Perfilados, aguardavam, pois o General,
Comandante em Chefe, todos os oficiais da guarnição, à entrada principal da
vivenda, que antes fora habitação de Dona Rosalinda e cenário de expiação de
seus pecados, pois bem se sabe, cada um é para o que nasce, no dizer da
experiente senhora que, nos últimos tempos, antes de cumprida a ordem militar “de que todos os civis devem ser
imediatamente evacuados” fora capacho do maligno Gaspar, mais conhecido,
entre brancos e pretos por kamenino
pelo pérfido gosto por garotinhos negros e alma
negra do Armando, seu homem, que o diabo levou, tarde de mais, roído pelas
febres e pelo álcool e, hoje em dia, ela. Dona Rosalinda, pela graça de Deus e
de seus conhecimentos mundanos, empresária de hotelaria em Bissau, senhora de uma
pensão assaz frequentada, por militares em trânsito, desde que ostentem divisas
ou galões doirados, está bem de ver, sendo que devera ser classificado tal
estabelecimento hoteleiro como de “serviço público” e quiçá condecorado pelo
notável “esforço de guerra”, prestado ao “Corpo Expedicionário do Exército
Português”, como sanatório de almas, ou como depósito de ejaculações e sofá psiquiátrico
que, qual penso rápido, se não cura, pelo menos conforta e esconde a ferida.
Aguardavam, pois, o General, à entrada
da vivenda, todos os oficiais, devidamente aprumados e ordenados por
antiguidade militar, que o Capitão Mascarenhas, com o impante Berros da Selva, dois passos atrás,
apresentou um a um, ao que o General correspondeu com um vigoroso aperto de
mão, não sem antes receber e retribuir a continência militar, a que as praxes obrigam
e, na passada, a comitiva dirigiu-se para o interior da vivenda, que antes fora
habitação, cenário de expiação de pecados, ninho de amores serôdios de Dona
Rosalinda e de angústias existenciais do Alferes, herói a contragosto desta
narrativa e, já no interior da vivenda, o Capitão Mascarenhas, detendo o
General por um braço, num aceno chamou o empinocado soldado Assobio, tempos atrás Apoucalhado, ora arvorado em “impedido na messe de oficiais”, que à
distância aguardava ordens para servir as bebidas, antes de as galinhas de
mato, loiras e bronzeadas, pela arte culinária do cozinheiro indígena, que fora
antes de Dona Rosalinda, nos faustuosos dias, antes da guerra, saltarem do
fogão para a mesa dos comensais, e, nesse ínterim, o capitão, carregando os subentendidos,
“meu General, permita que lhe apresente o
“insubstituível” soldado Assobio, sem ele a vida aqui seria o inferno” e o
General, despindo-se de toda a formalidade, pois bem se sabe que “que quem quer colher cocos, há-de trepar ao
coqueiro”, verdade universal até mesmo para General, disposto a engolir
sapos, quer dizer, a apear-se do pedestal de General Comandante em Chefe e descer,
salvo seja, ao tu cá, tu lá, com a
caserna, isto é, à camaradagem própria dos “homens do mato”, em que as
hierarquias militares perdem rigidez para deslizarem para uma zona intermédia e
perigosa, entre a moleza e a “pissalhada” e, assim, com aparente bonomia,
replica o General “tem toda a razão,
Mascarenhas, um bom “impedido” é meia guerra ganha…”, e, à vista do apoucalhado Assobio, armado de seu sorriso
cândido, fardado de branco, luvas, casacão e calças, com faiscantes botões de
metal amarelo e as “aristocratas” dragonas doiradas a descerem em cascata das
ombreiras e o caminhar desengonçado, marca e linguagem corporal, que os
socalcos da Gardunha e o surrão e a manta de pastor lhe imprimiram, o General
Comandante em Chefe, numa mirada de soslaio para a figura, um tanto clownesca, fardada
de branco, em alvo contraste com o verde mesclado das farda de combate, que
todos envergavam, o General prossegue o tom da conversa e remata “aliás, você, Mascarenhas, tem ao seu
serviço, não um “impedido”, mas o czar da Rússia, o que me dá a garantia que,
se a guerra não está ganha, pelo menos, irão terminar os bombardeamentos vindos do
outro lado da fronteira !...”
E, neste tom de ironia ácida emerge à
superfície, o primeiro abalo ou sintoma das preocupações que arrastavam o
General à Tabanca, contrastantes aliás com a relativa distensão do Capitão
Mascarenhas que, naquela emergência, nada mais poderia fazer que não fosse “receber o General o melhor sabia e podia”, consolidada
a convicção de que ele, Capitão de Cavalaria, não seria apanhado “com as calças na mão”, aceitado pois, com
alguma bonomia, a alfinetada do General e, assim, mantendo o tom, chutou
literalmente para o lado “pode o Assobio,
meu General, não ser um Imperador, mas é um verdadeiro Rei, lá isso é!”,
num jogo de subtendidos de que o General apenas detém a chave, depois do
Capitão ter declinado o nome do soldado Assobio,
ora arvorado em soldado impedido na messe de oficiais, Eusébio da Silva Ferreira, por assento baptismal, num qualquer
lugarejo esquecido nos cumes da Serra da Gardunha, talqualmente o “Rei Eusébio”, vindo, em tosco, da
designada Província Ultramarina de Moçambique e que ora se afirmava, neste
tempo narrado, como “rei do pontapé na
bola”, também ele um tanto ou quanto “apoucalhado”
e, “pour cause”, deslumbrava o Mundo como glória
maior do futebol português, qual herói, que, por seus feitos, “se vai da lei da morte libertando”, a
ombrear, em glória nacional, com o Fado e a diva Amália, pois bem se sabe que
Fátima, como coisa do Céu, é eterna e, por esses dias, nesses tempos narrados,
fora abençoada pelo Papa e, assim, “Rei
Eusébio”, que não o Apoucalhado soldado
Assobio, oriundo dos cumes da Gardunha,
mas o outro Eusébio, vindo em tosco de Moçambique e a Amália, Rainha do Fado, um e outro, Fado e Futebol,
em rendida veneração da Pátria, num tempo outro, ainda larva, neste tempo narrado, mas tempo que viria, quando maduro, acabaram por bater com as ossadas no Panteão Nacional, fadista e futebolista lado a lado com a “divina” Sofia, que depois de morta não se importa
nada com a vizinhança, pois se é verdade que,
muitas vezes “os mortos vão a nosso lado”,
não é menos verdadeiro que os mortos não falam, nem protestam.
Entretanto, nestes rodeios de escrita que
tanto irritam Maria Adelaide, licenciada em Línguas e Literaturas Modernas,
veio e a seiva que alimenta esta narrativa que, sem rebuço, ela a heroína diz entediante,
com todos estes rodeios em que a escrita se perde por atalhos inesperados, como
corrente de consciência tresmalhada, a conversa do General, Comandante em Chefe
e o Capitão Mascarenhas, Comandante da Companhia de Cavalaria, evoluía na sua
própria lógica, como fervura que lentamente se levanta e, gradualmente, acumula
pressão até ao entornar da sopa.
(continua)
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