terça-feira, outubro 24, 2023

ACRE LUCIDEZ ...


 

Nego-me à estética do Horrível

E à música de Wagner como se a cavalgada

Da Morte fosse enfeite a enquadrar o telejornal

Nauseabunda esteticização do Desastre

A celebrar o Espectáculo dos corpos e das casas

E as labaredas a lamber os impassíveis olhos

Não refeitos ainda da voragem do Pânico.

 

Nego-me ao microfone em riste

A invadir as bocas e colher a baba das palavras

E espremer o pormenor da Lágrima

E a dobra da Agonia como viver ou morrer fosse

Noção escorreita perante e iminência da Morte.

 

Nego-me a doutas opiniões e ao grande Debate

E ao arroto da Sabedoria ao serviço da Ganância

A desenhar manobras e as invisíveis rotas

Do Lucro e permanente encenação do Mesmo.

 

Nego-me ao leilão das alvas consciências

A pingar em fila da Banca e dos altos muros

Da Instituição. E nego-me aos caninos cibernantropos

A salivarem tweets e likes e rabinho electrónico

A dar a dar, a babarem-se sem ao menos saberem

Que nada representam – pálida imitação dos Donos.

 

Nego-me a esta impúdica exasperação dos lugares.

E da Dor, que sendo minha, é apenas Simulacro

Palavra que não (me) redime, nem me salva

E que, no entanto, teima - acre lucidez de cinza.

 

Manuel Veiga


 

1 comentário:

Olinda Melo disse...

Compreendo que tenha chamado Richard Wagner que, com a sua "Cavalgada das Valquírias", deixa entrever um apocalipse...
e a negação de todo o espectáculo que subjaz a tudo o que seja
grande notícia, pequena notícia ou notícia nenhuma. Apenas porque
há sempre quem necessite dos imprescindíveis quinze minutos de fama,
lembrando aqui Andy Warhol...
"Acre lucidez de cinza", um título e desenvolvimento excelentes.
Grande abraço, Manuel Veiga.
Olinda

NA ORLA DOS LÁBIOS...

  O poema desenha-se na orla dos lábios Na íntima tensão do verbo antes de explodir Itinerário de sombra rente à luz   Ou murmúrio...