Levantaram-se e saíram. Manuel Maria desejou que
para o automóvel, no parque da esplanada, sobre o oceano, na zona indefinida em
que o Tejo se faz Mar e onde desembocam todas as viagens, aquelas que foram,
“cravo e canela” de outrora e guerras de África e agora “europa connosco”, que
assim novos tempos nos requerem e viagens outras, “circuito dos tristes”, de turistas
ricos e migalhas, quem poderá dizer nunca, em fim-de-semana rotineiro, com o
Bugio ao fundo, a respirar sonhos e a remoer vidas, crianças agitadas, no banco
traseiro, fatos domingueiros a espartilhar os corpos, lábios rubros e olhos
alongados, belezas frustres replicadas e olhares postiços e seduções colhidas
em deferido nas páginas das revistas femininas, filas intermináveis e o futebol
aos gritos, as unhas roídas e golo que tarda e o “Benfica que não ganha” e o
stress e a janela aberta e os dedos em riste a fuzilar o “chico esperto” e a
réplica e o insulto “filho da puta és tu,
ó cabrão” e o pé no acelerador em contramão “ala que se faz tarde” e o apito da patrulha a soar estopinhas e o
deslassar dos corpos na mornice e a sonolência agora e o despiste mais à frente
e a cabeça de fora e o palpite e a mulher cala-te
homem! estou farta de te ouvir e morta por chegar a casa e os afazeres
ainda que segunda feira se aproxima e o banho das crianças e o dia seguinte e
as queijadas a fazerem azia e o enjoo ao pensar no corpo mole entre suas pernas
abertas, assim a vida de mulher e uns dias seguidos aos outros, todos iguais e
quando não, antes fossem iguais, sempre.
Roteiro obrigatório de suburbanos passeios e
glória maior de todos os circuitos turísticos, ora escapatória de amores
clandestinos em maré alta, ora refúgio de apátridas quem poderá resistir ao
sortilégio e encanto da paisagem da “linha do Estoril”? Não Manuel Maria que na sua obsessão por Flávia
considerou o cenário ideal para desfazer resistências da sua jovem amiga,
naquele encontro tão longamente maturado.
Desejou pois o
automóvel, mas mais uma vez Flávia trocou-lhe as voltas. Em vez da intimidade
do espaço fechado, onde as mãos poderiam circular e o diálogo da pele dar
sequência ao diálogo ainda quente das palavras e olhares, ela saiu para a
extensão da areia deserta e o horizonte infinito da tarde do outono.
Seguia-a. Deslaçou o nó da gravata e, com o
casaco atirado sobre o ombro, seguiu-a, contrariado. Sentia-se um pouco
ridículo na praia de fato e gravata, bem sabendo que o almoço demorara, as
horas passavam e algures, na cidade, a sua ausência seria comentada. Porém, seguiu-a...
“- Que se lixem, não quero saber da reunião
para nada!” – observou, entre dentes, detendo-se por momentos nos compromissos
profissionais da tarde. E desligou o telemóvel...
Tentou passar-lhe o braço pelos ombros de Flávia,
aconchegando-a, mas ela desfez a carícia. Soltou os cabelos em cascata, sacudiu
a cabeça fulva e rebelde (ela nunca se penteia) e seguiu, cadenciada, acentuado
o donaire. A maresia inundava as narinas dilatadas…
O sol, ainda quente, queimava os poros. Uns passos
atrás. Manuel Maria seguia-a, sempre. Dominado o impulso. Serenando o sangue.
Tecendo caprichos no bambolear das suas ancas. Os passos deixavam a marca da
passagem de um homem e de ma mulher na solidão tarde, que caía...
- “
Gostava de te saber nua!..” disse, num murmúrio, saído do âmago do desejo, que ela tão
bem adivinhava.
Voltou-se Flávia, num sorriso. E, sem nada o
fazer prever, deixou cair as sandálias, soltou as alças do vestido e
a nudez soberba de seu corpo explodiu na serenidade plena da tarde. Um homem
perplexo, uma mulher nua e a paisagem, apenas. Sem outra glória, nem crime. Apenas
o crepitar do momento único, na mente do homem.
Correu, como corça acossada, desejando o fogo
predador. Manuel Maria agora sorria Dobrou-se, alcançou as peças de roupa
abandonada e seguiu-a. A passo, antecipando o momento. Saboreando o prazer
pagão de dádiva da vida.
Metros adiante, oculta por uma rocha milenar,
com as ondas lambendo-lhe os pés, estendida no acolchoado de areia fina, ali
estava Flávia, expectante, em sua impudicícia.
- “Ofereço-te
o livro do meu corpo, saberás ler as suas letras?... “ – exclamou, em
convite sorridente.
(À distância, o realizador feliz, como se Eric Rommer fora, filmava e sorria, rodeado pela sua equipa...).
Manuel Veiga
12 comentários:
Muito interessante a narrativa. Bem construída e de diálogo vivo. Pausas e núcleos perfeitos.
Meu amigo,só fiquei apreensiva por duas coisas: pertenço a essa estirpe de mulheres que gosta de lavar a cabeça e de não se pentear (num tempo em que parece norma ter o cabelo lambido por uma vaca) e, claro, essa das reuniões a que, no meu caso, diz-se por aí que não se pode faltar :)
Ana Tapadas,
mas não tomemos a "nuvem por Juno", amiga.
até os cabelos despenteados requerem peso, conta e medida...
beijo
Uma narrativa extraordinária que nos coloca, em planos alternativos, à medida que a vamos percorrendo... começa em modo descritivo, fazendo um retrato perfeito do nosso modo de ser... tão português... passa para o realismo, vivido através das personagens... e termina em modo cinematográfico...
Belíssimo e surpreendente trabalho, Manuel!
Beijinho! Estava há pouco, com alguma dificuldade em deixar comentários... mas creio que o problema se resolveu!...
Bom final de domingo!
Ana
Que filme!!! Lampejos de uma realidade lisboeta... (que bom! - especialmente a segunda parte...)
beijinho
O filme começa na reunião e logo se embrenha nos fabulosos assobios iniciais da canção de Rui Veloso. E acrescentas, da tua lavra, pitorescos pormenores (bem portugueses) de um domingo à tarde. O mar, como pano de fundo, nem precisa de palavras.
Diverti-me e apreciei, mais uma vez, o teu enorme talento de escritor. Que filme, meu amigo Manuel!
Parabéns e beijinhos.
Um filme digno de ser visto consubstanciado num livro que se oferece pronto a ser folheado.
Abraço
Olinda
Estou a ver, meu Amigo, que agora pegas nas palavras e fazes delas o que queres… Uma narrativa excelente, cinematográfica e cheia de fulgor.
Uma boa semana.
Um beijo.
Gostei de ler.
Em modo descritivo labiríntico no início, tal e qual a realidade se faz que é o nosso retrato: a coisa anda ou finge que anda, já se faz tarde, à portuguesa moda no passeio dos tristes. Fita!!!
Havia era uma leoa a fingir-se de presa, o bastante, mais ardilosa que o pretendente amante. O que salvou a situação, perdão, a produção, foi ela. Era bom de ver.
Concorrente a Veneza,Berlim, Cannes, Tróia...
Abraço.
"- Corta!
Perfeito, Agora só falta montar!"
(e a Flávia lá foi ao banho, retirar toda aquela areia a arranhar a pele exposta aos elementos e ao olhar...)
gosto muito de contos, além de entrevistas e biografias e, se teem um final imprevisto, e surpreendente, como este e bem escritos, óptimo.
e vão dois, que me lembre.
um abraço, caro Amigo Manuel.
Manuel, meu amigo
Na leitura deste teu fascinante conto, lembrei-me
de uma leitura de um livro:"Os cem melhores contos
brasileiros do século" (confesso que sou crítica
com estas seleções, acho que tem muita politicagem
envolvida, mas tinha grandes Escritores na seleção)
que partilhei com meu marido, tivemos a mesma opinião
na época, que cinco contos eram perfeitos, fasciantes
e hipnotizadores e percebo o mesmo neste teu conto,
surpreendente o final e toda a arte envolvida neste
teu conto, a narrativa sedutora a trazer um
olhar do cinema, um filme de arte, dos que eu adoro
assistir... rss
Bravo!!
Adorei e sinto continuidade aqui, não?!...
Caro amigo,
Ainda bem que o Manuel Maria não a sobraçou antes, caso o fizesse não teríamos a perfeição da cena, o suspense, a tensão, os índices tão claros (?) que nenhum leitor os percebe no decorrer da leitura. E o reconhecimento ao desempenho dos personagens, e mais ainda ao diretor que soube conduzi-los a essa apoteose.
É reler para um novo gozo! rss
Um forte abraço, caro amigo!
Voltei para compreender os takes que se seguem. A primeira tomada é de tirar o fôlego...
Um forte abraço, caro amigo!
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