Apressemos então os passos, Maria Adelaide e desembaracemos de África, que a narrativa, em que nos fingimos vida, por nós reclama e pelas veredas da escrita havemos de chegar ao afago que fomos, reviver ainda alguns momentos colhidos em contra-mão e cujo eco ainda vibra, como acordes longínquas de uma sonata e a dolência do violoncelo, a desenhar, no íntimo, as emoções que foram e que ambos sabemos memória reinventada.
De resto, que fazemos em Africa? Temos nossas contas ajustadas com África, tu que a vida narrada de Dona Rosalinda te permitiu espreitar para a tua própria vida e resolver o enigma de teu nascimento, pacificando a tua angústia, permitindo-te sublimar o amor de mãe, que não tiveste, no amor de mãe que te preenche. E, de facto, que te importa a ti, Maria Adelaide, a Tabanca, a degradação da situação militar, os bombardeamentos cada vez mais frequentes e intensos, as operações de patrulhamento, os dias contados pelos dedos dos militares da Companhia de Cavalaria, a dois meses da “peluda”? Um universo de causar tédio, sem qualquer claridade que possa acrescentar entendimento aos lances desta narrativa, que já de si, dizes entediante.
Deixemos pois África e evoquemos nossos passos, num tempo outro, de refluxo de promessas revolucionárias, ali à mão de colher, “um pouco azul e seria Céu”, tempos que se finaram “capelas imperfeitas”, e “revolução inacabada”, tempos assim, então, de refluxo e apascentação de ócios, num anódino Departamento da Administração Central do Estado, tu eras quem eras, que dizer, mulher de teu marido, a enfileirar, com algum sucesso, nas hostes do novo poder político e o Alferes, que alferes já não era, mas um jovem licenciado em Direito, comunista, a que o zelo apostólico-político do Director Geral, nem um papel na secretária lhe consentia que justificasse o horário e o vencimento e que, por isso, tal secretária e tais ócios, os meus e os teus, melhor foram ocupados, em vez dos burocráticos papéis, pela graciosidade da exibição de tuas pernas, quando, num gesto de distraída “coquetterie”, sobre a mesa te sentavas, inflamando o olhar e os sentidos de teu novel amigo, pária que fosse para o Director Geral, no entanto, para ti um “must”, que nunca conheceras um comunista “assim tão perto”, de tal jeito que se, de África e da guerra colonial houvera traumas, nessa tua dádiva e no encruzamento de nossas vidas (e descruzamento de pernas), tais traumas se evaporariam.
Sim, é verdade, por África nossa, de guerra e
batalhas outras, travadas na luta corpo a corpo pela sobrevivência física e de
superação anímica, forjando o carácter e arrostando riscos maiores que os
medos, calando fundo afectos, rostos, lugares, pedras, cheiros e sons que eram
os seus e ainda hoje permanecem como uma segunda pele, nessa dialéctica entre o
que somos a aquilo em que nos transformamos, nesse indizível tempo de todas as
esperanças, dele e dos outros, algumas bem mais largas que seus ombros, nesse
fruste lugar da guerra e vidas roubadas, por essa África, Terra-Mãe ubérrima e
madrasta de seus filhos, nessa macabra dança dos homens e seu destino, nesse
acaso ou nesse acinte da sorte, nessa generosidade imaculada e nessa amizade
impoluta, o Alferes perdeu o seu irmão de armas, que irmão de sangue nunca teve
e cuja morte, a dois de dias de regresso, ficará para sempre como eco de uma
balada (nunca cantada) e o gesto tão eloquente de “acender no seu, o meu
cigarro”.
Adivinho-te, Maria Adelaide, sei que te escalda a pergunta nos lábios “mas para que serve agora, num momento em que é suposto abandonarmos África e a Tabanca este repisar de uma amizade, dita e redita, com o Valentim? Apenas o teu gosto de remoer, como serpente mordendo a cauda, numa insensatez amarga que te consome sem que nada possas fazer para alterar os dias ardidos. Há mais vida para além da vida vivida, apressa-te por isso, antes que fiques prisioneiro de ti próprio, dentro desse redemoinho em que te comprazes, quando a tua lucidez fica embotada na morbidez de uma culpa sem motivo. O Valentim morreu por que assim estava escrito, não por que, em teu lugar, se ofereceu a evitar-te uma situação, que ambos sabiam ser-te incómoda, sendo que tu próprio farias o mesmo, no caso de uma situação inversa. Esquece por isso esses momentos dramáticos da morte de teu amigo, que nada, nem ninguém pode desfazer, pois que vida é para sorver nos momentos bons e cuidar, sem amargura, os momentos maus! Anima-te, meu amigo, há um tempo, lá atrás, de um beijo suspenso e um livro roubado que exijo, nessa ardência de corpos, que então éramos.”
“Sim, sim, Maria Adelaide, voltaremos, breve que seja, aos lugares onde fomos felizes, a essa impetuosa entrega, a essa dádiva pagã de nossos corpos, a esse tempo sem tempo que fingimos e, fingido somos, no milagre das palavras em que nos inventamos. Mas antes deixa que escorra a ferida, como punção dolorosa, mas tão necessária, para sarar o sofrimento e, por escassos momentos, reinventemos, nas palavras em que nos jogamos, os últimos dias da Companhia de Cavalaria, em Bissau, de regresso a Lisboa (…).
Manuel Veiga
"DO AMOR E DA GUERRA - Fragmentos - Pág. 99
Edição Modocromia - Romance - Lisboa 2018
8 comentários:
Gostei de ler! Obrigada pela partilha:))
*
Quantos segredos se contam ao mar.
*
Beijos, e uma excelente semana. :)
Tempo complicado esse, da guerra em Afica, Manuel. Se alguns conseguiram fazer dele uma época de grandes amizades que permanecem até hoje, outros há que ficaram marcados para a vida e não conseguem tirar da cabeça a morte daquele amigo, chegando até a culparem-se por ela. Felizmente, que na minha familia as coisas correram bem e é com admiração que os vejo recordar os momentos bons, não deixando que as desgraças que viram lhes tirem a sanidade mental ou que os façam odiar Africa. Africa merece ser respeitada e lembrada com carinho. Afinal Africa sofreu e continua a sofrer pela ganância do ser humano, sempre pronto a açambarcar as suas riquezas. Obrigada por teres voltado a este tema. Cuida-te, Amigo! A situação não está para brincadeiras. Um beijinho e boa noite
Emilia
Pois é, caro amigo Manuel Veiga, quando nos deparamos com livros que não conhecíamos logo imaginamos o que poderá conter de vida e de mistérios nas suas páginas. Então, como sempre faço, procurei descobrir um pouco de seu livro, e gostei do que li nesta postagem, o suficiente para imaginar um pouco mais de seu conteúdo desta sua obra ( “Sim, sim, Maria Adelaide, voltaremos, breve que seja, aos lugares onde fomos felizes (...)"
Bravo, Manuel!
Grande abraço.
Uma das mais belas páginas do seu livro, Manuel Veiga.
E outras nele existem em que sentimos a emoção a par
de momentos vividos em teatro de guerra.
"Do Amor e da Guerra - Fragmentos", romance que tive
o prazer de ler e de comentar no meu blog - "Xaile de
Seda".
Gostei imenso de o ver aqui recordado pelo seu autor.
Muito obrigada.
Abraço
Olinda
muito grato pela leitura atenta, que a Olinda Melo fez do meu livro "Do Amor e Da Guerra" e o destaque que lhe mereceu no seu elegante Xaile de Seda, um belo espaço de cultura, inteligência e bom gosto.
guardo essa distinção com simpatia e amizade.
Bem haja.
abraço
>A guerra colonial é ainda uma chaga mal cicatrizada.
Gostei do texto, claro
Abraço, meu amigo
Realmente merece destaque toda a obra, mas este excerto é de trazer a lume pois que "Do amor e da Guerra" se trata. São páginas de verdadeiro prazer literário.
Um abraço, caro amigo Manuel Veiga.
Basta para nos apressarmos o primeiro parágrafo deste excerto. Corramos, embora a narrativa não se se escafeda, para nos deliciarmos com esta bela narrativa de amor, guerra, invenção e memória.
Para sabermos mais de Maria Adelaide, é preciso reviver a África ali retratada. Mas não se assustem, “o cabra” é bom, muito bom também na prosa. Como disse, depois da sedução do primeiro parágrafo, “o cruzar e descruzar de pernas” de Maria Adelaide é apenas um detalhe, mas não pisquemos os olhos...
Um abraço, caro amigo Manuel!
Enviar um comentário