E Manuel Maria acorrentado aos remos de sua
escrita e ao desígnio que adoptara, em sua teima, de erguer novo romance, não
como alibi ou teste, pois nada tinha a provar, nem muito menos que
justificar-se, mas, em qualquer caso, lhe permitisse reinventar-se, agora que
dobrados os anos da juventude, sem angústias existenciais e estabilidade
financeira, escasseavam os sonhos e projectos, para além do atelier de arquitectura, de que estava
saturado e o enfastiava.
Acontece que nos caminhos que se abrem ou fecham
aos homens, no devir do tempo e no roteiro dos passos, existe sempre um registo
de vontade e uma vibração de liberdade, ténues que sejam e, então, por vezes, a
ordem pré-estabelecida é subvertida e são os lances inesperados, mais que as
condutas previsíveis, que traçam o destino e deixam marca de passagem pelo
mundo. De tal sorte que, como ficou dito, Manuel Maria balançava-se entre o
risco de enveredar pelos inóspitos caminhos da literatura e a administração de
rotineira do gabinete de arquitectura que, com sucesso, desenvolvera,
pactuando, tantas vezes, com as exigências
dos “patos bravos” que lhe pagavam
os projectos, pois bem cedo compreendera a
arte da transigência, sem, contudo, nunca perder a dignidade, sabendo ele,
pela experiência das coisas e anos de “metier”
que a conjugação de Arquitectura e a Arte constitui momento raro com que
volúveis circunstâncias e voláteis desígnios bafejam, de vez em quando, apenas
alguns eleitos.
Vogava assim Manuel Maria neste cotejo, entre o
apascentar descuidado dos dias, no usufruto de uma arquitectura estabelecida e algo
chata e a sedução estimulante pela escrita, (afastada que fora a pulsão pelo
cinema) a que o sucesso do último livro emprestava inebriante perfume e uma
cálida embriaguez, que lhe instigavam uma acarinhada sensação de vivacidade e
entusiasmo, que julgava perdidos para sempre.
Estava, pois, Manuel Maria decidido. Bem podia
Flávia deixar-se embalar pelo sonho de heroína, que não seria ele a negar-lhe pretexto,
ou ocasião de inscrever sua esvoaçante existência no corpo da narrativa, bem se
sabendo, porém, serem, de momento, outras as dores da escrita, quer dizer, bem
se sabendo que perante Manuel Maria, assumido autor narrativa, que se quer
literária, se perfila uma outra questão, já não a de saber-se como se escreve
um romance, pois que literatura não tem cânone, mas, procurar, nesse lugar
indizível, onde a palavra emana e ganha forma e se tece o permanente jogo de
aparências e onde o autor se desvenda, desamparado, ou apenas amparado pela
frágil consistência de seus títeres, procurar saber – dizia-se – como, nesses
lugares de mistério e rendição, se estabelece o reino da escrita e se constrói
um personagem, ou se desenrola esse jogo da cabra cega, em que a vida se finge
literatura e literatura se requer vida. Receia-se mesmo que a questão esteja
mal formulada e que Manuel Maria, ele próprio, se interrogue, em suas lucubrações,
donde, inesperadamente, salta, por vezes, a chama criativa, qual chispa de
pederneira, se não seria mais produtivo (como
diria, em seu jargão modernaço, o “semiótico”,
em selecta tertúlia, se outro
fora o tempo da escrita) procurar saber “como
se constrói um homem”, quer dizer, como, no desígnio da escrita, se poderá deslindar,
por entre o emaranhado de linhas e nos veios que tecem a vida de cada um, qual
o roteiro, que caminhos ou descaminhos, que razões ou sonhos, que gestos ou que
lances, que tibiezas ou que coragens, que ousadias, que gritos, que
insubmissões, que generosidades ou que egoísmos, que suor ou que sangue, ou que
lágrimas, ou que amores e desamores haverá que elegerem-se como matriz na “construção” do carácter de cada homem,
cuja grandeza (ou miséria moral) se hão-de erguer no corpo consagrado da narrativa
e projectarem-se, mediante o fragor
da sua expressividade, num lugar-outro, onde
a vida se faz Verbo e se iluminam o percurso dos homens e o devir de seus passos. E então, na alegria inaugural da
escrita e na ousadia do gesto demiúrgico se poderão serenar as metafísicas dores da criação literária e,
finalmente, sem rodeios, dizer-se ao que se vem, escrevendo, pois que a
intrigante questão se Vida é Literatura,
ou se Literatura é Vida constitui, em verdade, o verso e o reverso do mesmo
enigma que os deuses inventaram para seu desfastio, mas que nada acrescenta ao
prazer e a arte de (bem) escrever.
Assim concluía Manuel Maria suas judiciosas
considerações e suas íntimas lucubrações sobre o fértil filão, explorado nos
mais diversos tons e feitios, das dores
da escrita e do lugar da Literatura, porém, ainda acorrentado à sua sujeição,
como condenado se acorrenta às galés e que, no ritmo dos remos e no murmúrio
das ondas, se espraia, em lenitivo de escravidão, procurando na entrega e no
fragor da luta corpo a corpo com o Destino, redimir-se da ousadia de pretender raptar
aos deuses o fogo sagrado, bem
sabendo da fragilidade de suas asas de
cera e do risco iminente de derreterem.
E, no entanto, era libertação pela escrita que Manuel Maria almejava. Então,
inesperadamente, num momento de clara lucidez, acordou de seu torpor (ou será tremor?) “metafísico” e dá-se conta que se algo
vale a pena trazer ao âmago da Palavra será a Vida sem adjectivo e sem
preocupação de erguer-se como literatura,
tal como decorre, límpida, do fluxo dos acontecimentos sociais, sobretudo,
quando, flor de cristal, condensa todas as energias de um Povo em ebulição e
explode generosa e límpida no coração e na vontade dos homens.
E, irresistivelmente, a vaguear no tempo e no
espaço da memória, qual meteorito ainda quente ou fragmento perdido depois do
colapso de uma super nova, Manuel
Maria, resolvidas que foram todas as dúvidas e arrumada, no baú das
inutilidades, a questão de saber-se como
se constrói um personagem, aportou, novamente, nos tempos da Revolução de
Abril e no envolvimento pessoal no fluxo revolucionário.
José Augusto Esquerdo, em grandiosa jornada de
participação popular, acabara de ser designado Presidente da Comissão
Administrativa da Câmara Municipal. E Manuel Maria acreditava, genuinamente,
numa Arquitectura para o Povo!
Manuel Veiga