segunda-feira, julho 23, 2018

A CARTA QUE NUNCA TE ESCREVEREI - Take 4


... Enfim, nada de cair em nostalgias, a vida tem cursos distintos e nenhum deles, nem Manuel Maria, nem o Quim Remédios, lamenta o rumo das suas vidas.

A passarem os sessenta e tais, como antes se assinalou, mantêm-se activos estes dois amigos improváveis e, se não abastados, são senhores de carreiras profissionais bem-sucedidas. Cultivam algumas decepções, que a vida nem sempre é mar de rosas e, com o tempo, aprenderam a moderar entusiasmos e verduras e, em cada passada, medir o terreno e o alcance dos caminhos. Ambos sabem que cada dia é mais um nó cego no fio da vida, cada vez mais curtos, o fio e a vida, realidade que encaram com bonomia, cuidando do corpo e da curiosidade do espírito.

São como que uma espécie de vanguarda de uma nova estirpe urbana, que rejeita o termo sexagenário pela simples razão de que não se deixa abater pelo passar dos anos, nem em verdade está disposta a deixar-se envelhecer, não por pânico ou recidiva em vãs ilusões de juventude, mas porque inteiramente realizada, se assume com naturalidade e savoir faire. Depois de anos de trabalho, criação dos filhos, preocupações, fracassos e sucessos, sabe essa nova casta social olhar a vida com desapego, colhendo “o bago da existência”, sem sofreguidão, nem urgências, descendo, porém, como nunca, ao tutano das coisas que merecem ser saboreadas.

Assim Manuel Maria, em discurso íntimo, no breve lanço de tempo, medido pelos passos de atravessar a Rua do Carmo, ao encontro ao seu amigo Quim Remédios, que havia anos não via, ora expectante de um abraço de lhe esmagar os ossos, prevenido, porém, por conhecimento de anos, de que as eufóricas manifestações de amizade do Quim Remédios são, por vezes, um tanto ou quanto incómodas, sobretudo, quando, do alto do seu metro e noventa e do seu temperamento abrasivo, assume atitudes de certa sobranceria, como se o mundo fosse uma coutada privada, que ele pudesse afeiçoar aos seus humores. Uma espécie majestade que o Quim Remédios cultiva, desde a juventude, que com a idade refinou, ao mesmo tempo que lhe aguçou o pendor de um dissimulado cinismo manso e amargo.

Oh pá, nem tu imaginas o que acaba de me acontecer...” - atirou o Remédios, mal desfeito o abraço e sem dar margem a que o amigo se recompusesse da sua “fuga” no tempo. “Claro que não imagino! Mas tenho a certeza que mete saias...” – retorquiu Manuel Maria, num sorriso irónico, com que escondia o discreto enfado pelo rumo anunciado da conversa.

O Quim Remédios nunca casou. Arrasta, no currículo, duas ou três relações mais ou menos (in)estáveis e mantém-se fiel ao lema de apenas “casar apenas com a profissão”; aliás com manifesto proveito, pois que, para além da clínica privada, exerce funções destacadas em Hospital público. Histórias de saias não lhe faltam, portanto, que ele sabe muito bem narrar, acentuando o picante e escondendo partenaires, que o Remédios é um cavalheiro e no nome de uma senhora nem ao de leve se toca.

Foi, pois, com Manuel Maria a tiracolo, que é como quem diz metendo o braço no braço contrafeito do amigo, subindo a rua, rumo â Brasileira, o Quim Remédios contou, como para si próprio falasse, com abundância de pormenores, a cena que acabara de lhe acontecer e que o seu resignado companheiro não teve outro remédio senão ouvir.

O Quim Remédios conhecera, por esses dias, em situação que não revelou, uma distinta senhora e aprazaram o encontro fatal. Nesse dia. À hora de almoço. Numa pensão de má fama, coito de marginais, imigrantes clandestinos e amores ocasionais.

- ”Estás a perder classe...” – ironizou Manuel Maria, alheando-se da conversa, cujo final, de tantas vezes repetido, deixava de ser novidade – então é isso lá local para levar uma senhora?!.“ - “Mas que queres, pá! A tipa desejava que a fizesse sentir galdéria ; tive que escolher o cenário adequado” - gargalhou o Quim Remédios perante a sua própria graçola. E Manuel Maria, bem mais interessado na premência da pergunta como se escreve um romance? que nas proezas eróticas do amigo, retorquiu, num sorriso indolente e algo misterioso –“E não deixas de ter razão - a cenografia é o Espectáculo do Mundo! …”

Enfim, o Quim Remédios não se deu por achado com a desconchavada sentença filosófico-literária do amigo e Manuel Maria meteu, provisoriamente, entre parenteses, as suas lucubrações, disposto a escutar com bonomia mais uma façanha erótica do celebrado Remédios, que f…ia e respirava saúde. E, assim, os dois, prosseguindo, Rua do Carmo acima, rumo à Brasileira, por entre estrondosas gargalhadas …
                                                                                           
Em síntese, no dizer sábio e pitoresco do Quim Remédios, a senhora guinchava e rugia, no tálamo do amor, como uma leoa possessa de cio. “Melhor,- esclarecia empolgado - a dama troava e gemia, em diversos registos sinfónicos, como se as carícias fossem trombetas celestiais em acordes divinos”...

Eis senão quando, no auge da batalha amorosa, surdos pelo ardor e pelos libidinosos sons da dama, a porta do quarto rebenta de estrondo, qual apocalipse vindo do fundo do corredor... Com uma insistência inaudita, as pancadas na porta multiplicavam-se! O Quim murchou na função! “Que é que um homem pode fazer?” – Apavorou-se por momentos o Quim Remédios - “E que pensar numa cena assim, não me dizes? O pior, claro! Uma rusga da polícia? O marido ciumento? Um assalto?”,,,

O que vale é que o Quim não é de ficar em embaraços. De respiração suspensa, preparado para tudo, “embrulhado no lençol como túnica de senador romano, em pose solene”, - o Quim dixit – “levanta-se, deixando a dama, ainda mal refeita das celestiais trombetas, estendida sobre a cama, exposta, como virgem sacrificial”...

A espera exasperava! Do lado de fora, uma chave na fechadura e, de supetão, surge um jovem negro, “belo como uma escultura de bronze, saída das mãos de Rodin” – esclarece o Quim Remédios.

Nesta fase da descrição, a mente “perversa” do escritor Manuel Maria, em angústias intelectuais de saber como se escreve um romance, formigava cenas inarráveis, em que o negro seria consumado partenaire, mas o Quim Remédios encarregou.se de lhe abater as fantasias, tomando fio da narrativa e apressando o fim.

- “Patrão, estão aqui a fazer muito barulho” – balbuciou timidamente o negro perante o olhar dominador do Quim, do alto do seu metro e noventa – “com esta barulheira toda –  esclarece o negro - tem que pagar o dobro pelo quarto...

Num gesto aristocrático, o Quim abriu a carteira e estendeu-lhe uma nota de cinquenta.- “Há momentos, em que um homem não se pode cortar nas despesas!...” – remata, filosófico, o amigo Quim Remédios...

Chegavam à Brasileira. Na praça do Chiado, com a música da “Carvalhesa” em fundo, um grupo aguerrido, desfraldando rubras bandeiras, protestava contra a “tróica” e o corte dos salários.

Manuel Veiga


1 comentário:

José Carlos Sant Anna disse...

Vou seguindo a teia e as artimanhas...
Um abraço, caro amigo!

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