- Há seres extraordinários, homens e mulheres que, vêm ao mundo, condenados, à partida, a uma vida irrelevante devido às condições do seu nascimento “o homem é ele e as suas circunstâncias”, bem se sabe. No entanto, outras pessoas, ultrapassam os limites do seu nascimento e são elas próprias a afirmar-se pela força do seu caráter e pela determinação que põem nos seus actos. Nesses casos, bem pode afirmar-se que são os homens a construir a “circunstância” da sua própria vida. Existem, até, outras dimensões existenciais, geralmente, declinadas no feminino, em que tais exemplos de superação, quer pela força de caráter, quer pela beleza que emprestam â vida, ficam a ressoar com marca indelével da passagem pelas agruras do mundo.
- Sejamos claros! o escrevente, neste seu jeito de escrever emrodeios, como cavalo em picadeiro, outra coisa não visa, neste naco de prosa bárbara, do que aproximar-se da heroína, com gentileza e respeito, bem sabendo ele quanto ela é frágil e arredia e para lhe possuir a alma, não tem o escrevente outra alternativa que não seja uma cortesia discreta e o preito de admiração, a sublinhar a generosidade e a elegância com que a jovem fidalga soube respeitar o seu matrimónio, apesar da traumática noite de núpcias, que, como ficou mil vezes dito, a violência e a grosseria destravada do noivo assumiram o inaudito e que ficaram a , sangrar toda a vida.
- Porém, como árvore que cresce deformada e, apesar de tudo, dá saborosos frutos, assim a Camilinha transformou as suas dores em repositório de dedicação e bem-querer, na metamorfose do seu sacrifício em gesto de arreigada devoção filial, face aos desígnios para si tratados entre o senhor, seu pai e seu noivo, o nobre e poderoso senhor da Casa Grande.
- Vinda de sul para norte, em razão do seu casamento com o senhor da Casa Grande, Federico Amásio, determinada pela ideia generosa de salvar a sua fidalga família da miséria, já que seu nobre e velho Pai. o Visconde de Malafaya se encontrava totalmente cravado de dívidas de jogo, mediante as quais grande parte do património da família já tinha sido desbaratado.
- Enfim, um casamento, não diremos do berço, mas, enfim, um casamento de interesses mútuos – o Visconde pagaria aos seus credores com o dote da filha e o Senhor da Casa Grande aumentaria o seu prestígio e seu mando e poder.
- Como se sabe, com a Camilinha chegou também à Casa Grande a Violante, uma cachopa de sangue alvoroçado, filha de uns caseiros e que, desde sempre, vivera com os Malafaia, servindo de aia e companheira de brinquedos e, não raro, alvo dos caprichos e do mau humor da fidalga. A Camilinha ganhara-lhe, entretanto, verdadeira afeição, et pour cause, a fez criada para seu serviço pessoal, apesar de a considerar um pouco estouvada, benza-a Deus!... Violante irá ter um papel fundamental no devir e desta “estória” mal cerzida e no destino da própria Casa Grande, onde tudo começa com o nascimento de uma criança que será mais tarde, se assim quiserem deuses e a vontade do escrevente a, criança será então arquiteto e escritor e amado, ao longo da vida por duas mulheres, como se filho de ambas fosse…
- Porém, esta história de amores cruzados, pôr muito penoso que seja, impõe que regressemos à noite de núpcias e as cenas de violência e humilhação, a que a Camillinha, fidalga e mimada, educada em colégio religioso.. onde aprendeu a ser temente a Deus e aos seus desígnios, filha obediente e devota e noiva inocente e pura, tanto quanto os alvos lençóis de seu leito de noiva. maculados apenas, não pelo sangue virginal, mas pelo sangue que escorria do seu corpo agredido e abusado pelo noivo. a quem nunca perdoará, tão fundas as dores físicas e as dores da alma e tão graves as humilhações a que foi sujeita, por quem, mais que todos, deveria amá-la e protegê-la e dispensar-lhe toda a delicadeza e respeito, como inocentemente esperava, pois, se até os animais selvagens se mimam e acariciam as suas fêmeas, será contranatura e um duplo pecado humilhar a mulher eleita como companheira de vida, por desígnio de Deus e vontade dos homens. Assim, por muito penoso que seja. uma vez mais regressaremos a essa noite fatídica, como quem busca. no lodo da natureza humana. a gota de água salvífica.
- Tenhamos, então, em conta, que na saleta contigua aos aposentos da fidalga, Violante, escutava. amargurada os gritos de dor e os queixumes de sua amiga e senhora- Por diversas vezes tentou entrar no quarto dos noivos e outras tantas Frederico Amásio a expulsou pela força, empurrando e agitando ameaças veladas “espera pela volta, minha putinha, que ainda não chegou talvez, portanto rua!... Que para aqui não és chamada!..., por enquanto...” acrescentava. num esgar lúbrico, que pretendia ser um sorriso irónico e, de novo regressava a Camillinha, transida de medo, aninhada num canto do amplo leito conjugal, que, rapidamente saltou da cama, esquivando-se aos braços de Federico Amásio, que corria atrás da esposa em redor da leito, fugindo a Camillinha a qualquer aproximação do marido, numa espécie de jogo da cabra-cega, a que o Federico Amásio parecia encontrar imensa graça, rindo como um alarve e mimoseado a esposa com um chorrilho de palavras sórdidas. A cair de bêbedo e algo cansado com a correria atrás da esquiva corsa, sua amorável esposa, Federico Amásio tombou sobre uma cadeira e célere adormeceu, ou tal parecia, tão profunda era a respiração e tão sonantes os desarticulados sons que expelia pela boca e narinas.
- A atenta Volante, pressentiu, então, um sono profundo e a oportunidade para entrar e cuidar de sua amiga e Senhora, a quem tudo devia, dedicando-lhe palavras de conforto, limpando o sangue dos lábios e colocando paninhos de água quente nos hematomas e embalando em seus braços, como a Camilinha fosse criança a requer cuidados e carinhos de outra mulher, que estava ali para a servir. Assim, fiaram as duas mulheres, dama e aia, em silêncio, longamente abraçadas, cobertas apenas de uma beleza natural, como se um quadro de Botticeli se tratasse … “o que irá ser das nossas vidas, aqui neste degredo, sem alguém que nos proteja? – lamuriava-se a Camilinha deitada, agora com a cabeça tombada sobre o ventre da Violante e as suas copiosas carnes… “alguma coisa se há.de arranjar!...insistia, numa esperança surda, Violante, tentado confortar sua amiga e Senhora, em nova crise de choro.
- Não se sabe que voz dos antepassados na galeria de retratos. que habitava as paredes dos extensos corredores, ou que espírito maligno terá acordado Federico Amásio naquele momento especialmente belo, em o corpo das duas mulheres, semidesnudadas na cama, fidalga uma, plebeia a outra, compunham um momento único, de rara beleza, como um quadro vivo, desenhado pela mão inspirada de um grande artista.
- Federico Amásio, pouco dado a êxtases estéticos, esfregou os olhos, meio incrédulo, ainda sonolento e, quando se deu conta da realidade, manteve-se em silêncio, a desfrutar o espetáculo das duas mulheres, a Camilinha, alta e loira, pele suave e alva, adivinhando-se o recorte dos seios pequenos e rijos, cobertos com uma camisa de seda fina e a Violante, opulenta de carnes, bem torneada, seios bem fornecidos, pele trigueira, coxas sedosas e firmes , coberta com um camiseiro de linho, que mal lhe cobria o corpo, a balancear-se sobre as ancas, num recorte de sensualidade, que punha a arder o sangue de um homem.
- Federico Amásio esboçou um esgar, o mais possível parecido com um sorriso, imaginando-se a desfrutar o apetitoso corpo da Violante e, acicatado por sua mente licenciosa, depressa passou da imaginação aos actos. Num bocejo fictício, simulou acordar naquele momento e ordenou a Violante para lhe dar um copo de água. Mal a rapariga ficou ao seu alcance, Federico Amásio filou-a por um braço, que torceu para as costas e, acto continuo, agarrou os cabelos negros e compridos e, assim dominada, o carrasco predador obrigou sua presa a dobrar-se pela cintura sobre o leito e, com a mão livre, trepou pelas coxas e tocou o sexo que, para seu gáudio, o sentiu húmido e a resistência de Violante a ceder como fortaleza tomada “que delícia!... esta putinha está a gostar!..” e, assim, estimulado, como um cavalo sobre sua potra a penetrou, uma, duas três vezes, em frente da Camilinha, sua esposa, que enrolada na sua dor, tapava, de vergonha. o rosto.
- Saciado o desejo, Federico Amásio, enquanto se recompunha, lançou como peçonha, sobre a Camilinha, “Toma, concedo-te a puta da tua criada! Talvez possas aprender alguma coisa com ela…”. E saiu do apartamento, soltando uma escarninha gargalhada.
- E nunca mais procurou a doce Camilinha, sua esposa, aquém, daí em diante. passou a designá.la como a “Machorra”.
- Entretanto. a volência e os vexames blindaram, por dentro, o corpo e Camilinha, que nenhum homem, em momento algum. conseguiu quebrar e possuir. e nunca perdoou ao marido, Senhor da Casa Grande, todo poderoso. Mas perdoou a Violante que não soube, ou não foi capaz ou a sua natureza não o permitiu – “tão estouvada que era, benza-a Deus” manter-se virgem e ser leal à sua Senhora, mais que sua ama, sua amiga…
- Aliás, tem o escrevente razões para suspeitar, que a Camilinha não apenas perdoou à sua serva, como até mesmo a incitava entregar-se ao patrão, que dela se “servia”, quando bem calhava. “Se há-de ser outra, porque não a Violante?… Afinal a Violante é discreta e sabe guardar distâncias!...” – dizia para os seus botões, a doce Camilinha, Senhora da Casa Grande, com subtil sagesse…
- Entretanto, Federico Amásio acabara de dar o corpo à terra e alma ao Diabo…. E a Revolução estava na rua!...
- E Manuel Maria “preso” na Casa Grande, por duas mulheres, que ambas o amavam, com se filho de ambas, fora!...
- Manuel Veiga
sexta-feira, maio 12, 2023
A CARTA QUE NUNCA TE ESCREVEREI....
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3 comentários:
Um belo texto que me fascinou ler. Parabéns.
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Um dia com Paz e Amor
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Bravo! O escrevente está de parabéns. De uma penada situou-nos na trama. Passou em revista a vinda da Camilinha acompanhada da Violante, pôs em destaque a violência do Senhor da Casa Grande, Federico Amásio, lembrou-nos que este já tinha sido dado à terra, e o Manuel Maria objecto do amor das suas duas "Mães" acabara de chegar à Casa Grande.
E assim, estamos prontinhos para o que se seguirá. Como leitora interessada anseio pela continuação.
Sempre a admirá-lo Manuel Veiga.
Grande abraço.
Olinda
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