1 - Os Rituais à Mesa
(Para o Fernando Assis
Pacheco, em dia aziago)
“À mesa
Morre-se ritualmente
A salada
O cozido
O puré
As maneiras
E o pavão que no jardim
passeia o esplendor duma fuga de Bach
O pó-de-arroz seguindo o
rastro das sopeiras
É em ti que me venço e
justifico
Nos labirintos de
néon no fumo viúvo da cozinha
No azedo do ranço do grão de bico
Nos corredores do guisado
No ocre da saliva e do
caldo entornado
Os nervos derretem os
artelhos da manhã o tempo aquece
E o meu amor por ti
tropeça e arrefece
À mesa
Contraem-se os instintos
do dia
A digestão é grave
O suicídio breve
E o beijo que te dou
arde em melancolia
É sentados na sala que
morremos
Prisioneiros num casulo
de raiva e solidão
Suspensos da mais alta-fidelidade
já sabemos
Que fomos sepultados num
buraco sem chão
É no sofá onde os ossos
cochilam
Que os nossos
guarda-costas
Nos fuzilam
DOMINGOS LOBO
In “Para Guardar o Fogo –
Epitáfios” – Pág. 77
Edição “Página a Página”
Lisboa 2012
2 – Ao Acordar
“E não é que esqueça ou
não me pesem
Os erros. Mas de que
vale quando acordo
Estar em desacordo? Ainda
guardo
A luz de um pretérito
imperfeito e sinto
Abertas as veias ao que
vier injectar-me
Mágoa no sangue e sei
decerto
O lado secreto do
coração
Lugar obtuso estreito e
singular”
2.1 – Mar Explosivo
“A terra arde por fim
No azul de um céu de
pedra
Um mar explosivo
rebentou
Com tudo. Teria de
acontecer disse
No mapa assinalou
lugares antigos
Um templo a essa deusa
Mnemósine. Venham ver a
nova
Realidade absoluta. Não
há palavras
... só a praia sem margens
neste oceano
Caótico das imagens
virtuais
Vagas informáticas
Ferindo secando os olhos”
ANTÓNIO CARLOS CORTEZ
“Animais Feridos” –
págs. 74 e 75
Publicações D. Quixote
Lisboa 2017
3 – O Livro das Horas 7.
“Nada me é inacessível neste
íntimo culto
Ouvir a música, viver
com a matéria aberta do corpo
Mudar as coordenadas da
alma.
Imprimir o sangue das
feridas na superfície da força.
A minha sede, sei-o
agora, tem infinitos que não existem
E por muito que beba e
escreva
Haverá sempre esta
inexistência formal que me separa dos outros”.
TIAGO NENÉ
“Este Obscuro Objecto do
Desejo” – pág. 63
Edição “Guerra e Paz”
Lisboa 2017
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