“(...) O que aí
vai, Maria Adelaide. Cada vez mais acutilante esta queda para comigo implicares
e que tão bem cultivas, mas que a mim não engana, pois esse teu jeito, que
terás que reconhecer, por vezes, um pouco excessivo, outra coisa não é, senão
uma forma de chamares a atenção, como criança o regaço materno, requerendo, uma
carícia ou um beijo, que noutros tempos seria acendalha do fogo que nos
consumia que agora é cinza que nos aquece.
(…)
Porém, se
te desses ao trabalho de escavar “o ruído da escrita”, bem se sabendo que “o
autor não existe” e, assim, também não o sujeito de um qualquer discurso moral,
em que te possas apoiar e estivesses um pouco mais atenta à linguagem das
coisas e ao sentido dos comportamentos, compreenderias então que o corpo físico
da escrita, em que o Alferes se desenha, no espaço mítico da Tabanca, é expressiva
enunciação de um “discurso de poder”, cujo sentido faz explodir o mero jogo das
aparências. O que o discurso revela é que do “outro lado” do Alferes, tal como
é apresentado, permanece uma realidade outra, possibilidade apenas, que fica
oculta no limbo da escrita e, no limite de um frágil acaso, estabelece a
diferenciação entre o “herói” e a vítima. Qual deles te mereceria mais cuidado?
Mas bem
intuiu o Alferes a subtil diferença e as ocultas “determinações” da sua acção,
ou as fundas razões das suas escolhas que, podendo a Tabanca marcá-lo com o
anátema da “negatividade” o afirmou como “fiat lux” promissor na saga em que se
joga seu destino e que outra coisa não é senão a clarividência de ter
compreendido, antes de verdadeiramente o saber, que “não existe poder, sem
exercício do poder” e que todo o poder, seja qual for a sua natureza, sobretudo
o poder militar, se reveste de sinais, ritos e símbolos, numa liturgia cujo
exercício é a marca visível de “autoridade” e de domínio. Porque, minha querida,
as relações sociais, sejam elas expressão do microcosmos da Tabanca ou do vasto
Mundo, são relações de poder, em que uns quantos (poucos) o exercem e os
restantes (muitos) são sujeitos e que alguns, bem conhecendo a tramóia em que
o(s) poder(es) se desenrola(m), lhe(s) resistem e, ao resistir-lhes, os liames
de um poder-outro vão tecendo.
De que
serviriam ao Alferes os seus doirados galões de oficial do Exército se não fora
a sabedoria e a oportunidade de colocar “em sentido”, no sentido literal do
termo, o Sargento Fernandes, em manifesta abjuração, pelo desleixo, da
ideologia militar de que era enformado? E sem resistência, obviamente, que a
ideologia militar é “totalitária”, quer dizer, não admite, sobretudo, em teatro
de guerra, linhas de transigência, nem fissuras de dissidência. Ao “vigiar e
punir” um comportamento desviante, o Alferes redimiu o poder militar de que
provisoriamente era e, por momentos, precários que fossem, foi sumo-sacerdote
da sua (dele, poder militar) ideologia. Ámen!…”
Manuel
Veiga
“DO AMOR E
DA GUERRA – Fragmentos” - Pág. 52
Edição
MODOCROMIA – Lisboa 2018
4 comentários:
Ámen!, Manuel.
Abraço.
Manuel, meu amigo
Meus votos de mais sucesso e mais um momento
feliz na partilha literária do teu
magnífico livro.
Beijo.
Lá estarei, com prazer, no lançamento do tua Excelente obra. Só estava à espera de uma oportunidade.
Beijos Manuel.
Amanhã será mais um dia de Festa! Bem a mereces, caro Manuel.
Preferencialmente com um Porto d'honra!
Muito sucesso, caro amigo!
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