terça-feira, junho 13, 2023

A CARTA QUE NUNCA TE ESCREVEREI...

 

Manuel Maria regressou pois a Lisboa dando-se a Camillinha por vencida na contenda entre ambos sobre o regresso do jovem “se tens, assim, tamanha urgência, o velho Nicolau te levará de automóvel até Coimbra onde poderás apanhar depois o comboio rápido, vindo do Porto o que te permitirá ganhar umas horas e viajar mais confortável.

Manuel Maria ainda torceu o nariz a sugestão, pois lhe era penoso utilizar um automóvel, que fora de uso exclusivo de Frederico Amásio, mas ambas as Mulheres que o amavam como se filho de ambos fosse, fizeram-lhe ver quão infantil era a sua atitude e a Camillinha com uma carícia ironizou “podes utilizar automóvel, a menos que tenhas receio de encontrares a alma do teu pai sentada ao volante” ...

O velho Nicolau fez o cálculo do tempo que demoraria a até Coimbra, para não me perder, o comboio rápido vindo do Porto, evitando assim o ronceiro comboio da linha da Beira e poder chegar a Lisboa mais cedo. Manuel Maria, com um velho Nicolau ao volante, sentou-se a seu lado e as duas Mulheres que o amavam como se fossem ambas sua a mãe verdadeira, prolongaram nos  olhos húmidos e no longo aceno o beijo de despedida, não que sem antes tivesse recomendado: “e tu, Nicolau, vê lá se tens cuidado com a condução!... não esqueças que transportas contigo o meu tesouro e o futuro desta Casa e das próprias “terras do Demo”…

Aos primeiros quilómetros de viagem, Manuel Maria caiu um de seus habituais torpores, remoendo seus pensamentos mais íntimos, povoados agora já não apenas pela urgência de chegar a Lisboa para se colocar ao serviço da Revolução, mas também na morte de Federico Amásio obcecado por lembranças antigas das suas prepotências. não sobre ele. que faz o possível por esquecer e perdoar, mas sobretudo sobre outros desamparados, totalmente dele dependentes, para quem Frederico Amásio, representava trabalho e a sobrevivência. E, nestas ocasiões, sabe-se lá porque estranhas veredas ou caminhos da Memória levavam Manuel Maria! Agora eram aquelas longas mãos do Zé Esquerdo, que por vontade dos homens e graças do Espírito Santo havia sido “ungido”, em consagração batismal de Esquerdo !em Esquerdino, numa apostólica passagem do Zé ninguém, que era, para o “Zé ninguém que passou a ser, porém agora com sua honrada alcunha de esquerdo, expurgada de incomodas esquírolas esquerdistas e. por isso, elevada a condição batismal de “Esquerdino”.

Assim, pois, Manuel Maria, a caminho de Lisboa, deixando para trás uma herança inesperada, que perturbava, sentado ao lado do condutor no luxuoso Ford v 8, remoendo os seus pensamentos, procurando elaborar a razão das coisas e acontecimentos que a Memória lhe traz à superfície, de mistura com urgência de chegar a Lisboa. E, neste vaivém da memória, batia obsidiante o negrume daquela manhã fria de Dezembro e as longas mãos de trabalho de Zé Esquerdino estendidas para Federico Amásio pedindo perdão – “mas pedir perdão de quê, meu Deus se o desgraçado apenas pretendia tirar da fome a sua família, descalça e andrajosa”!...  E Federico Amásio, do alto do seu cavalo e da sua soberba “de joelhos, Esquerdo , de joelhos, que perdão pede-se de joelhos! ...” E uma criança tenra de idade a encobrir o rosto com as mãos, entre duas Mulheres que ambas o amavam como se ambas sua mãe fossem, a protegê-lo dessa visão inumana, escondendo-lhe o rosto no regaço  e o Zé esquerdo, rodeado pela mulher e pelos filhos, descalços e maltrapilhos, ajoelhando, humilhado e rendido, a chorar como um pecador e Federico Amásio, do alto da sua soberba, a passar uma, duas, três vezes a chicotear, do alto cavalo, com quem sacode impertinentes insectos.

Foi então que um grito medonho, se soltou como um trovão, da garganta de um jovem adolescente, José Augusto, o filho caçula do justiçado, poucos anos mais que a criança que a tudo assistia, protegido pelos braços e pelo seio de duas Mulheres que o amavam, foi, então – dizíamos - que um adolescente ferido, com alma sangrar, processo pela injustiça que fez estalar no seu grito toda a vergonha e mágoa que sentia por ver assim seu pai e seu herói e seu mestre, assim cruelmente humilhado e ofendido â vista de todo o Povo, sem ao menos ter um gesto ou palavra que a seus olhos o redimisse e o salvasse da dor aguda da sua alma adolescente e o salvasse do seu inferno, de anjo caído, vendo seu querido pai, vencido e submisso como um toiro castrado, secou as lágrimas que o perturbava, e qual anjo de vingança, gritou, atordoando os ares  :- “Maldito sejas, meu pai!... Nunca te perdoarei é vergonha deste dia... Vou embora daqui para fora - gritou  - “ para nunca mais voltar!...”

E correu como um gamo, longe, longe, cada vez mais longe e para nunca mais voltar! E nunca, mais regressou a Terras do Demo! Nem nunca mais quis saber das suas gentes…

E a criança lacrimosa, protegido por duas Mulheres que o amavam, como se filho de ambas fosse calando as lágrimas que lhe embargavam a voz, soluçou: “um homem nunca devia mandar noutro homem...”

A criança acabara de inventar um verso, que havia um dia ser motivo de uma canção revolucionária “realmente real”. Mas agora, ainda não!... O jovem Manuel Maria, neste tempo de um “agora” que se quer literário, “voa” num comboio rápido, vindo do Porto em direção a Lisboa, para se colocar ao serviço da Revolução, embalado no sonho “de uma arquitetura para o povo” ...

 

Manuel Veiga

 

3 comentários:

Olinda Melo disse...


A par com o leitor, Manuel Maria regressa ao passado nas recordações da infância e dos desaires sofridos por homens como o Canhoto e sua família.

Com a Revolução na rua vai agora ao encontro dos seus ideais e de um
projecto de arquitectura para o povo.

Veremos o que se seguirá. Sabemos que o Escrevente está a pôr nisso
todo o seu empenho. :)

Grande abraço, Manuel Veiga.
Olinda

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ភ្នាល់បាល់​ អនឡាញ

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Escultor de paisagens o tempo. E estes rostos, onde me revejo. E as mãos, arados. E os punhos. Em luta erguidos…  S ons de fábrica...