Um destes dias um poeta,
que muito estimo,
Meio por graça disse-me
que minha poética caligrafia
Era escrita à mão ainda e,
se por acaso, eu sabia
Que a poesia, toda ela,
hoje em dia, salta
Das entranhas do
computador e se derrama
Pelas ruas citadinas em gigantes
placards
E montras, não de
chocolates, mas de iguarias
Bem recicladas, como
noticias esventradas,
Ou bombas por explodir
algures em qualquer lugar
Ou esquina do mundo. E se
consome sem sal
Em fulgor hiper-realista.
E se ilumina consumista
Nas escórias do luxo. E do
lixo.
Eu não sabia, por isso,
saí da refrega com
O rabo entalado qual cachorro
de feira enxotado
Pela cozinheira, a
polvilhar a mistela do dia.
Mas fiquei a matutar na
minha. E como no fado
Dedilhado em que o
fadista se esganiça, fingindo
Que chora, o que então
não disse, vou pois
Dizer-lhe agora que
prefiro a poesia me venha
À mão como “dobrada
fria” em vez do arrepio
Fervilhante dos bits a
formigar nas teclas
Dos computadores. E que
dispenso o incenso
E trejeitos do
hip-hop. E a borbulha tardia.
E que a culinária literária
me faz azia a derreter-se
Nas bocas hipermodernistas.
Ou nas tretas da grande
farra das letras.
Manuel Veiga
1 comentário:
As palavras desenhadas, por um traço que é só seu, serão mais lentas, e mais vivas.
A caligrafia, tão idiossincrática. A apropriação das palavras, e com elas de conceitos e abstrações. Tornam-se pretença, prolongamento visível do pensamento.
Acho bonito (dito com ingenuidade, ou inocência, não sei bem...), que se escreva com lápis ou caneta, numa folha em branco.
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