À hora certa, o helicóptero da Força
Área, trazendo no bojo o General, Comandante em Chefe do Comando Territorial da
Guiné, atordoou os céus da Tabanca e, por entre uma fumarada de poeira e calor
húmido, poisou, numa dança de ave pré-histórica, no centro do aquartelamento,
parada militar e campo de jogos da criançada indígena, que, à distância, observava
a insólita ave e o aparato com olhar virgem, um pouco atemorizado, como quem
recebe dos céus algum prenúncio misterioso e trágico, e o general-visitante
fosse o deus da guerra, o que, de certa forma não deixava de ser verdade, sendo
porém certo que, por outras linhas de conhecimento se manifestava a sua
majestade, pois os sinais de poder e a liturgia do seu exercício atravessam
todas as culturas e tempos e latitudes, bem se sabendo, no entanto, que quanto
mais sofisticadas as culturas, mais subtis os sinais do poder simbólico de que
os “feiticeiros”, as “divindades” e os “chefes” de todas as épocas são
investidos.
O General, fardado de camuflado e as
estrelas de general do Exército Português discretamente cerzidas, em cinzento,
nos punhos da farda, foi recebido naquela
missão semiclandestina, que não iria constar, nem em relatórios, nem de “Ordem
de Operações”, ou desenho, ou esquiço, ou despacho do Estado-maior, quando muito
uma discreta nota escrita pelo seu Gabinete classificada de imediato como top secret, foi recebido à saída da
aeronave, “sem pompa nem circunstância”, pelo
Capitão Mascarenhas e pelo “Oficial de Dia”, na ocasião o Alferes Berros da Selva, nitidamente frustrado
pela ausência do cerimonial militar, ele jovem alferes miliciano, dotado de
poderosa voz de comando e apuradíssimo zelo militar, desde os tempos da recruta,
nos exercícios de “ordem unida” com o pelotão, sob seu comando, a brilhar em
impecável posição sentido, quais homens estátua, soldados “firmes e hirtos”,
sem pestanejar, nem mexer um cabelo, “ainda
que um regimento de c.lhos lhes passasse pelos lábios”. Militarão dos sete
costados, a espreitar, pelo buraco da agulha, as oportunidade de “ascensão social”,
mais militar que qualquer oficial, saído dos bancos e da tarimba da Academia
Militar, que glória imensa seria, para o Berros
da Selva, jovem miliciano, natural das Furnas, nos Açores, reciclado em
Alferes, pela sua destreza física e apuro militar, provindo da Escola de
Sargentos de Tavira, pois que o permanente aumento de efectivos para fazer face
às necessidades da guerra, “devorava” oficiais, milicianos que fossem, para
enquadrar as tropas expedicionárias e havia que fazê-los, nem que fosse à
martelada, que glória imensa seria pois para o empertigado Berros da Selva, impante de solarina (e graxa) e garbo, poder escoltar
o General Comandante em Chefe, dois passos atrás, como determina a etiqueta
militar, a “passar revista” à guarda de honra, em apresentação de armas.
Porém, o General, em visita discreta,
dispensou o cerimonial militar, para frustração do jovem oficial miliciano, de
forma que, enquanto o capitão Mascarenhas e o General Comandante em Chefe trocavam
palavras de circunstância, à saída do helicóptero, ou ave pré-história,
conforme a perspectiva de quem olha, ambos oficiais de Cavalaria e ambos, em
tempos outros, ainda na pele dos dias, a anunciar a queda do Império “do Minho a Timor”, o capitão, ainda
Alferes e o General, então coronel do Estado Maior, do Corpo Expedicionário do
Exército Português no Estado da Índia, ambos General e Capitão, dizia-se, ambos
prisioneiros, por alguns meses, do exército da União Indiana, mil vezes
superior às tropas portuguesas, a que um general outro, patriota, com sentido
de dignidade nacional e sentido da História, se negou ao combate e ao massacre
tão desejado pelo Salazar em vista a, no tabuleiro da política internacional,
aparecer aos olhos do Mundo com mártir, derrotado embora por poderoso Exército,
mas alardeando a basófia de se considerar digno dos heróis de antanho e, por não embarcar em tal logro, o
patriota Governador e Comandante-chefe do designado Estado Português da Índia
pagou nos calaboiços do fascismo, arrastando e arrostando a ignomínia do epíteto
de general “Vacilo e Salva”, abusivo
trocadilho de seu honrado nome, General Vassalo e Silva enquanto, pois, à saída
do helicóptero, os dois oficiais de Cavalaria, o General Comandante em Chefe da
Província da Guiné e Capitão Mascarenhas, Comandante da Companhia de Cavalaria
arrastavam prolongada conversa de circunstância, o alferes miliciano Berros da Selva, provindo da Escola de
Sargentos de Tavira que não da Escola de Recruta de Oficiais Milicianos em Santarém,
aguentou firme e hirto, por largos minutos, em estóica posição de sentido, até
que o General num gesto distraído, levando a mão direita estendida à testa, num
simulacro de saudação, desarmou o impecável aprumo militar do brioso alferes,
que pode assim desfazer a empertigada continência e seguir, dois passos atrás,
o capitão e o general, que, em inesperada pose de paisanos, seguiam de braço dado,
rumo à messe de oficiais.
“Pressinto
a urgência e o teu tédio, Maria Adelaide, com esta prosa em que teimo,
arredondada e recorrente, como espiral ou turbilhão que a si próprio se
consome, sem deixar rasto ou marca, a não ser a poeira em que arde, e que
depois de ardida se perde sem glória ou rasto, ou marco que a detenha. E sei
também não ser este o “regresso a África” que desejavas, tu, Maria Adelaide, amamentada
por ama negra, menina e moça, que cedo te levaram da roça de teu pai “para
longes terras” em Lisboa, interna num Colégio de freira, órfã de mãe, que nunca
conheceste, nem nome, nem registo, amputada assim de cuidados maternos e confidências
e cumplicidades como apenas a Mãe sabe, carente de afectos que faz de ti uma
mulher arisca e felina e ao teu corpo concedeu Deus a graça da expressividade
de uma corça, tanto apta a render-se, como a explodir em fuga desenfreada. E sei
também, Maria Adelaide, quanto te foi intrigante a personalidade de Dona
Rosalinda e a sua sofrida vida, que através desta prosa arredonda, a “fazer que
anda mas não anda”, como piruetas de alazão em picadeiro, te foi dado conhecer
e que, sabe-se lá por que subtis fios ou caprichosos atalhos, ou acasos de vidas
paralelas, ou que fascínio tentador, receias vislumbrar, não os traços diluídos
do rosto de tua mãe, mas as pegadas esbatidas de tua maternidade, segredo bem
guardado de que nunca soubeste e apenas uma foto amarelecida pelo tempo de teu
pai, ainda jovem, no Maxime, com uma mulher seminua sentada nos joelhos te faz
suspeitar.
Que
te importa a visita do General à Tabanca, ou as calças do capitão Mascarenhas
que não gosta de ser apanhado com as ditas (calças) na mão, ou os solilóquios
do Alferes, herói acidental desta escrita sem objecto, nem sujeito, pois se
sujeito houvera, na primeira pessoa seria dito, que te importa a ti, Maria
Adelaide, o desafiante nó górdio que emperra os rodízios da guerra, ou a manha,
que não a heroísmo – helás! – do General Comandante em Chefe de visita à
Tabanca e o enorme e cavaleiresco “manguito” que o espera, que te importa a ti
tudo isso atrás narrado nesta escrita redonda que tantos engulhos te causa e
através de ti tantos outros e outras que te olham com simpatia, mas detestam a
mão que te dá vida. Que te importa, pergunto, como se de pleonasmo se tratasse?
Definitivamente – nada! A tua “guerra” é outra! É essa dor, essa ferida, que não
sara, de ter uma infância solitária e mimada, nascida em África e criada com os
indígenas, que o dinheiro e poder do pai, te permitia todos os caprichos, mas
sem nunca conheceres a doçura de uma resposta à palavra mãe que nunca
conheceste, nem nome, nem registo. Esta é a tua ferida e tua dor, cujo bálsamo aqui
vens buscar numa febre de entendimento, como se a escrita em que digo e a
literatura fossem fogo demiúrgico que pudessem suprir e apagar as dores do Mundo,
quando – pobre literatura e pobre escrita – das dores do Mundo se alimentam.
Não,
Maria Adelaide, nada te posso valer, em tua dor profunda. Apenas te digo como te
vejo e apenas posso apressar o teu destino. E, por ti, abandonar
definitivamente África, neste roteiro de escrita, em si mesmo, a requerer a
pena capital.
Os
liames da escrita, porém, são poderosos. E, nesta luta corpo com a escrita, não
se pode claudicar, nem ser desleal e frustrar a emanação cristalina do seu curso
e os lances ainda por dizer. Por isso, um pouco mais de paciência ainda…
Sem comentários:
Enviar um comentário