segunda-feira, janeiro 28, 2019

Da MEMÓRIA Dos GESTOS ...


Sei deste rio, a borbulhar por dentro,
Na tarde fria.

E da luz coada na vidraça
Com Tejo ao fundo…

Nem ontem, nem hoje.
Brilho refulgente em cada gesto.
E o corpo debruado.
E fogo-fátuo.

E ledo engano.
E incauta glória.
Apenas.

E a memória do cântico
Sob a árvore
Milenária.

E o fruto breve.

E a curva expectante da tarde.
E a aragem côncava.  

Que eterna se enuncia.
E reconforta.
Sempre.


Manuel Veiga


domingo, janeiro 27, 2019

JOGO DE DADOS


Uma linha recta
Uma superfície lisa
E um ponto neutro

Em cada extremo
As perdas e os danos´
De meu balanço.

E ganhos?

Invejosos deuses
Cedo os levaram
Num jogo de dados.


Manuel Veiga


terça-feira, janeiro 22, 2019

PRECÁRIOS MEUS GESTOS


Assento meus passos nas raízes
Que talham meu porte
E prossigo

Minha sede
É murmúrio das nascentes
E calor de solstícios

Por vezes me detenho. Nas margens
E no encantamento das paisagens
E demoro-me

Na lágrima. Que inesperada
Faço minha. E bebo em tremura
De lábios gretados.

Sou onde me fixo. E os ventos
Me levam. Precários são meus gestos
E serenos meus caminhos.


Manuel Veiga


sábado, janeiro 19, 2019

NADA PERDURA ...


Nada perdura. Nem o veio de águas
Tumultuosas. Nem o vagido da inocência
Nem o silvo dos ventos. Nem a agrura das montanhas
Nem a alvura dos silêncios. A rasgar
O frémito da palavra imaculada.

Nada perdura. Nem o cetim dos dias
Nem o cinzento das mágoas. Nem a efémera euforia
Das glórias. Nem o eco do que fomos
Nem a nudez dos dedos
No lombo magoado
Das desgraças.

Somos o que somos!

Alimento de nós mesmos
Turbilhão do Mundo
Que nos arrasta.

Manuel Veiga


quinta-feira, janeiro 17, 2019

RESTOLHAR DO SONHO...



Um fio de sonho
E gesto largo

Nos longos dedos
Do silêncio.

De permeio
O acre enleio

Por dentro o sarro
E o engano

Desenganado

A elidir o logro
No restolhar
Do sonho…


Manuel Veiga


terça-feira, janeiro 15, 2019

O PERFIL DOS DIAS - No Prelo...

Quando o Prodígio Acontece

Quando duas estrelas se fundem por capricho
Ou invisível Fado. E o universo é apenas tela
Ou registo do matricial fogo.

E os próprios deuses se espantam.
E invejam essa nova luz a despontar.
E toda a poalha vibra em ritmo novo.
E todas as trajectórias dançam
Alvoradas a arder em chamas.

E o grito é glorioso toque alvoroçado
E a palavra é ligeira vibração de nada
Incrustada no dorso de todos os sentidos

Então o Prodígio acontece. E desce
À mesa do poeta. E o poema é cerimónia secreta
Iniciação fremente no palato e na língua.

Fruto pagão. E bocas ávidas.


Manuel Veiga


sábado, janeiro 12, 2019

NEGA-SE O VERBO


Abre-se a palavra ao vento
E no entanto o verbo
Fica preso …

De nada lhe servem
A afoita dança dos signos
Nem o bê à bá das leituras
Eruditas …

Nega-se o verbo!

Que nada nesta hora
Inflama a ardência das sílabas
Nem a espuma das salivas…


Manuel Veiga

quarta-feira, janeiro 09, 2019

DIGO-TE MÁTRIA ...


Digo-te mátria e barco
E sonho desmedido
No alvoroço.

E águas
Fundas

Distâncias volantes
Que se abrem
E fecham

Vorazes

E retornam
Ondas alabastrinas
No palato das horas

Fecundas.

E o cais deserto
É agora movimento
Entre a miragem

E o achamento.


Manuel Veiga


segunda-feira, janeiro 07, 2019

A TACINHA DA MENINA CINHA...


Taça tantas vezes baça
Outras vezes lassa …

Que no entanto enlaça
O champagne e a taça...

E a tacinha da menina Cinha
Em graça - como se fora não tacinha
Mas verdadeira taça…

Desmaia o champagne
E o tempo passa…

E o vinho tinto
Do melhor arinto:
-          “Que se lixe a taça!...”

E com toda a raça
Atirou-se à taça
Numa devassa

Ferveu a taça
E ferveu a tacinha
Da menina Cinha ...


Manuel Veiga


sexta-feira, janeiro 04, 2019

FRÉMITO(S)

Alagam-se as margens
Que nada nestas águas
É excesso.

Nem o aluvião
Dos dedos

Percurso
De efervescências
Íntimas

Nem teu corpo
Assim exposto
Aberto

Safra e mostos
No frémito das lezírias.


Manuel Veiga

terça-feira, janeiro 01, 2019

A CARTA QUE NUNCA TE ESCREVEREI - Take 9


E Manuel Maria acorrentado aos remos de sua escrita e ao desígnio que adoptara, em sua teima, de erguer novo romance, não como alibi ou teste, pois nada tinha a provar, nem muito menos que justificar-se, mas, em qualquer caso, lhe permitisse reinventar-se, agora que dobrados os anos da juventude, sem angústias existenciais e estabilidade financeira, escasseavam os sonhos e projectos, para além do atelier de arquitectura, de que estava saturado e o enfastiava.

Acontece que nos caminhos que se abrem ou fecham aos homens, no devir do tempo e no roteiro dos passos, existe sempre um registo de vontade e uma vibração de liberdade, ténues que sejam e, então, por vezes, a ordem pré-estabelecida é subvertida e são os lances inesperados, mais que as condutas previsíveis, que traçam o destino e deixam marca de passagem pelo mundo. De tal sorte que, como ficou dito, Manuel Maria balançava-se entre o risco de enveredar pelos inóspitos caminhos da literatura e a administração de rotineira do gabinete de arquitectura que, com sucesso, desenvolvera, pactuando, tantas vezes, com as exigências dos “patos bravos” que lhe pagavam os projectos, pois bem cedo compreendera a arte da transigência, sem, contudo, nunca perder a dignidade, sabendo ele, pela experiência das coisas e anos de “metier” que a conjugação de Arquitectura e a Arte constitui momento raro com que volúveis circunstâncias e voláteis desígnios bafejam, de vez em quando, apenas alguns eleitos.

Vogava assim Manuel Maria neste cotejo, entre o apascentar descuidado dos dias, no usufruto de uma arquitectura estabelecida e algo chata e a sedução estimulante pela escrita, (afastada que fora a pulsão pelo cinema) a que o sucesso do último livro emprestava inebriante perfume e uma cálida embriaguez, que lhe instigavam uma acarinhada sensação de vivacidade e entusiasmo, que julgava perdidos para sempre.

Estava, pois, Manuel Maria decidido. Bem podia Flávia deixar-se embalar pelo sonho de heroína, que não seria ele a negar-lhe pretexto, ou ocasião de inscrever sua esvoaçante existência no corpo da narrativa, bem se sabendo, porém, serem, de momento, outras as dores da escrita, quer dizer, bem se sabendo que perante Manuel Maria, assumido autor narrativa, que se quer literária, se perfila uma outra questão, já não a de saber-se como se escreve um romance, pois que literatura não tem cânone, mas, procurar, nesse lugar indizível, onde a palavra emana e ganha forma e se tece o permanente jogo de aparências e onde o autor se desvenda, desamparado, ou apenas amparado pela frágil consistência de seus títeres, procurar saber – dizia-se – como, nesses lugares de mistério e rendição, se estabelece o reino da escrita e se constrói um personagem, ou se desenrola esse jogo da cabra cega, em que a vida se finge literatura e literatura se requer vida. Receia-se mesmo que a questão esteja mal formulada e que Manuel Maria, ele próprio, se interrogue, em suas lucubrações, donde, inesperadamente, salta, por vezes, a chama criativa, qual chispa de pederneira, se não seria mais produtivo (como diria, em seu jargão modernaço, o “semiótico”, em selecta tertúlia, se outro fora o tempo da escrita) procurar saber “como se constrói um homem”, quer dizer, como, no desígnio da escrita, se poderá deslindar, por entre o emaranhado de linhas e nos veios que tecem a vida de cada um, qual o roteiro, que caminhos ou descaminhos, que razões ou sonhos, que gestos ou que lances, que tibiezas ou que coragens, que ousadias, que gritos, que insubmissões, que generosidades ou que egoísmos, que suor ou que sangue, ou que lágrimas, ou que amores e desamores haverá que elegerem-se como matriz na “construção” do carácter de cada homem, cuja grandeza (ou miséria moral) se hão-de erguer no corpo consagrado da narrativa e projectarem-se, mediante o fragor da sua expressividade, num lugar-outro, onde a vida se faz Verbo e se iluminam o percurso dos homens e o devir de seus passos. E então, na alegria inaugural da escrita e na ousadia do gesto demiúrgico se poderão serenar as metafísicas dores da criação literária e, finalmente, sem rodeios, dizer-se ao que se vem, escrevendo, pois que a intrigante questão se Vida é Literatura, ou se Literatura é Vida constitui, em verdade, o verso e o reverso do mesmo enigma que os deuses inventaram para seu desfastio, mas que nada acrescenta ao prazer e a arte de (bem) escrever.

Assim concluía Manuel Maria suas judiciosas considerações e suas íntimas lucubrações sobre o fértil filão, explorado nos mais diversos tons e feitios, das dores da escrita e do lugar da Literatura, porém, ainda acorrentado à sua sujeição, como condenado se acorrenta às galés e que, no ritmo dos remos e no murmúrio das ondas, se espraia, em lenitivo de escravidão, procurando na entrega e no fragor da luta corpo a corpo com o Destino, redimir-se da ousadia de pretender raptar aos deuses o fogo sagrado, bem sabendo da fragilidade de suas asas de cera e do risco iminente de derreterem.

E, no entanto, era libertação pela escrita que Manuel Maria almejava. Então, inesperadamente, num momento de clara lucidez, acordou de seu torpor (ou será tremor?) “metafísico” e dá-se conta que se algo vale a pena trazer ao âmago da Palavra será a Vida sem adjectivo e sem preocupação de erguer-se como literatura, tal como decorre, límpida, do fluxo dos acontecimentos sociais, sobretudo, quando, flor de cristal, condensa todas as energias de um Povo em ebulição e explode generosa e límpida no coração e na vontade dos homens.

E, irresistivelmente, a vaguear no tempo e no espaço da memória, qual meteorito ainda quente ou fragmento perdido depois do colapso de uma super nova, Manuel Maria, resolvidas que foram todas as dúvidas e arrumada, no baú das inutilidades, a questão de saber-se como se constrói um personagem, aportou, novamente, nos tempos da Revolução de Abril e no envolvimento pessoal no fluxo revolucionário.

José Augusto Esquerdo, em grandiosa jornada de participação popular, acabara de ser designado Presidente da Comissão Administrativa da Câmara Municipal. E Manuel Maria acreditava, genuinamente, numa Arquitectura para o Povo!  

Manuel Veiga

Orquestração de Hinos

  Polpa dos lábios. E a interdita palavra Freme… E se acolhe Em fervor mudo E sílaba-a-sílaba Se inaugura… Percurso De euf...