Espreme-se pois a ferida, Maria Adelaide como tenaz
de fogo para purgar o sofrimento e melhor sarar, expõe-se em carne viva, impudicamente
aberta, desejando que o sangue rebente e o pus escorra e, no entanto, no lugar
da dor apenas o abcesso calcinado, testemunho remoto, sinal seco e agora
esventrado, tempestade, esvaída na distância, O Valentim, amigo de todas as horas do Alferes, as
boas e as más, heróis ambos em registos diversos, embora, desta escrita
redonda, a fazer que anda, mas não anda e, neste agora da narrativa, por razões
muito suas, aceitou, de sorriso rasgado, a tarefa de apresentar cumprimentos de
despedida a Dona Rosalinda, como iniciativa própria fora, o Valentim, dizíamos,
neste agora dos acontecimentos narrados, deveria ser lugar de recriação festiva
e de celebração órfica, e a escrita tão eloquente, que fosse registo fidedigno e
testemunho da paixão pela Vida, na partilha de uma amizade sem medida, cúmplice
e generosa, em que as humanas criaturas, por vezes, sublimam a condição
precária da existência. No entanto, o Valentim, neste jogo de escrita e seu
devir demiúrgico é apenas lugar ausente e frio, vácuo, que a memória retém, como
incisão sarada pelo tempo e a amizade, tão genuína e tão breve, apenas um
sublinhado ou registo antigo, nas páginas de um livro esquecido.
Tens, por isso, razão, Maria Adelaide, de nada vale
andar a escarafunchar uma dor “abstracta”, de que esta narrativa, que se quer
literária, se faz registo, pois ninguém pode alterar o curso das coisas, nem
sequer o autor (se autor houvesse) que, dizendo-as, lhes deu vida, mas que, não
poderá jamais salvar o Valentim da sua sorte, fervor de vida esmagado, sabe-se
lá por que “mão invisível”, ou torrente, ou capricho do Acaso vividos. Aliás,
talvez seja essa a melhor forma de o homenagear, reconhecendo a humana
impossibilidade, perante o capricho dos deuses e o misterioso rosto da Tragédia,
pois em sua autenticidade, o Valentim vivia, com o mesmo à vontade com rasgou a
placenta que o trouxe à vida, sem cálculo, nem favor. Ou glória que o seduzisse
ou má sorte que o afectasse.
Deixemos, pois, em paz o Valentim e sejamos apenas,
Maria Adelaide, o tabelião que regista, para memória futura, os factos que
desenham a sua funesta morte, a dois dias da “peluda”, no alvoroço de filho
único de regresso ao braços maternos.
Um calor tórrido
e húmido tornava o ar pesado, com chuvas diluvianas, em confluência com a maré
cheia, a elevarem as águas e a ocuparem a zona ribeirinha, que, depois da
enxurrada, deixaria um mar de lama e detritos, que, além de irrespirável,
tornavam a cidade intransitável. Mas o Valentim teimou. Que iria agora visitar
a Dona Rosalinda “e que não estava para
aturar desistências, nem aceitar
recomendações de “madalenas” temerosas,
bem pior que as ruas inundadas de Bissau foram as bolanhas de Catió e de Cufar
e ali estavam ambos aptos a embarcarem para a peluda”. A chuva terminara,
entretanto, e, em seu lugar, um Sol desmedido de criar alucinações e escaldar
os miolos. E o Valentim, impecável, dentro da sua farda de caqui amarelo,
camisa de manga curta e calção, ao volante do jeep do comando da Companhia de
Cavalaria, acicatado pelo desejo de se despedir da Guiné à maneira, quer dizer, percorrendo, qual fauno africano, o itinerário
do desejo, na crepitação e no fogo de uma mulatinha cabo-verdiana, por certo a melhor
escolha, por entre as residentes, que
Dona Rosalinda, em todas as ocasiões prestável, lhe iria discretamente sugerir,
não sem antes indagar de “seu menino” - que
lindo que tu és meu filho! – e, calar no peito, com um suspiro teatral à
mistura, a breve ansiedade de suas carnes flácidas.
E o Alferes, adjunto
do Companhia e herói a contragosto desta narrativa, sem fim à vista e que Maria
Adelaide teima em dizer mal cerzida e desajeitada, sem ponta por onde se lhe
pegue, uma vez que, redonda, a escrita, em si própria, se ensarilha, o Alferes,
dizíamos, com um sorriso discreto a percorrer-lhe os lábios, encolheu os
ombros, resignado, como quem aceita, sem inquietação, o destino das coisas e
dos acontecimentos e, percorridos que foram, num ápice, o lampejo e a
orquestração fantasista da visita do amigo à Pensão Estrela, espectáculo e
festa, de que Dona Rosalinda seria sábia maestrina, acompanhou, com um olhar
cúmplice, o arranque “à Fângio” do
soluçante jeep militar que, na passagem, levantava cortinas da água empoçada no
alcatrão gasto da parada, regando a farda, entre gargalhadas e assobios, de um
ou outro militar mais distraído e que, passada a porta de armas e a continência
do sentinela, com o Valentim ao volante, se perdeu no vaivém da cidade e o
Alferes, herói a contragosto desta escrita, rumou ao “cativeiro” das tarefas de
liquidação e contas da Companhia de Cavalaria e elaboração de relatórios e
autos de entrega de todo o espólio, desde as viaturas pesadas até última
munição.
O soldado Assobio,
outrora “apoucalhado”, chegado à recruta, há escassos três anos, com três dias
de atraso, qual encomenda extraviada e, por mérito seu e do grupo de reguilas
alfacinhas que o instruíram, o ensinaram a ler e a escrever e o nomearam como
seu, arvorado depois “impedido” do comando da Companhia, por ordem de serviço
lida em parada e ora prestes a passar à peluda e ao seu nome civil Eusébio da
Silva Ferreira, andava numa roda-viva, levando e trazendo papéis da Secretaria
para o edifício do Comando, que, depois lidos e assinados pelo Capitão
Mascarenhas, seguiam seus trâmites para o Quartel-general do Comando Militar na
Guiné.
E, assim, neste
frenesi, se esgotavam os minutos e se apressavam as horas, povoadas por ordens
e contra ordens, pois bem se sabe que as organizações humanas, quanto mais
rígidas forem e hierarquizadas, tanto mais toda a gente quer “safar a onça”, os de cima empurrando para
os que estão por baixo e estes, com a manha de gerações a aguentarem a carga, sempre
aptos a “passarem a perna” aqueles
que estão por cima, quer dizer, aqueles que, de cima, lhes carregam o cerviz,
num jogo de forças, a mais das vezes de soma zero, de tal sorte, tudo visto e
ponderado, no final tudo acaba por bater certo, cada um por si, toca a
despachar, o que for, soará.
E tudo assim
corria, nessa tarde de amanuenses cuidados e ajuste de balanços, no deve e
haver da guerra, pois o balanço maior era aquele que um de si próprio fazia, a
escassas horas do regresso e, para o Capitão Mascarenhas, em processo de
revisão mental de suas certezas e de princípios e valores de Oficial de
Cavalaria, no inicio impregnados de “furioso” nacionalismo, e que, no
final da Comissão de serviço militar, no Comando da Companhia de Cavalaria,
queimavam como tição aceso, na persistência da dúvida, cinza que teima em
calor, mas gradualmente arrefece, de tal forma que, quase a findar esta sua
primeira experiência de comando, num quadro de
intensa guerrilha, em que, apesar dos perigos e acasos de guerra passados, se
poder ufanar com a proeza e a circunstância de regressar com a sua Companhia intacta, isto é, sem baixas em
virtude de morte em combate, de tal forma que, dizíamos, tais princípios de
orgulho militar e valores de exacerbado nacionalismo e “caganças” de militar de
Cavalaria, em colapso, não passavam de morno lenitivo na dor maior das suas dúvidas e se constituía, tal
proeza de ausência de mortes, em refulgente gáudio no ajuste de contas com os
oficiais do Estado-maior, esses fs. da p.
que não sabem o que é a guerra e passam a comissão de serviço a coçar os
tomates, sentados à secretária.
Foi então, que
elevando-se sobre aos sons cavos da cidade, que passavam filtrados pelas
espessas amuradas, um estrondo abafado, seguido, a breve espaço, pelo persistente
buzinar de uma viatura, (veio a saber-se) de uma patrulha da Polícia Militar, que
irrompeu pelo quartel adentro para estacionar, frente ao edifício do Comando,
donde salta o furriel miliciano Anjos, comandante da patrulha, pois bem sabe o
graduado militar, que a morte de um oficial do Exército, ainda que miliciano,
em acidente de viação, numa incursão solitária num bairro periférico, a
conduzir viatura militar, sem que registo, ou ordem de serviço, que o
justifique é assunto demasiado quente, para se poder arriscar a qualquer
diligência moto próprio, ainda que seja para entregar o ferido, que se sabia
morto, aos cuidados do Hospital Militar.
Veloz como entrara, saiu do edifício o
furriel miliciano, agora acompanhado do Capitão Ornellas, Comandante da Polícia
Militar que manda afastar os soldados que o voyeurismo
juntara, em redor da viatura e do corpo do Valentim, com o crânio esfacelado,
apoiado por dois soldados da patrulha e determina que, de imediato, o corpo do
Alferes, visivelmente sem vida, seja tapado com um cobertor, e os dois
militares permaneçam de guarda e, em passo acelerado, Capitão Ornellas e o
Furriel Anjos, militares sobre quem impende, por seu múnus policial, o dever de elaborarem
o auto de notícia e dar sequência aos respectivos trâmites, rumaram ao encontro
do Capitão Mascarenhas, pois que o Oficial morto e viatura acidentada estavam
distribuídos à unidade militar de que aquele era comandante, em primeira linha.
E, sendo certo que o “auto de notícia”, se extingue no simples acto de “fixar”
os acontecimentos tais como aconteceram ou, após breve analise de indícios, tal
como os ditos previsivelmente
aconteceram, ou poderiam ter
acontecido, ou deveriam acontecerem,
pois bem se sabe que o olhar de cada um, vendo todos a mesma coisa, cada qual vê
coisas diferentes, afeiçoando o que observa ou repara ou olha, áquilo que lhe é dado ver, ou seja à sua
específica maneira de olhar e entender,
donde se conclui quanto é precária, não apenas a justiça dos homens, mas também
quanto é ténue a visão das coisas e dos factos, que são o suporte da
Justiça do Mundo.
No entanto, neste agora, a prender a atenção do leitor (se leitor houver) os factos que se encadeiam no normal entendimento das coisas, são, em sua aparência, inequívocos – o Valentim perdeu a vida, num acidente de viação, disso ficamos cientes, e assim irá constar do auto de notícia, devidamente assinado pelo Furriel, que em ronda militar, deparou com a viatura afundada numa cova da estrada e o corpo do Alferes estendido na berma, a sagrar pela cabeça e os miolos fora, bem junto as secular embondeiro onde o corpo embatera, projectado pela inércia e a paragem brusca da viatura. E se por assim ser verdade, assim o auto fora assinado, sem mais diligências.
No entanto, neste agora, a prender a atenção do leitor (se leitor houver) os factos que se encadeiam no normal entendimento das coisas, são, em sua aparência, inequívocos – o Valentim perdeu a vida, num acidente de viação, disso ficamos cientes, e assim irá constar do auto de notícia, devidamente assinado pelo Furriel, que em ronda militar, deparou com a viatura afundada numa cova da estrada e o corpo do Alferes estendido na berma, a sagrar pela cabeça e os miolos fora, bem junto as secular embondeiro onde o corpo embatera, projectado pela inércia e a paragem brusca da viatura. E se por assim ser verdade, assim o auto fora assinado, sem mais diligências.
Que importava, de facto, mais estrondo,
ou menos estrondo, a anteceder o colapso da viatura, num país em guerra? Não,
certamente, ao Furriel Anjos, que para se coçar lhe bastava o corpo do
ensanguentado e miolos do Alferes Valentim espalhados na lama, nem ao Capitão
Ornellas, nem ao Capitão Mascarenhas, ambos demasiado ocupados em harmonizar a narrativa de forma a causar
o menor dano, ou seja, despachar o mais cedo possível o Corpo Expedicionário do
Exército Português, para o paquete Uíge que, transposta a foz do Geba, nas lanchas da Marinha, ao largo aguardava.
(continua)
(continua)
8 comentários:
Gosto dessa narrativa. Acho que em dezembro no recesso das festas de fim de ano, vou juntá-las para uma leitura reunida. Conhecer Adelaide de perto, mas sem intimidade (rss)!
Forte abraço,
meu caro José Carlos,
quem me dera que te apaixones pela Maria Adelaide
e a leves para o Brasil rsss
grato, amigo
Coitado do Valentim...e logo à ida. rsrs - podias tê-lo 'deixado' no colo acolhedor da famosa pensão Estrela!
Abraço, Amigo. Gostei deveras.
Acompanho esta partilha tua e sempre encontro
na tua estrutura literária excelente desta obra
literária, a bela prosa poética na assinatura
do Poeta que reside no Escritor, mesmo que na
narrativa numa "brincadeira" irônica e inteligente,
digas que "não existe autor na obra", a focar no
leitor a história que transcorre numa viagem tão
magnética dos sentires humanos dos personagens.
Fiquei abalada como leitora com a morte trágica
do personagem Valentim...Mas, numa Guerra, imagino
que a violência explode a cada esquina, traumas e
cicatrizes sem cura e as emocionais são as mais
sérias e complexas.
Votos de dias felizes, Manuel!
Beijo.
Ps: Estou sem condições de ser assídua no meu espaço e
nos espaços dos amigos, mas a medida que posso,
visito os espaços para a partilha das artes
que eu tanto aprecio.
Luis,
tens toda a razão meu caro,
o Valentim na outra vida não me vai perdoar...
forte abraço
Suzete, minha amiga
os teus comentários são sempre inteligentes e atenciosos
lamento, porém, a perturbação que a morte do Valentim lhe causou
mas não há aqui, nem traumas. nem cicatrizes, fica descansada: o Valentim partiu para o ouro mundo de "papinho cheio", como é costume dizer-se
e a Maria Adelaide saberia muito bem cuidar do autor e das suas cicatrizes, se autor (e cicatrizes) houvesse
beijinho
"outro mundo" está bem de ver...
Recortes de um tempo de guerra que levam à mistura a realidade (dura), o humor e o sentido crítico. Ingredientes que tornam a leitura imperdível.
Beijo, Manuel.
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