sábado, agosto 29, 2020

Em Nome Do Pai. E Louvor Da Terra ...

 1.

Sou este chão e esta mágoa

Caliça do tempo em redemoinho

A embargar os olhos gastos…

 

E, no entanto, a terra desmedida

Como quem acerta contas.

E o fio de água e os gretados lábios

E o rumor dos sonhos.

E os ecos.

 

E as maçãs emolduradas

E o fio de prumo

Em que me despenho

E inscrevo na incisão

Do sangue

Rito de passagem

Em que me digo filho e pai

E me acrescento

E sou o mesmo.

Terra minha

E o Mundo inteiro!...

2.

Evoco os nomes e os gestos. E o tempo circular.

E os mistérios. E os murmúrios.

E o cirandar das mulheres. Tecedeiras. Sábias.

Sibilas. Herdeiras de outroras. E auroras.

A raiar tarefas. Lestas.

E a distribuírem o pão.

Parco.

– Ala, que faz tarde!…

E a canícula. E a sesta. O benigno freixo

E a ceifa. E o vinho, em círculo, de mão em mão

Servido. E de boca em boca sorvido.

E as gargantas ávidas.

E a revoada de tordos espantados.

Em meus olhos. Agora húmidos.

 

E as jaculatórias. E as preces. E os cânticos.

E os sinos. E as festas. E o donaire das raparigas

E púberes seios em meus dedos

E a poeira dos caminhos

E fio invisível das coisas

Que religam. E tecem. E se intrometem

E nos guardam. Bênçãos

Sejam!...


E o trilho de meus passos.

E a cavalgada dos sonhos. E os enganos.

E os fracassos. E as partidas. E os retornos.

E aquele abraço. Erguido do chão

Como quem aguenta todo o peso do Mundo.

Em seus braços…

3.

E o nome do Pai. E em louvor da Terra-Mãe.

Evoco o gesto largo. E nobre.

De quem semeia

E pouco colhe.


Sou esta raiz. E esta sede

E o fio de água

E esta poeira

Calcinada…

 

Manuel Veiga

 

Colectânea “Vozes Transmontanas 2020”

Academia de Letras de Trás-os-Montes



 

14 comentários:

Cidália Ferreira disse...

Fantástico, como sempre!! :)
-
Sonhava ser...
-
Beijo, e um bom fim de semana.

" R y k @ r d o " disse...

Poema fascinante que muito gostei de ler
.
Bom fim de semana
Muita Saúde e Paz

São disse...

E és uma raiz forte que suporta tudo, meu amigo.


Beijo e bom Setembro

Tais Luso de Carvalho disse...

Que belíssimo poema para pós férias, Manuel!
Um tanto triste, reflexivo, mas assim todos vamos levando a vida, carregando o imenso fardo com que a vida nos brinda. Porém, de vez em quando chegam alegrias para suavizar os caminhos.

"E o trilho de meus passos.
E a cavalgada dos sonhos. E os enganos.
E os fracassos. E as partidas. E os retornos.
E aquele abraço. Erguido do chão
Como quem aguenta todo o peso do Mundo.
Em seus braços…"

beijo, parabéns, ótimo fim de semana!

Teresa Almeida disse...

Este poema é uma voz transmontana, uma revoada de afetos e um louvor à Terra - Mãe. É um trilho de passos de um poeta de alta estirpe que engrandece a coletânea da ATML/2020.

Haveria tanto para dizer, meu querido amigo Manuel Veiga, que - de tuas palavras - apenas me faço eco.

E esse "Siga a malta" dos "Galandun Galundaina" é um apontamento musical culturalmente rico e muito adequado ao tema.

Abraço arrochado

Juvenal Nunes disse...

Tudo o que fazemos na vida molda-nos de acordo com o que somos, e aquilo em que nos tornamos faz de nós seres integrantes da própria natureza.
Abraço poético.
Juvenal Nunes

Olinda Melo disse...


Salvé, Poeta!

Qual caminheiro, percorre a fundo caminhos e memórias, e imprime com o seu cajado poético a marca indelével de uma emoção que atinge também o leitor.

Essas terras para lá dos montes, que com a dureza orográfica guarda ciosamente as suas tradições e caleja a vontade dos homens, vê nesse Filho que também é Pai a expressão de um grande talento.

Não há neste Poema verso ou estrofe que não nos traga a sensação de olhos húmidos e nó na garganta.

Apraz-me registar a seguinte passagem, dedicada à faina das mulheres e que aqui encontram espaço privilegiado de apreço:

"Evoco os nomes e os gestos. E o tempo circular.
E os mistérios. E os murmúrios.
E o cirandar das mulheres. Tecedeiras. Sábias.
Sibilas. Herdeiras de outroras. E auroras.
A raiar tarefas. Lestas.
E a distribuírem o pão.
Parco."

Bem-haja, Manuel Veiga.

Abraço

Olinda

Marta Vinhais disse...

Somos tudo e somos nada...
Enfrentamos a dor e a alegria...
Brilhante
Obrigada pela visita
Beijos e abraços
Marta

© Piedade Araújo Sol (Pity) disse...

MV

E eu li e vi um dos poemas mais belos por aqui.

O resumo de uma vida.

Gostei deveras!

Boa semana!

Beijinhos

:)

Graça Pires disse...

Li e reli este teu poema, tão belo. Li e reli comovida com as palavras que pronuncias em nome do Pai e louvor da terra.
Do escritor japonês Jiro Taniguchi te deixo estas palavras: "Não somos nós que regressamos à terra, é ela que um dia chega aos nossos corações".
Uma boa semana com muita saúde meu Amigo Manuel.
Um beijo.

Unknown disse...

Tão belo, mas tão belo, Manuel, que me comovi ao ler este seu poema de excelência.
Qualquer palavra que acrescentasse o desvirtuaria. Fico apenas a lê-lo e a relê-lo para meu enlevo.
Um beijinho e um mês de setembro muito bom.
Ailime

Reflexos Espelhando Espalhando Amig disse...

Manuel,
Somos tudo que seus versos
tão bem diz
e muito além das palavras
também.
Adorei essa viagem.
Bjins
CatiahoAlc.

Jaime Portela disse...

Em nome da excelência deste poema, só posso dizer parabéns pelo talento que estas palavras tão bem expressam.
Bom fim de semana, caro amigo Veiga.
E boa Festa.
Abraço.

José Carlos Sant Anna disse...

Em nome do Pai louvo o teu poema. meu caro Manuel. E este belo louvor à terra. E esta emotiva evocação. E o triunfo da palavra para enunciar poeticamente o que se diz, o como se diz, o quanto se diz... Rendo-me à sua palavra poética!
Um forte abraço,

ESCULTOR O TEMPO

Escultor de paisagens o tempo. E estes rostos, onde me revejo. E as mãos, arados. E os punhos. Em luta erguidos…  S ons de fábrica...