domingo, julho 12, 2020

A CARTA QUE NUNCA TE ESCREVEREI - Take 27



Seja como for, a verdade é que Manuel Maria, em seu ajuste de contas consigo próprio, recorrentemente, se imiscuía na própria narrativa, encenando-se personagem, e então os factos e acontecimentos vividos, ou meramente testemunhados, irrompem, insubmissos, nas veredas da escrita, quais salteadores emboscados, a desbaratarem ordem e a glorificar o inesperado, sem se saber ao certo, se simulacro, ou corrente da escrita, ou encenação em que o escrevente se imola, a céu aberto, sumo sacerdote dos ritos e dos humores da narrativa.

E, assim, Manuel Maria, neste roteiro de atar pontas, na dispersão da sua vida e, em seu propósito de uma Arquitectura Para o Povo, ali estava, agora, nesse tempo de todas promessas, em que os ventos da Revolução, abriam espaço à cidadania, ali estava, pois, Manuel Maria, na fornalha da participação revolucionária, a testar as suas teorias sobre a arquitectura no confronto com a vida real, em que a estética decai (ou se eleva?) na satisfação de urgentes necessidades colectivas e no direito à habitação condigna, et pour cause, a caldear as suas próprias convicções na luta, ombro a ombro, com outros homens, ali estava, portanto, o jovem arquitecto, Manuel Maria,  por determinação do Presidente de um grande Município da Área Metropolitana Lisboa, pois que no jovem arquitecto, o Presidente deposita toda a confiança por o saber de indiscutível compromisso com os ideais revolucionários do “25 de Abril” e bem poderia ter acrescentado o Presidente e como se demonstra na garbosa marca na testa, marca indelével da brutal carga policial sobre uma multidão de gente indefesa, que num 1º de Maio, não muito distante, teimou em sair à rua para reclamar Liberdade e Justiça, tão especial  esse 1º de Maio, que não apenas descambou, como era usual, num arraial de pancadaria, com a polícia montada a bater sem dó, nem piedade, numa verdadeira batalha campal como, sobretudo – helás! -   constituiu baptismo de fogo para o jovem Manuel Maria, então estudante de arquitectura e azarento encontro de sua testa (um tanto dura) com o chafalho do polícia a cavalo, tão besta o polícia quanto a besta que montava e, não fora, o encontro, esse sim, encontro predestinado, com umas longas mãos, tão grandes e compridas mãos, quanto outras que, há muitos anos, em onírica transfiguração de criança sensível, vira, claramente vistas, a elevarem-se ao Céu e um homem, andrajoso, ajoelhado perante outro homem, impante de arrogância e soberba e não foram, pois, tais mãos providenciais, que o filaram da correria, Rua do Carmo acima e o puxaram para detrás de um tapume de obras e lhe indicaram o caminho para se safar da perseguição, não foram tais mãos e nunca mais saberia de seu salvador, que ficaria ignorado, seja ele agora, neste tempo narrado, Presidente de um grande Município por vontade da população, que o elegeu, por braço no ar, em grande plenários por todo o Concelho ou, como aconteceria,  sem tais longas mãos, um rosto anónimo,  que poderia ter sido, devorado tal rosto na voragem do tempo e, então a bordoada do polícia seria apenas cicatriz calcinada, na testa sonhadora de Manuel Maria.

Mas aquelas longas mãos, em tudo iguais a outras mãos que, em menino, conhecera, então protegido, por duas mulheres que amavam por igual e o confortavam, perante a terrífica visão de um homem andrajoso e abatido, ajoelhado, com mulher e filhos, todos andrajosos e ajoelhados e lacrimosos e um adolescente, meia dúzia anos mais velho, em fila com seus andrajosos irmãos, porém olhos secos, a chorar para dentro a vergonha do pai, ajoelhado perante outro homem e a pedir perdão mas a pedir perdão de quê, meu Deus? e o grito de revolta e a blasfémia nunca mais serei seu filho e a fugir para bem longe e as juras juradas de nunca mais voltar e as dores da vida nas margens da grande cidade, onde se fez homem solidário na luta política, ombro a ombro com outros homens solidários,  não foram assim tais compridas mãos, que na mente febril de uma criança sensível foram da Terra ao Céu, salvíficas, anos depois, naquele 1º Maio de todas as memórias e todas as iniciações, não foram, pois, tais mãos herdadas de pai abjurado e o filho rebelde e nunca Manuel Maria teria a empolgante possibilidade de reconhecer  a identidade do seu salvador, naquele 1º Maio de todas as memórias e todas as iniciações.


E, no entanto, ali estavam ambos, agora, na medida de suas vidas e na evocação de seus encontros e desencontros, José Augusto Esquerdino, galhofeiro e Manuel Maria, a sangrar, de cabeça aberta pelo chanfalho de um polícia a cavalo, ambos filhos espúrios, da Casa Grande e de seu poder arbitrário e cada um a dar conta de si, no mesmo lado da vida, Manuel Maria, a sangrar, em fuga, da brutalidade da polícia e José Augusto Esquerdino, clandestino, a organizar e dirigir a poderosa manifestação com outros seus camaradas, colocados, em lugares estratégicos, a supervisionarem os seus desenvolvimentos
.
E ali estava, agora, como sempre desejara, Manuel Maria, generoso e inteiro, nas ondas da Revolução e na euforia e na perplexidade de seus avanços e recuos, a viver, mais empolgado que nunca, todas as antevisões e sonhos traçados, escassos tempos antes, na mesas de uma pastelaria da Avenida de Roma, com uma trupe de amigos, tão sonhadores quanto ele, com genuíno fervor revolucionário e emoção, bem maiores ainda do que a devoção e entusiasmo com recebia as “prédicas” de um padre operário que lhe acalmara as dores da adolescência e o instigara aos apelos da política e à resistência antifascista, que a glória de Céu se conquista na Terra na libertação dos oprimidos e de todos os injustiçados.

Porém, a exibição, ainda que íntima, da memória desses tempos soava-lhe a descabida vaidade, quando não mesmo traição aos valores que o guiavam e a evocação do episódio de confrontação com a polícia, perturbou Manuel Maria, que depressa se recompôs, sacudindo com os dedos a lembrança da carga policial, tomando consciência da dimensão da sua jactância, pois José Augusto Esquerdino, sem nunca de tal se vangloriar, tinha feitos lendários de resistência antifascista pelos quais pagara com sucessivas prisões e torturas e agora, neste tempo de frenética actividade revolucionária, aceitara, com a mesma modéstia e simplicidade sempre, ser designado pelas estruturas político-militares do poder revolucionário para presidir um grande Município, de fortes e arreigadas tradições democráticas e depois aclamado pelo Povo do Concelho, em grandes plenários da população, pois que alguns homens se erguem ao cume do tempo e dão impulso e forma ao devir da História e, por isso, deixam marcas à sua passagem.

E, então, o tufão da memória, mais uma vez se ergue para, em  febril agitação, Manuel Maria, trazer de novo à tona, num tempo então de negrume, prepotência e arbítrio, José Augusto Esquerdino, então em rebeldia, abandonando pai e mãe, irmãos e aridez e a miséria da sua adolescência e, cerce e célere, a fazer-se homem nos golpes da vida e forjar o carácter e alargar a consciência política e a disciplinar a sua rebeldia natural, através da organização e do trabalho colectivos, ombro a ombro, na solidariedade com outros homens, que descobre irmanados nas mesmas causas de Liberdade e Justiça, sem nunca vergar, no seu processo amadurecimento e de metamorfose em revolucionário a tempo inteiro, pois que nunca um homem deve ajoelhar perante outro homem – suprema provação – se o homem ajoelhado, humilhado, ofendido, vergado é o Pai, o Herói, aquele de quem se herda o nome, então, se assim acontece, se essa suprema provação desaba, como cataclismo pavoroso sobre as certezas simples de um adolescente, que pode o pobre adolescente, espoliado do que  de mais sagrado tem como filho que é o amor e o respeito pelo Pai,  ídolo e herói de todas as façanhas, ainda que todas as proezas sejam singelamente (ou por isso mesmo) a luta pela sobrevivência diária, que pode pois um adolescente assim violado no âmago da sua vida, fazer que não seja fazer-se homem num relâmpago e resgatar a honra e a vida madrasta do Pai, herói caído, ajoelhado e mãos em prece, perante outro homem e o esgar do seu sorriso de triunfo de joelhos, Zé Canhoto, de joelhos, que perdão pede-se de joelhos!  que pode, pois, um adolescente fazer senão crescer em dignidade e, num segundo, fazer-se gigante e perante o poder arbitrário de quem tudo tem tudo manda, negar-se, em rebeldia, à afronta e calar as lágrimas e, fulminante, com a raiva a estoirar no sangue, cuspir o rosto ignóbil da prepotência e correr, fugir dali, daquele local de ignomínia, vergonha e medo, correr, correr sempre, deixando para trás,  pai e mãe, irmãos e aridez e a miséria da sua adolescência,  correr pelas margens da vida, aprendendo, aprendendo sempre, com ele próprio e outros homens a domar o sangue e a forjar o carácter e a descobrir o valor da dignidade e da solidariedade humana e a crescer em determinação de luta, pois bem sabe, que é apenas escravo, aquele que aceita colocar a canga.

Manuel Veiga

11 comentários:

Elvira Carvalho disse...

Por causa dos olhos, nem sempre tenho acompanhado esta história, mas o que tenho lido tem-me deixado com vontade de a ler na integra. O que espero poder fazer quando o livro for publicado.
Abraço, saúde e uma boa semana

Cidália Ferreira disse...

Uma óptima leitura!!

~~
A Linha da Vida

Beijo e uma excelente Semana.

Graça Pires disse...

Como só actualizo o blog uma vez por semana, vou lendo conforme vou encontrando, mas sei que irei adorar este livro.
Imiscuir-se na própria narrativa, encenando-se personagem faz parte do estilo do autor que tu és, tornando as narrativas muito mais elaboradas e atractivas.
Uma boa semana com muita saúde, meu Amigo.
Um beijo.

Emília Pinto disse...

Já estava com saudades do Canhoto, do esquerdimo e do José Maria, Manuel. Sou do tempo em que o trabalho ao serviço dos grandes lavradores er um quase escravo oficio; na3 conheço caso de terem de se ajoelhar perante o senhor, mS vi e conheci de perto muitos fihos, ficando sozinhos em casa com uma simples malga de caldo, enquanto os pais trabalhavam recebendo uns trocos e tendo como " merenda" um naco de pão de milho e um copito de água pé , quase vinagre. As escolas, nesse tempo, não tinham nada para ajudar essas crianças e, se chegavam lá com fome, com a mesma voltavam para caso onde o caldeinho os esperava e o pão de milho também. O triguinho, esse era um luxo para alguns, mas só ao domingo. Eu considero-me uma sortuda, pois esse triguinho havia todos os dias e já também um pouco de leite misturado na cevada, mas....amigo, éramos só dois fikhos e isso fazia toda a diferença. Muitas dessas crianças, felizmente cresceram , tornaram-se pessoas de bem, a viver com outra dignidade; encontramo-nos algumas vezes, falamos desses temos; as feridas sararam, mas algumas deixaram cicatriz profunda, Obrigada, Manuel e cá estarei para saber mais. Um beijinho e SAÚDE
Emilia

Emília Pinto disse...

Errei um nome, Amigo...MANUEL MARIA
Desculpa! Bjo
Emilia

Teresa Almeida disse...

Pelas margens andam uns, enquanto outros dão a vida por ideais. No caso vertente, o autor leva o leitor a tentar fazer a ligação das "terminações nervosas" do romance e fá-lo vibrar e viver as emoções dos protagonistas. É a verdadeira arte do romance.

Da minha parte, o meu reconhecimento.

Um beijo, meu amigo Manuel Veiga.

Emília Pinto disse...

Era..Não..mas...filhos..casa...caldinho

Desculpa, Amigo!
Emilia

José Carlos Sant Anna disse...

Difícil esquivar-se à sedução desta escrita, e alguns fantasmas se vão no espelhos dos ecos... Aguardamos o desenlace...
Um abraço, caro amigo!

José Carlos Sant Anna disse...

Leia-se nos espelhos.

Olinda Melo disse...


Texto em que o poder de síntese do autor traz até nós passagens marcantes desta história que bem poderia ter sido a de tanta gente.

Nesta retrospectiva não há forma de contornar a emoção perante o homem coberto de andrajos, com a família também ela andrajosa, a pedir perdão de joelhos, mas de quê, Santo Deus! ele que fora toda a vida ferido na sua dignidade...e o rapazinho transido de vergonha que dali foge, rumo ao desconhecido, para se fazer homem, sem amarras.

Dois meninos, agora adultos, que se reencontram no palco da vida, Manuel Maria e José Maria Esquerdino, e que se propõem trabalhar para um mundo mais justo.

Foi um prazer enorme ler, reler, caro Manuel Veiga, os trechos, em presença, desta narrativa que promete ser um romance de grande fôlego.

Abraço

Olinda

Olinda Melo disse...


Ressalva:

Onde se lê: José Maria Esquerdino

Deverá ler-se: José Augusto Esquerdino

Abraço

Olinda

CELEBRAÇÃO DO TRABALHO

  Ao centro a mesa alva sonho de linho distendido como altar ou cobertura imaculada sobre a pedra e a refeição parca… e copo com...