O comboio subia ronceiro, como as
letras desta prosa, a linha da Beira Alta, uma tormenta, que Manuel Maria suportava
com resignação, sempre que se deslocava de Lisboa para Terras do Demo, ou vice-versa, nada de viagens regulares, pelo
Natal, Páscoa ou Férias Grandes, como era usual com os estudantes da província,
deslocados da família, mas não Manuel Maria, que apenas subia e descia a linha
da Beira Alta, conforme os desígnios e as determinações da Casa Grande, onde era nascido e mal tolerado, embora amado,
por duas mulheres, como se ambas, sua mãe, fossem, reserva de afecto, tal amor
de mães, que será sempre, perante as agruras que sempre
batem à porta de alguém, por maiores que sejam os favores terrenos e as graças céu
que mereça e, sendo assim, por maioria de razão será no caso de uma criança
sensível, a suportar o estigma do seu nascimento e a esconder a vergonha de ser
nascido, fruto de condenável mancebia, quer dizer, do escaldante encontro entre
apetite desenfreado do Senhor da
Casa Grande com o crepitoso corpo
de Violante, um pouco estouvada, convenhamos, a invejar, sem medir distâncias,
o homem, que face à Lei de Deus e dos homens pertencia a sua ama e Senhora, sua
amiga e confidente, (que outra irmã não tivera) encontro funesto, portanto, entre
as crepitosas carnes da serviçal Violante, um pouco desmiolada, já se sabe, porém
apetitosa, com a gula do Senhor da
Casa Grande, marido da fidalga
Camilinha a quem qualquer “rabo de saia” despertava apetites, colheita de dores,
portanto, e dissabores para as vítimas, que, saciado o carrasco, levavam um
pontapé no cú e põe-te
andar daqui p´ra fora, vergonha,
portanto, para as mulheres que iam no engodo e depois do prazer e da ilusão,
aguentavam sozinhas uma gravidez, sem pai conhecido, que o povo matreiro e
jocoso, dizia, em surdina, que tal gravidez era obra do “obra
do Espírito Santo”.
Muita sorte teve, pois, Manuel
Maria, em ser amado por duas mulheres, como se ambas sua mãe fossem e ter
agasalho no inverno e comida todo o ano e, perante a iminente expulsão daquela
ilustre Casa, qual filho de uma cadela, ter ficado a seu lado a generosidade e
a determinação da Machorra,
que, embora sua mãe não fosse, como tal o amava e,
em sua autoridade de esposa preterida e humilhada, vergou a vontade do Senhor da Casa Grande, determinada em
ir ao Bispo e ao Governador Civil ou ir a Lisboa ou ao Papa ou a casa do Diabo,
se tal fosse necessário, mas toda a gente ficaria a conhecer o nome do pai
da criança cruelmente expulsa e assim todos ficavam a saber quão reles era a
estirpe do Senhor da Casa Grande.
Sorte, portanto, a de Manuel Maria,
na solidão da sua infância, proibido de se misturar com os outros meninos da
sua idade, e também mal tolerado nas suas correrias nos salões da Casa Grande, por entre a galeria de pinturas e retractos que o “desafiavam” na sua fantasia e nos seus jogos solitários,
o que provocava irritada reprimenda da mãe e da madrinha e da voz tonitruante
do Homem que nunca ria e perante o qual os outros homens ajoelhavam e pediam
perdão, mas pedir perdão de quê,
meu Deus? se o homem mau era ele, o homem que nunca ria, e não
aqueles que o serviam, como a sua mãe e a Madrinha, que se desfaziam em cuidados para o servir e ele
sempre aos gritos e ameaças, a exigir e a ordenar, como se fosse o senhor deste
mundo e do outro.
Subia, pois, Manuel Maria, escorado
na sua reserva de maternais afectos, rumo à sua infância, em ronceiro comboio
pela linha da Beira Alta, de noite, que a urgência era grande e assim lhe havia
sido ordenado para chegar pela manhã, sem que o telegrama urgente, ou o
solícito padre-operário, seu tutor na Instituição,
e que havia de conquistar-lhe a amizade e
moldar-lhe o carácter, sem que, dizíamos, telegrama ou o padre deixassem perceber
as razões de tamanha urgência.
Subia, pois, Manuel Maria, de sul
para norte, rumando à Casa
Grande, donde fora precocemente arrancado
aos afagos de duas mulheres, que o amavam como filho, e despachado para um instituição
religiosa de acolhimento de rapazes, que para esconder as vergonhas das
famílias ilustres, tais instituições são criadas, subia, pois, Manuel Maria, de
sul para norte, num comboio ronceiro, pouca
terra, pouca terra, com o corpo dorido,
dormitado, por vezes, ou procurando concentrar-se na leitura da qual se soltava
para mergulhar, novel arquitecto, num dos seus habituais solilóquios que haviam
de tornar-se célebres, anos mais tarde, quando, abandonada a arquitectura e
domesticado o sonho de uma Arquitectura para o Povo, decidiu “medir-se” como escritor, mas não ainda,
neste tempo narrado, em que os seus mais cálidos sonhos era envolver-se
profundamente na política e na luta antifascista, pois não é por acaso, que se exibem, no
sobreolho, os garbosos vestígios de brutal agressão da Polícia de
Choque, em plena Baixa lisboeta, num
“1º de Maio” ainda recente, que se diria ainda a fumegar nos cascos dos
cavalos e na bestialidade policial, mas também a
fumegar na determinação das massas populares, agora que se extremavam posições e
se adivinhava o estertor do regime, com o colapso da autoproclamada Primavera Marcelista e seus sofismas “liberalizantes”, bloqueados e neutralizados
pela linha dura do regime e o aumento da repressão fascista, cada vez mais
violenta e, por outro lado, os cada vez
mais evidentes os sinais de desagregação do regime.
Subia, pois, Manuel Maria rumo a Terras do
Demo, de Sul para Norte, em
contramão das águas, entregue às suas fantasias, perscrutando as linhas com que
haverá cerzir-se o futuro, filho enjeitado, a interrogar-se sobre esta urgência
e esta despropositada viagem e a garantir que, jovem arquitecto, em breve,
seria senhor de suas decisões, sem outras sujeições que não sejam escolhas suas,
ou do seu núcleo de afectos, como aquelas duas mulheres, que a ambas ama, por igual
medida, como se filho de ambas fora e a ambas perdoa esta cesura e este degredo
de alma de saber-se filho da
vida.
Raiava a manhã. Por entre, entre a
copa dos pinheiros, o carmim do nascer do dia e a atmosfera fantasmagórica do
nevoeiro, a elevar-se da superfície e a desfazer-se, em farripas, atravessado
pelos primeiros raios de sol. Abriu a janela da carruagem para melhor absorver
a paisagem e deixou-se arrastar por esses reflexos de luz e movimento que seu
olhar capturava em emoção estética, esquecido de si e da viagem, num mergulho
telúrico do sol a arder, em gotículas de água, por entre a copa das árvores.
A viagem aproximava-se do fim.
Manuel Maria saiu de seu torpor e dá-se conta da insólita ocupação da Estação
de Santa Comba Dão por militares da GNR e com a brusca entrada na carruagem do revisor
da CP, acompanhado de três GNRs, que além do bilhete de comboio intimavam os
escassos transeuntes a apresentarem o respectivo cartão de identificação,
prontamente obedecidos, que o tom façanhudo da autoridade não deixava margem a
dúvidas. Quis Manuel Maria saber as razões de tal aparato e foi recebido com o
olhar desconfiado do guarda “receia-se
uma tentativa de golpe de Estado por parte de alguns militares comunas – há que
estar vigilante e atento – e, devolvendo os
documentos, em tom provocatório – você é
comuna, rapaz?...
Manuel Maria engoliu a provocação e.
numa bravata inconsequente, que apenas a emoção e a alegria irreprimível provocados
pelos acontecimentos acabados de conhecer, poderiam justificar, ripostou – “se há uma Revolução em Lisboa terminou o
poder de Santa Comba Dão e você perdeu toda a autoridade: nego-me a responder a
essa pergunta …”. O guarda ainda esboçou
um gesto de agressão, que recolheu de imediato, pois, com uma revolução em
andamento, nunca se sabe para que lado tombam os acontecimentos, de forma que é
de elementar bom senso não fazer ondas desnecessárias e, dali abalou, o guarda,
carrancudo, como entrara.
Manuel Maria fervia de emoção e
recriminava-se (como se fora ele o responsável) pela inoportunidade da viagem que
o impedia de viver “em directo” alguns dos mais marcantes episódios da
Revolução de “25 de Abril” e uma das mais empolgantes gestas da História Pátria
– o Largo do Carmo, a rendição de Marcelo Caetano, a alegria, os abraços
anónimos, as correrias, as lágrimas
irreprimíveis, a profusão dos cravos vermelhos, o extravasar das emoções soltas, os gritos de vitória
e, nesse cadinho de sonhos e promessas, na medida, em que se ia consolidando a
Revolução, germinava, na acção política e na vontade das massas populares, a Aliança
Povo/MFA, esteio fundamental do êxito da Revolução.
A viagem aproximava-se do fim. Até
Celorico, seria uma escassa meia hora de ronceira marcha do comboio. Depois,
mais uma hora, em estafada camioneta de passageiros e estaria, finalmente, na Casa Grande, a abraçar duas mulheres, que o amavam, como se
filho de ambas fosse.
Enganou-se, porém, Manuel Maria, num pequeno pormenor, um quase nada, que o deixou perplexo e que explode de tão densa significação – a recebê-lo, na saída da Estação, o vistoso Ford V8, ao serviço exclusivo do Senhor da Casa Grande
Manuel Veiga
4 comentários:
Há muito que não lia nenhum episódio desta excelente história.
Abraço e saúde
Um texto repleto de verdades que a realidade que bem conhecemos assim confirma.
Abraço amigo.
Juvenal Nunes
Um capítulo muito bem escrito que muito gostei de ler. Grato pela partilha.
Cumprimentos poéticos
.
Pensamentos e Devaneios Poéticos
.
Um livro excelente que tenho que acabar de ler.
Porém, apraz-me constatar que na prosa és igulmente fantástico!
Beijinho, Manuel
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