sexta-feira, setembro 08, 2023

A CARTA QUE NUNCA TE ESCREVEREII


 

José Augusto Esquerdino era um individuo valente, com provas dadas, ao longo da sua vida de resistente, um daqueles personagens que se impõem pela grandeza de caráter e pela confiança que inspiram e pela  autenticidade com que pautam o seu comportamento. Nas duras batalhas da clandestinidade nunca se negou a qualquer missão, por maiores que fossem os obstáculos ou arriscados objetivos da luta. Os seus camaradas confiavam nele e na sua acrisolada dedicação à causa da libertação do povo, traços de carácter que nele eram fecundamente naturais, pois que criado e educado com solicitude e apoio de seus camaradas depois de abandonar, para sempre, o lugar que o viu nascer, vivendo, digamos assim, desde tenra idade, no seio da classe operária, e tendo absorvido a sua ideologia transformadora, toda a sua energia se concentrava instintivamente no combate a todas as formas de opressão e exploração. Não há porém, homens perfeitos. E aquilo que são qualidades, noutras circunstâncias, em vez de qualidades, poderão apresentarem-se, como características menos positivas.

Assim também José Augusto Esquerdinho. Em boa verdade, fora do seu meio era um bicho do mato que nunca foi capaz de superar a circunstâncias de ser um aldeão, nascido em Terras do Demo, um obscuro lugar, onde quem mandava era o senhor da Casa Grande, Frederico Amãsio, ele próprio mais boçal e tosco que qualquer um dos trabalhadores das suas vastas propriedades. Um meio soturno portanto, com o negro pão da fome e a ignorância como determinantes sociais e o caceteiro, senhor da Casa Grande,  a ditar a sua vontade, como expressão e força de lei nos  seus domínios e na vasta região, onde exercia a sua reacionária influência.

Pois bem, José Augusto Esquerdino em sua revolta contra as injustiças e a humilhação pública do pai, seu herói e  seu modelo, com a sua fuga – dizíamos – com a sua fuga para nunca mais voltar (“pedir perdão de quê, meu Deus!...”) e  a sobrevivência e a formação cívica e cultural  no querseio da classe operária, e o mais por que passou, designadamente, as prisões e torturas, nunca conseguiu libertar-se completamente, do odor da terra que o perseguia e das bravias fragas, por entre quais crescia o centeio e o trabalho rude dos homens, que trazia agarrados a pele, como uma praga.~.Em consequência, José Augusto Esquerdino (“homem é ele e a sua circunstância”) trazia com ele, sem disso se dar conta, algumas marcas de caráter, típicas do meio rural onde crescera, deixando sobressair uma  exagerada timidez que saltava à vista até para o observador menos atento e lhe conferia um porte esquivo e desconfiado, como se permanentemente estivesse a colocar à distância os seus interlocutores, o que, naturalmente era um incómodo para si próprio e os seus amigos que, por vezes, se sentiam constrangidos e preocupados, pois tais características de personalidade eram por demasiado notadas e, por isso, mais vulnerável, à possibilidade deteção pela policia  política. No entanto, os jovens consideravam-no um verdadeiro herói da resistência ao fascismo. As prisões e maus tratos sofridos por açção da polícia política, davam-lhe uma auréola de herói que muitos jovens gostariam de  imitar, designadamente,  o grupinho da avenida de Roma, que Manuel Maria e o seu amigo Quim Remédios, que ativamente frequentavam, “em tempos de borbulhas e revoluções de papel".

Manuel Maria, já se sabe, tinha verdadeira admiração por José Augusto Esquerdino e uma certa vaidade, por a história da sua luta, ter começado verdadeiramente,  em Terras do Demo, com  sua revolta contra a humilhação do pai ( “um homem nunca deve ajoelhar perante outro homem ”) história que passou a correr de mão em mão, cada um contado à sua maneira, porém a verdadeira “história” de José Augusto Esquerdino, apenas os seus camaradas e amigos mais próximos que sempre o apoiaram e o formaram e introduziram na luta política, quer dizer, a revolta e o abandono da família e a terra que o viu nascer, deixando para trás todo um Mundo, que era seu, apenas ganha densidade e se torna exemplar, na medida em que seu protagonista ganha consciência social e, perante as injustiças, escolhe o caminho mais difícil - o caminho da libertação do s explorados e ofendidos. 

Assim sentenciava Manuel Maria para si próprio, num daqueles solilóquios em que era fértil e que, como que em transe, caía absorto, numa viagem em que percorria todos os meandros da transfiguração da realidade, que ele, mais que ninguém, sabia ser, muitas vezes, a encenacáo  da sua própria vontade Nesta perspectiva, quanto mais Manuel vadmirava José Augusto, maior era a urgência da resposta pergunta “que fazia ali a a Cléo ”pois que, nem de longe, nem de perto, a rapariga tinha de estofo político ou profisso ºque a recomendasse como colaboradora direta do Presidente da Câmar. Que havia ali, naquela relação improvável, uma atração sentimental, porventura de um só sentido, cheirava à distância. A Cléo que em tempo de tertúlias e “todos os maios” passou com distinção o tirocínio de “intelectual monta-cargas” na seleta tertúlia, em que pontificava uma “semiótica criaturinha”. careca, de pernas curtas e dilatado ventre, que mais parecia um aranhiço, a quem a zelosa  Cléo, entre outras delicadezas e tarefas, tais como, carregar montanhas de livros e jornais se esmerava a sacudir-lhe os grãozinhos de caspa ombros da criatura semiótica, Ora não consta que José Augusto Esquerdino sofresse de semelhante maleita, e como tal,  não se compreendi a este espaço sugestão que levoa o que é que estaria ali a fazer a  como secretária pessoal, não ou adjunta ou chefe de gabinete, fossem lá as tarefas que fossem , pois quem a conhecesse saberia que a Cléo era uma verdadeira inutilidade. Enfim, conforme ela gostava de afirmar “não prestava”. Nem na cama, nem em coisa nenhuma, sentencia Manuel Maria, por interposto “escrevente”


Manuel Veiga…


1 comentário:

Olinda Melo disse...

Oh! A Cléo há-de ter as suas qualidades.
Vou esperar para ver se Manuel Maria, através do "escrevente" não lhe arranjará uma missão que se coadune com o momento revolucionário que se vivia então.

O Esquerdino, com tantos traumas de infância, muito tem feito para se valorizar a si próprio bem como aos ideais que chamou para si, defendendo quem mais precisa.

E aqui estou ansiosa por saber a quem é que essa tal "Carta" não será escrita. Sem pressão, claro :)

Um abraço, Manuel Veiga.
Olinda

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