segunda-feira, maio 01, 2023

A CARTA QUE NUNCA TE ESCREVEREI (excerto)

Aquele tempo, porém, era ainda tempo de Cantinas Velhas e de borbulhas a formigar revoluções e tigres de papel e correrias à frente da polícia em “Primeiros de Maio Vermelhos”, com o Rossio a abarrotar de revolta e a GNR a espadeirar sem olhar a quem, operários, estudantes, passeantes e turistas, velhos e novos, mulheres e crianças, cabeças a sangrar, quedas e tombos na correria, ferraduras dos cavalos empinados a relincharem e a chisparem na calçada, gritos e aflições, grupos organizados que, em carrossel, se revezavam e apareciam e desapareciam, inesperadamente, por detrás dos cavalos, gritando, amálgama de insultos e palavras de ordem, alguns manifestantes, mais decididos e bem organizados, a esquivarem-se dos bastões e a segurarem as bestas pela brida e a passarem-lhe pó de pimenta pelas narinas dilatadas e o escoicear frenético e equilíbrio instável dos guardas sobre as selas e Manuel Maria acossado, a sangrar e a correr pela Rua do Carmo acima, quase filado pelos cascos do cavalo e pelo bastão do façanhudo guarda, erguido, lá bem alto, na iminência de descer novamente sobre seu frágil e dorido costado. E, naquele vendaval de pancadaria, por entre as dezenas de manifestantes, que, em desespero, buscavam protecção na fuga e nas reentrâncias dos prédios, como uma bênção caída dos céus, sem que nada a fizesse prever, Manuel Maria é puxado para dentro a vedação de um prédio aparentemente em obras, prosseguindo polícia e cavalo, com o Manuel Maria a salvo, a cegueira solta e o afã de perseguição sobre os manifestantes mais à mão se semear, bem se sabendo que, como em tudo na vida, tantas vezes, o mal de alguns é alívio de outros. De tal sorte que, também no caso, embora apenas precariamente separado da agitação e dos perigos do exterior, por um frágil tabique, a verdade é que Manuel Maria se sentiu em segurança, com o breve ruído seco da porta a ser trancada e o sorriso irónico do homem, ainda jovem, não mais que meia dúzia de anos mais velho, alto, seco, uma bela barbicha a enquadrar-lhe o rosto sedutor, impecavelmente vestido, último grito da moda, como se fosse modelo saído de uma vitrina, onde apenas as mãos desmesuradas e os dedos grossos destoavam da elegância do porte, imperturbável e sorridente, como se as dantescas cenas que lá fora, literalmente, a um palmo do nariz, se passavam e de que a cabeça partida e o rosto ensanguentado do jovem eram testemunho dramático, fossem para ele, o imperturbável salvador de Manuel Maria, cenas de teatro de rua ou quadros de uma peça dramática, cuja sequência detinha os fios. E, então, a voz do homem, alargando o sorriso acolhedor “Guerra é guerra!... Tiveste um belo baptismo de fogo, não haja dúvida!... Vai, corre! Lavas o rosto na torneira que encontras lá ao fundo, saltas o muro, corres pelo logradouro, segues pela cave do prédio em frente e estás a salvo”… Manuel Maria, ainda a titubear de surpresa e emoção, agradeceu e quis conhecer o nome de seu salvador. “Que nada! vai, foge! – exclama com firmeza, o desconhecido – conhecerás o meu nome um dia, se tiver de ser…”. E Manuel Maria jurou para os seus botões que jamais iria esquecer aquele rosto e o tamanho daquelas mãos, que apenas outras assim vira em tempos esvoaçantes da infância, numa aldeia longínqua das Terras do Demo, onde pela primeira vez vira a luz do dia, filho incógnito de amores espúrios de criada de servir e não era sua condição de dama de companhia que a redimia do ónus de servir na vetusta Casa Grande. Rapidamente, porém, Manuel Maria varreu lembranças antigas (que a hora era de outras dores) e se escapuliu, através do logradoiro dos prédios, seguindo as instruções de seu salvador, indo desembocar a meio da Rua do Ouro. Afogueado pelas emoções e pelas correrias, Manuel Maria disfarçou como pode os hematomas e os resquícios de sangue nos cabelos, enfiando uma larga boina basca e, afoito, caminhou, em passada larga, rumo ao Rossio, apto a prosseguir a luta e a candidatar-se a umas novas bordoadas. O ambiente, porém, mudara, em poucos minutos. Tal como se desencadearam, sem nada o fazer prever, qual cenário em ópera bufa que, inesperadamente, se altera ou, dito com mais propriedade, como se, após forte trovoada, a atmosfera se abrisse em bonança, ainda porém sob o efeito da tensão eléctrica, assim também a agitação e os gritos e as correrias e os polícias e os cavalos e as imprecações e as palavras de ordem e os desmandos e as chanfalhadas e as costelas partidas e as cabeças abertas e os incautos e pacíficos transeuntes apanhados, sem dó nem piedade, na onda da bestealidade policial se haviam calado e a larga praça do Rossio, orgulho de lisboetas e encanto de turistas, retomava gradualmente a sua pachorrenta rotina, com caixeiros e lojistas abrindo novamente portas e vitrinas, um grupo ou outro a comentar os acontecimentos, prontamente desfeito pelos polícias de giro e os esparsos gritos das sirenes a riscar os ares e um pelotão da polícia de choque acantonado nas traseiras do Teatro D. Maria não vá o Diabo tecê-las e a onda levantar-se de novo e o os cavalos da Guarda Nacional Republicana recuados na Praça da Figueira e rasgão na cabeça do Manuel Maria a doer c´mo caraças, e a estação do Metro do Restauradores rumo à Residência de Estudantes e a remoer sozinho os acontecimentos da tarde, que não se alcançava pelas redondezas nenhum dos amigos que a brutalidade da carga policial havia separado e tal fora combinado que, em caso de dispersão, cada um regressaria por seus meios. E assim também agora, por seus próprios meios, em tempo literário outro, já não tempo de borbulhas a formigar revoluções e 1º de Maios vermelhos e proibidos e manifestações reprimidas e cabeças partidas, que esse tempo é tempo passado e em todas as laudas da história pátria jurado tempo de fascismo nunca mais, mas neste tempo agora, tempo de cerejas e grávido de promessas e de revoluções ao vivo, tempo de sonhos e de quimeras e canções que alguma coisa há-de sobrar delas, das canções e das quimeras e dos sonhos e desse tempo e desse povo também, a tomar em suas mãos o seu destino e o novel arquitecto Manuel Maria a acreditar genuinamente numa Arquitectura para o Povo e, neste ínterim, a subir aos Paços do Concelho, determinado a colocar os seus conhecimentos urbanísticos ao serviço da Revolução e oferecer a sua colaboração a José Augusto Esquerdino, recém-eleito, por braço no ar, em amplo plenário da população, Presidente da Comissão Administrativa da Câmara Municipal.

VIVA O PRIMEIRO DE MAIO!

Manuel Veiga

2 comentários:

- R y k @ r d o - disse...

Vivi esse tempo. Felizmente que os Capitães de Abril, gente ativa e corajosa, nos libertou das correntes e agulhetas do fascismo
.
Feliz dia de feriado, dia do trabalhador
.
Pensamentos e Devaneios Poéticos
.

Olinda Melo disse...


Glorioso excerto, amigo Manuel Veiga.
Tive de o ler com vagar, pois apesar
de já ter tomado contacto com esses
capítulos do seu precioso livro, uma
nova leitura se impunha.

E, mais uma vez, pude percorrer essa
sua forma ágil e dinâmica de escrever
que nos faz "ver" tudo a acontecer.

E fê-lo em boa hora, para comemorar um
dia que a Revolução de Abril de 1974
nos trouxe: o 1º de Maio.

Muito obrigada.
Grande abraço.
Olinda

NA ORLA DOS LÁBIOS...

  O poema desenha-se na orla dos lábios Na íntima tensão do verbo antes de explodir Itinerário de sombra rente à luz   Ou murmúrio...