Acalmadas que foram as inquietações
de saber como se escreve um romance, acreditava, agora, Manuel Maria que,
em qualquer mister, ou obra, ou desígnio, ou tarefa, ou rota, ou viagem, ou
caminho são sempre os passos dos homens que estabelecem as metas e percorrem
as distâncias, que é como quem diz ergue-se a espada e a espada faz-se, anotação
pessoana insistentemente glosada, ou bengala literária a que
lança mão, em cada curva mais apertada da escrita, balsa salvadora de que
se serve um náufrago, nas ondas encapeladas de uma escrita que, sem conta, nem medida,
temerariamente, se deseja literária.
Assim, agora, neste tempo
da narrativa, em que Manuel Maria, por interposto escrevente, se agita
num emaranhado de fios e teias, incúria sua e desabusada pretensão de erguer-se
como escritor e pretender demonstrar que há mais vida para além dos desenhos e do
traçado de cérceas e que seria capaz de encenar a vida, a sua e a dos outros,
num rasgo de eloquentes palavras, bem melhor do que desenhava edifícios.
Pagava, no entanto, bem caro a ousadia e, por diversas vezes, estivera próximo de desistir de escrever.
Contudo, nesses momentos de capitulação, mais que o amor próprio ou a
frustração da desistência, quem o amarrava à sua servidão e o obrigava a
prosseguir era Flávia, que entrou na sua vida sem dar conta, quase miragem e paixão mansa, que lhe absorve a lucidez, como se fora ópio que envenena o
sangue e domina a vontade e se rejeita, mas a ele se regressa, sucessivamente,
cada vez mais dominado.
E, nesses momentos
fraqueza e desistência, Manuel Maria entra em profundo abatimento, de que
apenas se liberta depois de exorcizados todos os anjos e demónios e todos os
percalços da sua vida, num mergulho reparador em águas matriciais, de onde
depois emerge, mais lúcido e determinado. E regressa, então, à escrita, com mais
fulgor que nunca, revisitando as personagens e veios que percorrem a
narrativa, sem outra lógica ou plano que não seja a empatia entre as palavras e
a consistência da trama que, pouco a pouco, se organizam, qual laborioso
insecto a segregar e a tecer os fios do seu casulo, para depois, em metamorfose
festiva, se libertar em esplendor. E, nesta oculta razão da escrita, mistério
da palavra a construir o sentido das coisas e a erguer-se como narrativa, então
a abrasiva Flávia ocupa todo o território da emoção e Manuel Maria, no turbilhão
do seu processo criativo, exorciza a doentia paixão pela jovem devolvendo-a ao
corpo da escrita e ao palco da narrativa, ficcionando, num discurso desatinado,
a sua existência e o ardor de seus passos.
Bebo-te,
Flávia, na babugem dos dias e superfície de mim. Vens e partes, como onda fosse
teu corpo e meu desejo brisa. Barcos e proas na dimensão infinita de cada
momento de espera. Voo migrante de regresso incerto. Desta imponderação me
alimento. Como se o sangue das horas estivesse suspenso e o teu nome fosse a
chama brusca ateada em lugares secretos. Caprichosa em seu destino. Liberta de
todas as contingências. Como aurora feita água. E deserto minha alma.
Tomo-te
assim. Rascunho de todas as letras. Tenho a mesa posta. Saciarei tua fome de gazela.
Ou de loba. Serei teu manto na noite fria. Meus beijos subirão ao holocausto de
todas as desesperanças. Por amor de ti, serei pasto, fuga ou corrente.
Alimentarei todas as orfandades. Meu sexo será leilão. Meus olhos caveiras. Por
amor de ti, secarei todos rios. Tocarei o infinito dos céus e todos os infernos
serão minha morada.
Calo-me em
fantasia de condenado. Quero cálice até a última gota. E o veneno. E a glória
redentora de nada ceder em meu tormento. Podia imaginar-te nua. Podia
escrever-te poemas ou cartas de amor azuis. Podia esquecer-te, ouviste? Mas não
quero. Escuta bem, não quero! Quero-te meu “cântico negro”, pois que minha
glória é também “criar desumanidade”. E negar teu corpo E tu saberes …
E então
talvez o gesto apaziguador da fêmea. Talvez teu seio. Talvez a linha exposta de
tuas coxas nuas. Talvez a flor azul em teus cabelos. Talvez o tudo e o nada.
Talvez o mistério aceso. Ou o interdito a desvendar o rosto e a aguçar o
esporão do Desejo.
E, pouco a pouco, na
medida em que seu fervor íntimo e o eco das palavras se esbate no cérebro,
horas, dias, semanas, gradualmente, Manuel Maria regressa à vida e ao ritmo da
escrita, que bem o sabemos, agora, a serpentear as veredas da infância e a
narrar-se, criança ainda, não mais de cinco anos, entre duas mulheres que o
amam, a misturar seu choro às lágrimas de outras crianças e à imperecível visão
de um homem de joelhos e suas longas mãos erguidas perante outro homem, a pedir
perdão, mas perdão de quê, meu Deus, se apenas reclama
justiça? visão terrífica que ainda hoje o persegue, entregue
a si próprio e às dores de sua escrita, jamais o bálsamo de duas mulheres, que
o protegiam e o amavam, como se filho de ambas fosse e lhe cobriram os olhos
para lhe poupar a dor e a ignomínia, bem sabendo, agora, que as lágrimas, que
duas mulheres que o amavam lhe quiseram evitar, mais não eram que o eco de outras lágrimas, a
deslizarem no rosto de uma outra criança, descalça e andrajosa, mal chegada a
adolescência, que em sua raiva e impotência, se negou a ajoelhar na vergonha do
pai e, em sua insuportável dor, virou costas e correu montes e vales, dias e
noites, meses e anos, para nunca mais voltar.
E ali estavam ambos,
agora, expurgadas as lágrimas, essas e outras, pois que vida é um vale de lágrimas assim a dizem livros
santos e piedosas jaculatórias, ali estavam, pois, ambos, lado a lado, José
Augusto Esquerdino e Manuel Maria crianças que foram, nessa aldeia ignorada,
algures em Terras do Demo, filhos
espúrios da Casa Grande e
de seus cânones de poder arbitrário, Manuel Maria, em breve, descartado, como aluno interno numa Instituição
Religiosa, em Lisboa, que para acolher crianças descartáveis e
para lavar ou esconder as vergonhas das
famílias ilustres, tais instituições são criadas, onde, mais tarde, na
adolescência, as longas conversas com um Padre Operário, o ajudaram a mitigar
os ardores religiosos e o triunfo do Céu e o iniciaram nos humanos desígnios da
solidariedade terrena e José Augusto Esquerdino a fazer-se à
vida, servente de pedreiro, marçano, bate-chapas, serralheiro,
mecânico, subindo toda a escatologia de ofícios e práticas, matéria e
ferramenta de si próprio, na luta pela sobrevivência, que, nas margens da
cidade e da vida, se foi construindo, na fecunda luta comum, com outros homens,
que, como ele, nada têm a perder, a não ser o valor supremo da sua dignidade e
assim, totalmente disponíveis e empenhados, na luta pela liberdade e no fim da
exploração do homem pelo homem.
E ali estavam agora, os
dois, José Augusto Esquerdino e Manuel Maria, bastardos ambos, na medida de
cada um, da Casa Grande e
de seus cânones de poder arbitrário, ali estavam, no mesmo lado da vida, a
percorrem um grande Município da Área Metropolitana, no fulgor da Revolução de
25 de Abril, cabouqueiros ambos do Poder Local Democrático, José Augusto, recém-eleito
Presidente da Comissão Administrativa, por “braço no ar”, em grandes plenários
da população e Manuel Maria, novel arquitecto, genuinamente, a acreditar numa Arquitectura para o Povo e
que teremos apenas “Liberdade a sério, quando
houver, a Paz, o Pão, a Habitação, Saúde e Educação (…) e pertencer ao Povo o
que o Povo produzir”, como, então, uma bela canção em voga,
empolgava a vontade de transformação da vida e os desígnios revolucionários.
E nesses tempos,
prenhes de futuro, Flávia seria apenas promessa inesperada, filha de amores espúrios, que mais tarde iriam consumar-se.
Manuel Veiga
4 comentários:
A procura dos homens para dizer o amor. Para o justificar.
Com viagens no tempo.
Bebendo do amor materno. defraudado no amor paterno.
Como se o outro, par amoroso, tudo pudesse sanar.
...é condição de quem ama...
Muito embora o Xaile de Seda esteja "em pausa", não poderia faltar
a este encontro com o querido Manuel Maria. E hoje ainda com
mais razão pois que nos é dado tomar contacto com duas surpresas,
qual delas a melhor.
Aparece-nos uma nova personagem, a Flávia, que arranca do autor
e, quiçá, protagonista desta história um rasgo poético dos mais
apaixonantes. Duas surpresas numa, portanto.
Estou tentada a inserir aqui uma pequena desconfiança: terá o escrevente
alguma coisa a ver com os termos ardentes, poesia da melhor, com que é descrito esse amor, essa quase-obsessão do autor pela jovem? Talentoso como só ele...
Enfim...o tempo no-lo dirá. Para já ficaremos pendentes da notícia
sobre os amores espúrios que deram origem à Flávia e da evolução
do relacionamento de Manuel Maria e José Augusto Esquerdino,
ambos imbuídos de espírito revolucionário e amor pelos princípios
da Liberdade.
Gostei muito, caro Manuel Veiga.
Abraço
Olinda
Eis-me envolvida e apaixonada pelo desenrolar desta trama. Aliás, aliada ao enorme prazer da leitura, persiste e aumenta o desejo de saber mais. E adivinho que o enredo se impõe ao autor. Os personagens ditam as regras. Será? Nunca escrevi um romance.
Beijos, meu amigo Manuel.
Sigo a trama cuidadosamente, caro Manuel.
Cuidadosamente também escrevo este comentário.
Nos dois últimos, as ideias se precipitaram, logo em cada um deixei uma lacuna. Já os corrigi. E releio este para não cometer novos deslizes.
As pegadas de Manuel Maria estão sendo seguidas por mim, por nós, leitores ávidos pelo desenlace.
Sei que ao fim ao cabo terei (teremos) um texto que nos instigará buscar as raízes da história.
No mais, já se sabe que os cordéis da narrativa "estão dominados".
Deixo um abraço e a expectativa pela próxima carta.
Enviar um comentário