quinta-feira, maio 09, 2019

PERFIL DOS DIAS - PREFÁCIO - DOMINGOS LOBO


 A Arte de Traçar, de Modo Lírico, o Perfil dos Dias

O escritor nas sociedades contemporâneas, não tem propriamente uma profissão. Escreve por impulso cívico ou por não poder mais evitar a indignação. Raros vivem de escrever, de efabular sobre o mundo que percepcionam, embora seja isso o que fazem em grande parte do seu tempo.

Estamos a séculos dessa mítica “era dos versos” em que os poetas, pelo simples facto de o serem, granjeavam estatuto de respeito e admiração na Polis e tinham, mesmo escassa, uma tensa que lhe permitia continuar a escrever e a cantar os seus versos.

Sei que vivemos tempos sem tempo para as palavras altas e necessárias, vivemos o aturdimento das simulações electrónicas que não nos deixa saborear um verso, reflectir sobre o coração que freme no corpo de um poema; sei que vivemos tempos estranhos (mas é o nosso tempo, e cabe-nos vivê-lo e tentar transformá-lo), tempos em que a usura e a competição se tornaram regras e a febre do dinheiro se transmudou ideologia quase dominante. A poesia, que é a arte suprema da palavra, precisa de silêncio e espaço, não campeia em tão árido chão.

«Poeta é», diz-nos Manuel Gusmão, «aquele que constrói ou compõe um mundo de palavras e de possíveis verbais, com o qual reconfigura, faz, desfaz, refaz e acrescenta o mundo de mundos que é o nosso». Que nos faz compreender o mundo, este nosso estreito mundo que a palavra poética, através dos seus signos linguísticos, tenta ampliar e tornar reconhecível.

Os poetas são gente resistente, sonhadores de utopias, mesmo no território insano da hodierna distopia que vai corroendo os imaginários mais férteis, teimam e avançam, vão pelo sonho, acreditam que um dia a serenidade regressará às cidades e será então possível conversar sobre livros à volta de um copo ou de um café, que os poetas saberão de novo cantar e o fogo das palavras há-de voltejar livre e solto, que a vida regressará límpida e inteira às suas veias, que poderão de novo consumir emoções, ideias e afectos, mesmo sabendo, como nos diz Manuel Veiga neste Perfil dos Dias, que são Esquivas as palavras/o tempo fugidio/e os olhos/ mágoas. Mesmo quando sabemos do tempo que se esvai, da ruga que na almofada amanhece e com ela mais um sinal da brevidade da vida, o poeta estará atento a esse rumor ácido que pontua os dias e saberá sempre, na luminosidade de um verso, ultrapassar o instante porque Soberbos, porém, os dias/Assim cativos de pedras/e de medos, hão-de transfigurar-se e criar raízes nesse território fértil, incontaminado das palavras.

Um tempo em que o poeta regressará aos itinerários da chuva, a soletrar estrelas, a olhar o cristal da Lua reflectido nos lagos; retornará às coisas simples e perenes, ao lugar secreto, inviolável, da nossa humanidade, a esse território efémero e líquido, à Pradaria em chamas/E potros dentro.

Neste novo livro de Manuel Veiga coexiste uma contenção sintáctica, uma simplicidade discursiva tocante, em que a metáfora (Anti-Metáfora, titula o autor) se dilui na própria construção do poema, uma técnica de recursos linguísticos que serve a ideia central sem recurso a barroquismos retóricos. O poema flui, mesmo quando os versos contêm, na sua mancha gráfica, não mais de oito sílabas e o comum dessa geografia se mantém ordenada por três versos.

Manuel Veiga consegue, neste seu Perfil dos Dias, em que o erotismo, que é sinal de apego à vida, percorre grande parte do seu corpo diegético, uma voz mais serena, mais interiorizada do que lhe reconhecemos de livros anteriores: há, neste livro, uma mais exigente depuração oficinal, um mais amplo sentido das palavras, o seu íntimo rumor, como acontece no poema Alegria Breve.

Neste Perfil dos Dias, encontramos a voz recorrente do eu interior, esses fragmentos metafóricos da inconsistência do Ser, essa busca, esse voo cego a nada como escreveu Reinaldo Ferreira, mas um voo que traz o olhar do outro, porque ninguém viaja sozinho pela vida, sem a sombra existencial, ora obsessivamente desejada, ora apenas intuída, ora indispensável como respirar, do outro. Pelo meio desta complexa gramática do corpo e dos afectos, existe a pertinência da busca de sentidos para o universo, o cosmos como um derivativo de absolutos, em que a esperança se inscreve: Deslizam as águas em rios secos/Até à raiz do nada.(...) Ou reserva de vida/Preservada: cópula de sol/E gota de água/E a ansiada/Espera...

O que é a matéria da vida? Essa Gota de água ou cópula de sol, esse húmus que nos conduz a uma contínua angustiante e perplexidade, a extensão dos sonhos, a capacidade de, apesar dos pesares, linimentos de um corpo em lenta combustão, conseguirmos reflectir, intuir sobre os sortilégios elementares, sobre o modo (modos extensos, diversos) de estar vivo neste avassalador sufoco do tempo, que a contemporaneidade, mesmo quando o poeta dela se resguarda (Lá fora o Mundo./Dentro o sopro de uma sonata), convoca e limita?

A matéria essencial (as palavras) sobre que especula Manuel Veiga, a construção da palavra(s) com que ergue os poemas, e neles tenta redescobrir a Vida, traçar o perfil dos dias que lhe coube (cabe) viver e o que à volta dela mais o amargura, seduz, estremece e, a espaços, num indelével fulgor, vertigem dúctil, extasia: o sexo, as paisagens, a literatura, as aves, os sonhos e a sua argila. Essas nebulosas que a memória atrai, esse íman perene, são a matéria da escrita, as palavras com que o poeta urde signos e os tenta libertar do seu caos imanente, desse obscuro, telúrico chão, dessa massa que fecunda o fogo.

A poesia de Manuel Veiga, balança entre territórios líricos e introspecções metafísicas e é nessa dualidade expressiva que a sua poética se aproxima das metamorfoses verbais que encontramos em poetas como Herberto Helder, Ramos Rosa ou Ricardo Reis. É nesse alfabeto lírico, nessa gramática do Mundo, quase sempre magoada, essa modelar forma de organizar o Acaso, mesmo que O Sol seja nuvem/E o meu fogo água//O teu corpo/céu aberto/seja. Um discurso poético que entronca, por vezes, em outros poetas do modernismo como, também, Mário Sá Carneiro.

Eis o escorço mimético sobre que reflecte, e inflecte, a escrita de Manuel Veiga. Formas modelares de pensar e entender a complexidade existencial e o mundo, os contornos de um tempo, geracional forma de passear pelos dias (breves mas azuis) e de lhes dar guarida, mesmo quando o alimento que nos dá é feito de fragmentos reflexivos e sinédoques, de poemas transportadores de memórias, mesmo quando estas se perdem na voragem dos dias: Eternos o tempo e o modo/ E o colapso de todas as memórias/Onde todas as coisas/ Anoitecem.

De tudo isto, penetrando o sensitivo orgânico desta matéria elementar, da “loucura portátil” que é escrever, de que nos conta Enrique Vila-Matas, nos fala por vezes, mesmo quando algum hermetismo percorre o seu corpo diegético, Perfil dos Dias. E fá-lo, nos momentos mais conseguidos deste livro, numa escrita serena, atenta às íntimas reverberações do léxico, fala expressiva e solar por vezes, A abrir-se na caligrafia muda das coisas/e no mistério delas, percorrida por modelações sintácticas de uma sonoridade vibrátil, sensível e ressumante de múltiplos aromas.

A poesia enquanto matéria e sujeito de todas as incursões pelas palavras, Síntese de fogo lhe chama o autor, deste especulativo modo de inventariação pessoal, de tábua de saberes íntimos e prósperos – de estar Vivo, e estando, inventar o discurso poético da dispersão elementar, do delta extenso que nos convoca à aventura, à exposição, às interrogações metafísicas sobre o amor, a morte, a solidão, os corpos que se amam e se perdem na voragem dos dias, o destino, seja isso o que for, a cultura, a política, as plurais formas de habitar o espaço e deixar marcas em poroso chão – um discurso poético que mais que ocultar as feridas, no-las dá a ver, assim despido, sem âncoras nem temores, deixando a poesia fluir indomável animal do espanto, que ela nasça e cresça no silêncio, ferindo-o, que aconteça mesmo quando o sentido da harmonia lhe escapa.

A soletrar a palavra transgressiva, sem um mapa, uma agenda, sem traços prévios nos caminhos a haver, que a aventura de estar vivo e atento apenas nos deixa, dos dias sôfregos A inquietação dos anjos/ E o seio do barro redentor// E se glorifica eterna/ Na fusão do sonho/ E mágoa, dado que A liberdade é essa chama, que o poeta, incessantemente, almeja.

Mesmo olhando o mundo, passeando essa “loucura portátil”, Manuel Veiga não deixa de trazer ao discurso a diversidade conjuntiva com que esta fala se ergue e se constrói, é nesse fulgor, nesse delta de raízes, que estes versos nos arrebatam em sua contínua transfiguração.

Domingos Lobo




4 comentários:

Genny Xavier disse...

Se apenas o título da obra já nos aguça a sede de beber da fonte dos teus versos, este Prefácio, tão bem escrito por Domingos Lobo na descrição da essência da tua poesia, nos remete a vontade arrebatadora da leitura necessária do teu "Perfil dos Dias"...
Que assim venham os versos, nas palavras inscritas nas folhas brancas do teu livro...
Bom domingo.
Genny

Olinda Melo disse...


Caro Manuel Veiga

Se nós já não conhecêssemos, mal que seja, a sua escrita, este prólogo de Domingos Lobo seria por si só um convite claro e suficiente para nos embrenharmos no seu "Perfil dos Dias", dada a forma apaixonante como nos introduz nos vários caminhos que o Poeta percorre para falar do mundo e da diegese dos dias.

Juntando estas duas circunstâncias, termo-lo lido noutras páginas e o prólogo, só nos falta o livro. :)

Entretanto, assinalo duas passagens que me entusiasmaram, de entre muitas outras:

"Mesmo quando sabemos do tempo que se esvai, da ruga que na almofada amanhece e com ela mais um sinal da brevidade da vida, o poeta estará atento a esse rumor ácido que pontua os dias e saberá sempre, na luminosidade de um verso, ultrapassar o instante porque "Soberbos, porém, os dias/Assim cativos de pedras/e de medos", hão-de transfigurar-se e criar raízes nesse território fértil, incontaminado das palavras.

Um tempo em que o poeta regressará aos itinerários da chuva, a soletrar estrelas, a olhar o cristal da Lua reflectido nos lagos; retornará às coisas simples e perenes, ao lugar secreto, inviolável, da nossa humanidade, a esse território efémero e líquido, à "Pradaria em chamas/E potros dentro.""

Abraço

Olinda

José Carlos Sant Anna disse...

Caro Manuel,
Pois, aqui estou para cumprimentá-lo, no espaço adequado, pelo PERFIL DOS DIAS, o seu novo livro. Um oceano se sobrepõe e atravessá-lo hoje custa os olhos da cara. Mas depois de ler a dissecante de Domingos Lobo, é esperar reconhecimento da crítica, se isto fizer alguma diferença... Porque a expressão definitiva você nunca a perdeu...
Um grande abraço,

José Carlos Sant Anna disse...

Leia-se a dissecante apresentação de Domingos Lobo

A CARTA QUE NUNCA TE ESCREVEREI

Uma carta que a memória guardou no cofre das emoções. Sem resguardo. Antes, com a desenvoltura das palavras presas numa sensualidade sentida...