segunda-feira, setembro 14, 2020

DO AMOR E DA GUERRA - Fragmentos


Apressemos então os passos, Maria Adelaide e desembaracemos de África, que a narrativa, em que nos fingimos vida, por nós reclama e pelas veredas da escrita havemos de chegar ao afago que fomos, reviver ainda alguns momentos colhidos em contra-mão e cujo eco ainda vibra, como acordes longínquas de uma sonata e a dolência do violoncelo, a desenhar, no íntimo, as emoções que foram e que ambos sabemos memória reinventada.

De resto, que fazemos em Africa? Temos nossas contas ajustadas com África, tu que a vida narrada de Dona Rosalinda te permitiu espreitar para a tua própria vida e resolver o enigma de teu nascimento, pacificando a tua angústia, permitindo-te sublimar o amor de mãe, que não tiveste, no amor de mãe que te preenche. E, de facto, que te importa a ti, Maria Adelaide, a Tabanca, a degradação da situação militar, os bombardeamentos cada vez mais frequentes e intensos, as operações de patrulhamento, os dias contados pelos dedos dos militares da Companhia de Cavalaria, a dois meses da “peluda”? Um universo de causar tédio, sem qualquer claridade que possa acrescentar entendimento aos lances desta narrativa, que já de si, dizes entediante.

Deixemos pois África e evoquemos nossos passos, num tempo outro, de refluxo de promessas revolucionárias, ali à mão de colher, “um pouco azul e seria Céu”, tempos que se finaram “capelas imperfeitas”, e “revolução inacabada”, tempos assim, então, de refluxo e apascentação de ócios, num anódino Departamento da Administração Central do Estado, tu eras quem eras, que dizer, mulher de teu marido, a enfileirar, com algum sucesso, nas hostes do novo poder político e o Alferes, que alferes já não era, mas um jovem licenciado em Direito, comunista, a que o zelo apostólico-político do Director Geral, nem um papel na secretária lhe consentia que justificasse o horário e o vencimento e que, por isso, tal secretária e tais ócios, os meus e os teus, melhor foram ocupados, em vez dos burocráticos papéis, pela graciosidade da exibição de tuas pernas, quando, num gesto de distraída “coquetterie”, sobre a mesa te sentavas, inflamando o olhar e os sentidos de teu novel amigo, pária que fosse para o Director Geral, no entanto, para ti um “must”, que nunca conheceras um comunista “assim tão perto”, de tal jeito que se, de África e da guerra colonial houvera traumas, nessa tua dádiva e no encruzamento de nossas vidas (e descruzamento de pernas), tais traumas se evaporariam.

Sim, é verdade, por África nossa, de guerra e batalhas outras, travadas na luta corpo a corpo pela sobrevivência física e de superação anímica, forjando o carácter e arrostando riscos maiores que os medos, calando fundo afectos, rostos, lugares, pedras, cheiros e sons que eram os seus e ainda hoje permanecem como uma segunda pele, nessa dialéctica entre o que somos a aquilo em que nos transformamos, nesse indizível tempo de todas as esperanças, dele e dos outros, algumas bem mais largas que seus ombros, nesse fruste lugar da guerra e vidas roubadas, por essa África, Terra-Mãe ubérrima e madrasta de seus filhos, nessa macabra dança dos homens e seu destino, nesse acaso ou nesse acinte da sorte, nessa generosidade imaculada e nessa amizade impoluta, o Alferes perdeu o seu irmão de armas, que irmão de sangue nunca teve e cuja morte, a dois de dias de regresso, ficará para sempre como eco de uma balada (nunca cantada) e o gesto tão eloquente de “acender no seu, o meu cigarro”.

Adivinho-te, Maria Adelaide, sei que te escalda a pergunta nos lábios “mas para que serve agora, num momento em que é suposto abandonarmos África e a Tabanca este repisar de uma amizade, dita e redita, com o Valentim? Apenas o teu gosto de remoer, como serpente mordendo a cauda, numa insensatez amarga que te consome sem que nada possas fazer para alterar os dias ardidos. Há mais vida para além da vida vivida, apressa-te por isso, antes que fiques prisioneiro de ti próprio, dentro desse redemoinho em que te comprazes, quando a tua lucidez fica embotada na morbidez de uma culpa sem motivo. O Valentim morreu por que assim estava escrito, não por que, em teu lugar, se ofereceu a evitar-te uma situação, que ambos sabiam ser-te incómoda, sendo que tu próprio farias o mesmo, no caso de uma situação inversa. Esquece por isso esses momentos dramáticos da morte de teu amigo, que nada, nem ninguém pode desfazer, pois que vida é para sorver nos momentos bons e cuidar, sem amargura, os momentos maus! Anima-te, meu amigo, há um tempo, lá atrás, de um beijo suspenso e um livro roubado que exijo, nessa ardência de corpos, que então éramos.”

“Sim, sim, Maria Adelaide, voltaremos, breve que seja, aos lugares onde fomos felizes, a essa impetuosa entrega, a essa dádiva pagã de nossos corpos, a esse tempo sem tempo que fingimos e, fingido somos, no milagre das palavras em que nos inventamos. Mas antes deixa que escorra a ferida, como punção dolorosa, mas tão necessária, para sarar o sofrimento e, por escassos momentos, reinventemos, nas palavras em que nos jogamos, os últimos dias da Companhia de Cavalaria, em Bissau, de regresso a Lisboa (…).

Manuel Veiga

"DO AMOR E DA GUERRA - Fragmentos - Pág. 99

Edição Modocromia - Romance - Lisboa 2018

ver wook - Bertrand - FNAC


8 comentários:

Cidália Ferreira disse...

Gostei de ler! Obrigada pela partilha:))
*
Quantos segredos se contam ao mar.
*
Beijos, e uma excelente semana. :)

Emília Pinto disse...

Tempo complicado esse, da guerra em Afica, Manuel. Se alguns conseguiram fazer dele uma época de grandes amizades que permanecem até hoje, outros há que ficaram marcados para a vida e não conseguem tirar da cabeça a morte daquele amigo, chegando até a culparem-se por ela. Felizmente, que na minha familia as coisas correram bem e é com admiração que os vejo recordar os momentos bons, não deixando que as desgraças que viram lhes tirem a sanidade mental ou que os façam odiar Africa. Africa merece ser respeitada e lembrada com carinho. Afinal Africa sofreu e continua a sofrer pela ganância do ser humano, sempre pronto a açambarcar as suas riquezas. Obrigada por teres voltado a este tema. Cuida-te, Amigo! A situação não está para brincadeiras. Um beijinho e boa noite
Emilia

Pedro Luso de Carvalho disse...

Pois é, caro amigo Manuel Veiga, quando nos deparamos com livros que não conhecíamos logo imaginamos o que poderá conter de vida e de mistérios nas suas páginas. Então, como sempre faço, procurei descobrir um pouco de seu livro, e gostei do que li nesta postagem, o suficiente para imaginar um pouco mais de seu conteúdo desta sua obra ( “Sim, sim, Maria Adelaide, voltaremos, breve que seja, aos lugares onde fomos felizes (...)"

Bravo, Manuel!

Grande abraço.

Olinda Melo disse...


Uma das mais belas páginas do seu livro, Manuel Veiga.
E outras nele existem em que sentimos a emoção a par
de momentos vividos em teatro de guerra.

"Do Amor e da Guerra - Fragmentos", romance que tive
o prazer de ler e de comentar no meu blog - "Xaile de
Seda".

Gostei imenso de o ver aqui recordado pelo seu autor.

Muito obrigada.
Abraço
Olinda

Manuel Veiga disse...

muito grato pela leitura atenta, que a Olinda Melo fez do meu livro "Do Amor e Da Guerra" e o destaque que lhe mereceu no seu elegante Xaile de Seda, um belo espaço de cultura, inteligência e bom gosto.

guardo essa distinção com simpatia e amizade.

Bem haja.

abraço

São disse...

>A guerra colonial é ainda uma chaga mal cicatrizada.


Gostei do texto, claro




Abraço, meu amigo

Teresa Almeida disse...

Realmente merece destaque toda a obra, mas este excerto é de trazer a lume pois que "Do amor e da Guerra" se trata. São páginas de verdadeiro prazer literário.

Um abraço, caro amigo Manuel Veiga.

José Carlos Sant Anna disse...

Basta para nos apressarmos o primeiro parágrafo deste excerto. Corramos, embora a narrativa não se se escafeda, para nos deliciarmos com esta bela narrativa de amor, guerra, invenção e memória.
Para sabermos mais de Maria Adelaide, é preciso reviver a África ali retratada. Mas não se assustem, “o cabra” é bom, muito bom também na prosa. Como disse, depois da sedução do primeiro parágrafo, “o cruzar e descruzar de pernas” de Maria Adelaide é apenas um detalhe, mas não pisquemos os olhos...
Um abraço, caro amigo Manuel!

EM .LOUVOR DA AMIZADE

  A amizade é um alagar-se por dentro Num lento movimento sem gestos: quase mudo! Uma música sem ritmo, um quase-nada Que assinala e...