... Enfim, nada de cair em nostalgias, a vida
tem cursos distintos e nenhum deles, nem Manuel Maria, nem o Quim Remédios,
lamenta o rumo das suas vidas.
A passarem os sessenta e tais, como antes se
assinalou, mantêm-se activos estes dois amigos improváveis e, se não abastados, são senhores de carreiras
profissionais bem-sucedidas. Cultivam algumas decepções, que a vida nem sempre
é mar de rosas e, com o tempo, aprenderam a moderar entusiasmos e verduras e,
em cada passada, medir o terreno e o alcance dos caminhos. Ambos sabem que cada
dia é mais um nó cego no fio da vida, cada vez mais curtos, o fio e a vida,
realidade que encaram com bonomia, cuidando do corpo e da curiosidade do
espírito.
São como que uma espécie de vanguarda de uma nova estirpe urbana, que rejeita o termo
sexagenário pela simples razão de que não se deixa abater pelo passar dos anos,
nem em verdade está disposta a deixar-se envelhecer, não por pânico ou recidiva
em vãs ilusões de juventude, mas porque inteiramente realizada, se assume com
naturalidade e savoir faire. Depois
de anos de trabalho, criação dos filhos, preocupações, fracassos e sucessos,
sabe essa nova casta social olhar a
vida com desapego, colhendo “o bago da
existência”, sem sofreguidão, nem
urgências, descendo, porém, como nunca, ao tutano das coisas que merecem ser
saboreadas.
Assim Manuel Maria, em discurso íntimo, no breve
lanço de tempo, medido pelos passos de atravessar a Rua do Carmo, ao encontro
ao seu amigo Quim Remédios, que havia anos não via, ora expectante de um abraço
de lhe esmagar os ossos, prevenido,
porém, por conhecimento de anos, de
que as eufóricas manifestações de amizade do Quim Remédios são, por vezes, um tanto
ou quanto incómodas, sobretudo, quando, do alto do seu metro e noventa e do seu
temperamento abrasivo, assume atitudes de certa sobranceria, como se o mundo fosse
uma coutada privada, que ele pudesse afeiçoar aos seus humores. Uma espécie majestade que o Quim Remédios cultiva,
desde a juventude, que com a idade refinou, ao mesmo tempo que lhe aguçou o pendor
de um dissimulado cinismo manso e amargo.
“Oh pá,
nem tu imaginas o que acaba de me acontecer...” - atirou o Remédios, mal
desfeito o abraço e sem dar margem a que o amigo se recompusesse da sua “fuga”
no tempo. “Claro que não imagino! Mas
tenho a certeza que mete saias...” – retorquiu Manuel Maria, num sorriso
irónico, com que escondia o discreto enfado pelo rumo anunciado da conversa.
O Quim Remédios nunca casou. Arrasta, no
currículo, duas ou três relações mais ou menos (in)estáveis e mantém-se fiel ao
lema de apenas “casar apenas com a
profissão”; aliás com manifesto proveito, pois que, para além da clínica
privada, exerce funções destacadas em Hospital público. Histórias de saias não
lhe faltam, portanto, que ele sabe muito bem narrar, acentuando o picante e
escondendo partenaires, que o
Remédios é um cavalheiro e no nome de uma senhora nem ao de leve se toca.
Foi, pois, com Manuel Maria a tiracolo, que é
como quem diz metendo o braço no braço contrafeito do amigo, subindo a rua,
rumo â Brasileira, o Quim Remédios contou, como para si próprio falasse, com
abundância de pormenores, a cena que
acabara de lhe acontecer e que o seu resignado companheiro não teve outro remédio senão ouvir.
O Quim Remédios conhecera, por esses dias, em
situação que não revelou, uma distinta senhora e aprazaram o encontro fatal.
Nesse dia. À hora de almoço. Numa pensão de má fama, coito de marginais,
imigrantes clandestinos e amores ocasionais.
- ”Estás a
perder classe...” – ironizou Manuel Maria, alheando-se da conversa, cujo
final, de tantas vezes repetido, deixava de ser novidade – então é isso lá local para levar uma senhora?!.“ - “Mas que queres, pá!
A tipa desejava que a fizesse sentir galdéria ; tive que escolher o cenário
adequado” - gargalhou o Quim Remédios perante a sua própria graçola. E
Manuel Maria, bem mais interessado na premência da pergunta como se escreve um romance? que nas
proezas eróticas do amigo, retorquiu, num sorriso indolente e algo misterioso
–“E não deixas de ter razão - a
cenografia é o Espectáculo do Mundo! …”
Enfim, o Quim Remédios não se deu por achado com
a desconchavada sentença filosófico-literária
do amigo e Manuel Maria meteu, provisoriamente, entre parenteses, as suas
lucubrações, disposto a escutar com bonomia mais uma façanha erótica do celebrado Remédios, que f…ia e respirava saúde. E, assim, os
dois, prosseguindo, Rua do Carmo acima, rumo à Brasileira, por entre
estrondosas gargalhadas …
Em síntese, no dizer sábio e pitoresco do Quim
Remédios, a senhora guinchava e rugia, no tálamo do amor, como uma leoa possessa de
cio. “Melhor,- esclarecia empolgado - a dama troava e gemia, em diversos
registos sinfónicos, como se as carícias fossem trombetas celestiais em acordes
divinos”...
Eis senão quando, no auge da batalha amorosa,
surdos pelo ardor e pelos libidinosos sons da dama, a porta do quarto rebenta
de estrondo, qual apocalipse vindo do fundo do corredor... Com uma insistência
inaudita, as pancadas na porta multiplicavam-se! O Quim murchou na função! “Que é que um homem pode fazer?” – Apavorou-se
por momentos o Quim Remédios - “E que
pensar numa cena assim, não me dizes? O pior, claro! Uma rusga da polícia? O
marido ciumento? Um assalto?”,,,
O que vale é que o Quim não é de ficar em
embaraços. De respiração suspensa, preparado para tudo, “embrulhado no lençol como túnica de senador romano, em pose solene”,
- o Quim dixit – “levanta-se, deixando a dama, ainda mal
refeita das celestiais trombetas, estendida sobre a cama, exposta, como virgem
sacrificial”...
A espera exasperava! Do lado de fora, uma chave na
fechadura e, de supetão, surge um jovem negro, “belo como uma escultura de bronze, saída das mãos de Rodin” – esclarece o Quim Remédios.
Nesta fase da descrição, a mente “perversa” do
escritor Manuel Maria, em angústias intelectuais de saber como se escreve um romance, formigava cenas inarráveis, em que o
negro seria consumado partenaire, mas
o Quim Remédios encarregou.se de lhe abater as fantasias, tomando fio da
narrativa e apressando o fim.
- “Patrão,
estão aqui a fazer muito barulho” – balbuciou timidamente o negro perante o
olhar dominador do Quim, do alto do seu metro e noventa – “com esta barulheira toda – esclarece o negro - tem que pagar o dobro pelo quarto...”
Num gesto aristocrático, o Quim abriu a carteira
e estendeu-lhe uma nota de cinquenta.- “Há
momentos, em que um homem não se pode cortar nas despesas!...” – remata,
filosófico, o amigo Quim Remédios...
Chegavam à Brasileira. Na praça do Chiado, com a
música da “Carvalhesa” em fundo, um grupo aguerrido, desfraldando rubras
bandeiras, protestava contra a “tróica” e
o corte dos salários.
Manuel Veiga
1 comentário:
Vou seguindo a teia e as artimanhas...
Um abraço, caro amigo!
Enviar um comentário