sábado, maio 09, 2020

A CARTA QUE NUNCA TE ESCREVEREI - Take 25



Que faria ali a Cléo, portanto? Manuel Maria fervilhava em curiosidade, a festejar intimamente o  reencontro, ainda que focado  no evoluir da reunião, que as eloquentes palavras e o carisma do Presidente haviam domado com mão firme, como quem, em picadeiro, desbasta cavalo bravio, de tal forma que, célere, pois  não há tempo a perder e muitas são as tarefas, por unanimidade e aclamação, foi decidido criar uma Comissão Conjunta, com a missão proceder aos estudos e diligências necessários para a legalização daquele Bairro de construções “clandestinas”,  ficando, desde já, a drª Cléo nomeada para, em representação do Presidente, acompanhar o funcionamento da referida Comissão, contando, para o efeito, com o apoio técnico do arquitecto Manuel Maria ali presente, em que ele, o Presidente do Município, deposita toda a confiança por saber do seu indiscutível compromisso com os ideais revolucionários do “25 de Abril”.

E, assim, o jovem arquitecto, Manuel Maria, engajado como estava com uma Arquitectura para o Povo, em que firmemente acreditava, se viu catapultado  para a fornalha da Revolução e para esse lugar mítico, onde se forjam os desígnios democráticos e se fecundam as raízes do poder político, em osmose permanente entre vontade populações e as decisões político-administrativas que, naquele tempo narrado de todas as sementeiras e utopias eram as Organizações Populares de Base e que a consigna revolucionaria Aliança Povo/MFA legitimava com um dos pilares do Processo Revolucionário em Curso.

E nesse parto do futuro em directo, digamos assim, em exagero de escrevente, nessa emergência revolucionária, Manuel Maria, acompanhado, para seu regozijo, pela trepidante Cléo, que mais uma vez surgia, inesperadamente, na sua vida para desaparecer, depois, sem deixar rastro, ficando no ar um perfume mistério que muito o intrigava e, neste lance da escrita, irrompendo da memória, como um jacto inesperado, para, no chic revolucionário, de um par de jeans a moldar-lhe o corpo esguio, encarnar agora os frémitos da Revolução e, em seu ardor revolucionário, a medir-se, porventura,  naquele tempo de todas as imprevisibilidades, com o fulgor mítico de uma Marianne, ou, então, com a cintilação cristalina de uma Passionária.  Em versão lusitana, está bom de ver…

Que fazia, pois, ali a prodigiosa Cléo? A pergunta era recorrente e martelava a impaciência de Manuel Maria, que não encontrava explicação plausível para aquele encontro improvável entre a  jovem, filha da burguesia,   tipo “pãozinho  sem sal”, num tempo de cerejas e borbulhas, a declinar incipientes poemas e a sacudir a caspa dos ombros de um “semiótico”  que, nas suas pernas curtas e ventre dilatado, mais parecia um aranhiço, que tinha a ver a Cléo com o carismático e desempenado José Augusto Esquerdino, revolucionário a tempo inteiro, caldeado nas lutas de resistência  do Povo Português pela liberdade e a democracia, com indeléveis marcas gravados no corpo e no espírito, que a madrasta vida e as sucessivas prisões e torturas lhe garantiram, que teria pois em comum tão improvável casal, que segredos ou que mistérios? sendo que não passava despercebida a evidente cumplicidade entre os dois, a jovem e crepitosa Cléo e o empolgante e circunspecto Presidente que, de sua parte, mais que cumplicidade. era um indisfarçável derramar de líquidas devoções.

E, perante o muro de perguntas, que o atazanavam, Manuel Maria acomodou a impaciência, confiante de que em breve teria a chave de tal enigma para sorrir para os seus botões com esta saborosa ironia da vida e recordar, divertido, o monumental fiasco com deliciosa Cléo, não te vale a pena, não presto na cama, e a decisiva contribuição em prole da performance sexual da jovem, que depois de insistentes sessões práticas, ou não seja a prática madre de todolas cosas, comprovadamente se revelou fogosa e a valer muito a pena, façanha que haveria de merecer do seu preclaríssimo amigo, Quim Remédios, não aplausos e elogios, que do sucesso nunca conheceu, mas uma “sábia” lição sobre a subtileza da idiossincrasia feminina e a escatologia dos seus méritos sexuais, teses essas bem fundadas em proveitosa prática, (a prática como determinante de verdade, sempre) pois era impossível imaginar Quim Remédios receitar panaceia ou mezinha sem que antes a tenha provado e, assim, como seu amigo do peito, várias vezes o preveniu contra as intelectuais pois que, consabidamente, não prestam na cama, dando-se ao rigor de esclarecer que, para tal função (a função de cama), as mulheres quanto mais burras melhor e, se porventura a mulher for intelectual e burra, categoria que assenta que nem uma luva à adorável Cléo, Quim Remédios sublinhava com uma formidável gargalhada a prevenção e decretava que, no caso de a mulher se revestir da dupla qualidade de burra e intelectual, mais vale, então, a um homem passar toda a sua santa vida em jejum do que colher semelhante desgraça.

E, assim, nesta dialéctica de contraditórios sentimentos e estados de alma, vogava o ânimo de Manuel Maria, desde que, acreditando piamente em uma “ Arquitectura para o Povo, subira a escadaria dos Paços do Concelho para se colocar  ao serviço da Revolução, tão  forte o fascínio e tão cálida a experiência que assumia aspectos de irrealidade, perante a forte personalidade de José Augusto Esquerdino, Presidente do Município, eleito, por braço no ar, em grandes plenários da população, colocado por vontade do Povo do Concelho no centro de acção político-revolucionária, onde sobressaia como um dos seus mais lídimos heróis, José Augusto Esquerdino, vítima, como ele, Manuel Maria, do poder arbitrário da Casa Grande, algures, numa aldeia ignorada de Terras do Demo, cada um em sua medida de sofrimento e ambos a beberem, neste tempo narrado a sofreguidão do sonho milenar de que "um homem nunca deveria mandar noutro homem!..."

Manuel Veiga


10 comentários:

" R y k @ r d o " disse...

Boa tarde:- Muito bem. Passando a fim de desejar um Sábado feliz

Cumprimentos

Cidália Ferreira disse...

Quem assim escreve, merece o meu aplauso! :)
-
Fantasiando ideais ...

Beijo e um bom fim de semana! :)
Protejam-se...

Olinda Melo disse...


Bom dia, Manuel Veiga

Eis o "take 25" desta "Carta que nunca te escreverei", com a dupla Manuel Maria, arquitecto, que nos conta a história através do escrevente e que defende uma "Arquitectura para o Povo", e o José Augusto Esquerdino, Presidente, com ideias avançadas de como deve decorrer a sua presidência, o povo em primeiro lugar. Esses dois que provaram as agruras da Casa Grande e que agora querem construir um mundo mais justo.

Aparece-nos também a Cloé, que não conheço muito bem e tal como Manuel Maria, pergunto o porquê da sua presença. Nota-se uma certa aproximação com o Esquerdino, pelo olhar do contador da história.

Uma nota para Quim Remédios, que me parece um tanto marialva, na apreciação que faz da Cloé.

Enfim, sigamos a história que com o seu desenvolvimento ficaremos a saber com que linhas se cosem os personagens.

Um belo texto e uma história que, como presumo, tem ainda muito para nos contar.

Abraço

Olinda

Ailime disse...

Boa tarde Manuel,
Uma história cativante, muito bem escrita e imaginada.
Um beijinho e bom domingo, com saúde.
Ailime

Graça Pires disse...

És um excelente narrador, meu Amigo Manuel. Tens um à-vontade com a ficção que me causa admiração. Tens lado a lado as palavras e a imaginação. Não te falta sentido de humor nem um quê de sedutor… Parabéns e vai-nos brindando com mais textos até que o livro apareça…
Um beijo.

Anónimo disse...

oi, curti a história que você nos contou.

Cléo ou Cloé são as mesmas personagens? Não entendi direito.

Tudo di bom.

José Carlos Sant Anna disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
José Carlos Sant Anna disse...

Aguça-nos a curiosidade e o interesse pela Cléo. Creio se derramar em todos nós "líquidas devoções".
Como diz a nossa miga comum: Não te falta sentido de humor nem um quê de sedutor… Aguardo ansioso pela história completa.
Um grande abraço, caro Manuel!

Manuel Veiga disse...


anónimo,

Cléo é o nome da personagem. com grandes possibilidades de mudar de nome para Cloé ... rss

mas porquê anónimo?

bem vindo/a

Teresa Almeida disse...

Caro amigo, Manuel,

este pedaço da história tem todos os ingredientes para ser um bom momento de leitura. Assim vale a pena escrever. Ficamos a conhecer os personagens duma forma que aguça a leitura do próximo take. Confirmo o que dizem os amigos: tens estilo, fluência, sentido de humor e poder de sedução.

Grande abraço de parabéns.

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