domingo, outubro 17, 2021

 

A viagem aproximava-se do fim. Até Celorico, seria uma escassa meia hora de ronceira marcha do comboio. Depois, mais uma hora, em estafada camioneta de passageiros e estaria, finalmente, na Casa Grande, a abraçar duas mulheres, que o amavam, como se filho de ambas fosse.

Enganou-se, porém, Manuel Maria, num pequeno pormenor, um quase nada, que o deixou perplexo e que explode de tão densa significação – a recebê-lo, na saída da Estação, o vistoso Ford V8, ao serviço exclusivo do Senhor da Casa Grande

 

A CARTA QUE NUNCA TE ESCREVEREI - Take 31

Com o tempo, o carácter de Federico Amásio, senhor da Casa Grande, refinou em maldade e decaiu em vigor. O pendor femeeiro, com o correr dos anos, foi cedendo espaço ao álcool, de que aliás sempre usou e abusou, de tal jeito, que vícios somados, ao transpor a meia-idade, Federico Amásio era uma sombra de si próprio, alvo de zombarias e chacotas, a propósito do seu vigor físico e não havia bicho careta, que não acrescentasse um ponto ao anedotário que corria pelas tabernas e hospedarias região, sobre as proezas eróticas e as monumentais bebedeiras do Senhor da Casa Grande, não raras vezes, encontrado tombado à  porta de qualquer tasca ou casa de má fama. O Senhor da Casa Grande era, pois, uma sombra de si mesmo, que poucos respeitavam e ninguém temia.

E, entanto, meia dúzia de anos atrás, lhe bastaria estalar os dedos para que surgissem, como num passe de mágica, dois ou três jagunços que, a troco de uns patacos, estavam “dispostos a tudo” para caírem nas suas boas graças, disputando o privilégio de ficarem ao seu serviço, que tanto podia ser um ajuste de contas com meeiro recalcitrante, como uma arruaça, sem outro motivo, que não fosse o seu capricho e a ostentação do seu mando, ou, não raro, vingança mesquinha sobre mulher que se negasse.

Federico Amásio era, portanto, neste tempo narrado, uma pálida sombra de si mesmo, em razão do álcool e dos excessos, já se disse, mas também pelo lento desmoronar do edifício social que sustentava o seu mando e as suas arbitrariedades. Na realidade. com a derrota do nazi-fascismo na 2ª Guerra Mundial e o ascenso dos Estados Unidos a potência à escala global e a consolidação do modelo político demoliberal nos países ocidentais, era de esperar que Estado Novo sentisse abalado e perdesse credibilidade. O isolamento internacional do regime acentuou-se e, no plano interno, a oposição era cada vez mais aguerrida. Com o  início da Guerra Colonial, aprofundaram-se as contradições do regime, com os “liberais” e a dita “Primavera Marcelista” a preconizarem algumas reformas que se traduziram, fundamentalmente, na alteração do nomes nas instituições repressivas e uma certa “modernização” do discurso político, o que levava, por reação, a “velha guarda” do regime a acentuar a retórica fascista e aos extremos de pretender erguer uma cruzada contra comunismo internacional em defesa “Civilização Ocidental”, de que Portugal seria o último reduto.  Federico Amásio fora assanhado prosélito desta fação, mas, depois de umas farroncadas malsucedidas, pelos corredores da União Nacional, regressou amargurado à Casa Grande, dizendo a quem o queria ouvir vivíamos num País de castrados e maricas.

E nunca mais voltou a Lisboa.

Abrutalhado, mas não destituído de inteligência, a convier diariamente com “a sua gente”, conhecia bem a índole do povo beirão, e juízo que este fazia governantes, a quem humildemente serviam, mas que lá no fundo desprezavam, mesmo quando os aclamava, por ocasião de qualquer vista oficial, ou então durante as famosas caçadas que Federico Amásio oferecia, com frequência, aos altos dignitários do regime,  depressa se deu conta que História era soprada por outros ventos (os ventos da Liberdade e da Democracia)  que não os ventos da “histeria”  dos “legionários  salazaristas”.

Faltavam, porém, ao titular da Casa Grande competência e sabedoria (ou dir-se-ia, instinto de sobrevivência) que outros “velhos aristocratas” demonstraram possuir e, por isso. se salvaram, não se importando de “mudar alguma coisa para que tudo permanecesse na mesma”, quer dizer, para manter o essencial do poder económico e social e a sua permanente influência política.

Mas o Senhor da Casa Grande não! Ciente que o seu mundo de poder arbitrário de “posso, quero e mando” estava a chegar ao fim, ressabiado com a política e os políticos que governavam o País (uns frouxos) e enredado nas determinações do seu carácter, Federico Amásio chafurdou nos seus vícios e excessos – gozaria até à exaustão  seus prazeres e seus caprichos e o resto do Mundo que se fodesse…

Manuel Veiga

 

 

10 comentários:

Olinda Melo disse...


Palmas para o regresso desta "Carta..." que nos introduz em
momentos históricos que é mister não esquecer. Verificamos
aqui a "queda" do Senhor da Casa Grande, sem ânimo ou competência
para emendar caminho.
Entretanto, a chegada de Manuel Maria traz-nos um certo "suspense"
para o que virá a seguir.
E cá estamos para testemunhar o excelente trabalho desenvolvido pelo
escrevente, que nos dá conhecimento de toda esta trama.
Gosto muito do seu estilo, Manuel Veiga.
Dá cartas tanto em verso como em prosa.
Grande abraço.
Olinda

Elvira Carvalho disse...

Gosto desta história apesar de não ter lido alguns capítulos anteriores. Espero poder ler a totalidade quando publicar em livro.
Abraço, saúde e boa semana

Pedro Luso de Carvalho disse...

O poeta de talento, o meu caro amigo Manuel Veiga, tem igual talento para o conto, como se pode ver por essa bela narrativa em que mostra o lado cruel da política, passando por algumas fases histórica como a Segunda Guerra Mundial, sem deixar de abordar questões que envolvem tanto o fascismo como, de outro lado, o comunismo. Um conto sem dúvida da melhor qualidade.
Desejo ao meu caro amigo uma excelente semana.
Saúde!
Grande abraço.

Graça Pires disse...

Fico sempre a pensar como é possível fazeres a poesia que fazes e escreveres um romance com o talento de quem o faz há muito tempo... Quando o editas?
Cuidem-se bem.
Uma boa semana.
Um beijo.

Ana Tapadas disse...

Estou com a Olinda! Partilho a opinião.

É um enorme prazer ler estas cartas. Prosa bem urdida.

Beijo

Emília Pinto disse...

Digo precisamente o mesmo que a nossa Amiga Olinda " palmas para o regresso destas cartas" e agora. Amigo, espero que não demores muito a contar o que se passou de seguida, pois " ficamos em pulgas " Vim agora mesmo do blog da querida Olinda onde ela escreve sobre os seareiros e a Seara nova e o seu centenário. Já tinha visto aqui a alusão a essa revista e não pude deixar de vir cá dar-te os parabéns pela contribuição que tens dado a este assunto Obrigada por esse trabalho e fica bem, especialmente com SAÚDE. Beijinhos
Emilia

Teresa Almeida disse...

Li e quero reler esta carta - tão bem notada. Trata-se de uma excelente análise social e política. Esclarecimentos que ajudam a construir pensamento crítico. Ou não fosses tu, meu amigo Manuel Veiga, um dos elementos que mantém de pé a "Seara Nova". Nome que atravessa o tempo e rejuvenesce. E festeja 100 anos de vigilância, intervenção e atividade literária.

Aguardamos o fermento das tuas publicações.

Meu abraço de amizade e apreço.

lis disse...

Passando pelo blog da Olinda ,venho parabenizá-lo pela Revista 'Seara Nova' a quem dedicas um grande carinho e contribuição e ja tinha algum conhecimento por seu intermédio.
Encontro um belo take de uma carta que só que perde é 'para quem você nunca escreverá'. rs .
Grande abraço e Parabéns pelo Centenário da Seara Nova que continua mantendo relevante presença na vida cultural portuguesa.
Meu abraço, mVeiga

Ailime disse...

Boa tarde Manuel,
Um texto magnífico que muito apreciei ler.
Parabéns pelo seu talento também na prosa, que ignorante, não tenho acompanhado.
Um beijinho e obrigada pela sua visita e comentário, que muito me honrou.
Ailime

Tais Luso de Carvalho disse...

Meu amigo Manuel, muito bom para mim andar por esse caminho da ficção, que também é a sua seara, saindo-se muito bem com o talento que não lhe falta, aliás, sempre está sobrando, tanto na prosa como na poesia.
Gostei muito, meu amigo.
Deixei um comentário pra você, também, na nossa amiga Olinda.
Beijo, meu amigo, cuide-se bastante.

Sem Pena ou Magoa

  Lonjuras e murmúrios de água E o cântico que se escoa pelo vale E se prolonga no eco evanescente…     Vens assim inesperada me...