Manuel Veiga
9 comentários:
Nada melhor que um domingo de manhã para 'mergulhar' na metafísica do Nada.
Ainda bem que te lembraste, Manuel, deste texto milenar, sobre o sentido da vida e a condição humana.
Graças a ele, pesquisei o Vazio Perfeito - do qual nada sabia e do Autor, o mesmo e deparei-me com um tratado em:
http://textosdemetafisica.blogspot.pt/2014/04/lie-tzu-tratado-do-vazio-perfeito.html?m=1
que, não o tendo lido ainda na íntegra, me deixou mto interessado.
Um bom dia, Amigo e um forte abraço.
Não saberei julgar...
O Taoismo é uma filosofia existencialista de Sabedoria espiritualista
que nunca incorporou uma doutrina dogmática religiosa e esta pureza
filosófica me encanta e gostei de saber que o Poeta aprecia também.
Tenho dois livros essenciais da filosofia Taoista que eu recomendo e
tenho como preciosidades que são: A Vida De Chuang Tzu e Tao Te Ching.
Bom domingo, Manuel!
Adorei a partilha do texto junto com a música.
Bj.
Foi bem lembrado. Uma história que ensina muito e que gostei de conhecer
Ocorre-me, não sei se a despropósito, que tendo percorrido muitos lugares por essa África, que já foi Império, não havia um único soba que entregasse um qualquer caso à autoridade colonial (Chefe do Posto)sem que antes reunisse o Conselho dos Mais Velhos a fim de produzir juízo. Não sei se o direito angolano "bebeu" esses saberes... ou se antes os foi beber à Pátria colonizadora*...
(*acabo de confirmar que assim foi http://www.fd.ulisboa.pt/wp-content/uploads/2014/12/Vicente-Dario-O-lugar-dos-sistemas-juridicos-lusofonos-entre-as-familias-juridicas.pdf )
Só pela melodia já valeu a pena. E o conto é fantástico. Um percurso sem desânimo. Retenho:
“Não será teu Mestre aquele a quem escutes, mas aquele de quem aprendas; nem será aquele que te dê lições, mas o que deixe no teu coração o sinal dos seus ensinamentos; (...); nem o que te brinde com as suas palavras, mas antes o que te excite em ti os seus próprios estados espirituais.”
Grata, Manuel.
Beijinho.
A arte de julgar. Que arte mais difícil...
"“Não será teu Mestre aquele a quem escutes, mas aquele de quem aprendas".
Fantástico como foste desenterrar a sabedoria oriental. É porque precisaste de a recordar e de nos fazer recordar a nós...
Uma boa semana, meu Amigo.
Um beijo.
-Não julgues para não seres julgado". E o julgava o Lie Tsé!
Há textos que foram arrumados nas prateleiras do subconsciente e, de repente, saltam-nos aos olhos. Um bom texto para pôr a mona a pensar.
Abraço.
Esse teu "velho Mestre de Direito" também apreendeu o sentido do último parágrafo do conto. E tu também, por isso te veio à memória (e certamente que não foi a única vez). É que, hoje em dia, não há paciência para "ensinar a pescar", dá-se logo o peixe, não há tempo para formar (dá muito trabalho); daí que também não haja tempo para pensar; e que dizer do ato de julgar? Assistimos a julgamentos diário na praça pública...
Grata pela partilha.
Bjo, Manuel
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