terça-feira, outubro 24, 2023

A CARTA QUE NUNCA TE ESCREVEREI...


Manuel Maria saiu da reunião com razões para ficar satisfeito, apesar de não se ter desenvolvido, conforme previa. De alguma forma, tinha ido vindimar e fora ele o vindimado, mas com saldo altamente positivo. Quer dizer, a dupla abordagem com que introduziu a “questão Cléo” não resultou como pretendia, isto é, na perspetiva de Manuel Maria, a conversa sobre o funcionamento do gabinete .levaria a água ao seu moinho. Uma pergunta aqui, uma sugestão ali e o tema Cléo não deixaria de vir à baila (ou não estivesse José Augusto apaixonado) e Manuel Maria carregaria fundo na conversa e José Augusto a empolgar-se , acabando por revelar os pormenores do seu ”affair“ para gáudio de Manuel Maria que ficaria na posse do segredo, trunfo que jogaria na primeira oportunidade, com o objetivo de afagar a sua obsessão, quer dizer, a .inesquecível Cléo . Mas, as contas saíram-lhe furadas, o que acontece aos melhores-

De facto, José Augusto, nos primeiros minutos da conversa, arrumou a questão funcionamento do seu gabinete de apoio, cortando cerce qualquer veleidade de discussão de tal tema e ficando claramente demonstrada inamovibilidade da Cléo “enquanto eu for Presidente da Comissão. Administrativa, a Cléo ocupará o lugar que eu lhe destinar, pois é uma escolha pessoal de que não abro mão, nem admito  intromissões“ declarou  José Augusto, com firmeza, embora mantendo um sorriso benevolente, para depois acrescentar mas ainda bem que vieste, porque ando à procura de um  jurista para me apoiar… como calculas, as leis não são o meu forte” acrescentou, encolhendo os ombros, como quem tenta disfarçar o  o embaraço do défice de formação escolar “serás homem para me ajudar a encontrar o tipo certo para trabalhar comigo?

Manuel Maria apostado em ser útil não perdeu a oportunidade de marcar mais uns pontos na consideração de José Augusto. “na verdade, acho que conheço o tipo que te convinha . – apressou-se Manuel Maria a responder e, num fôlego - “o Artur Fontes fazia parte do nosso grupo, um tipo com imenso  interesse, por  certo, irias gostar dele, era o mais velho do grupo, calado e austero e umas cenas incríveis sobre a passagem clandestina da fronteira, que são uma verdadeira epopeia. Esteve sempre envolvido na luta dos agricultores da sua região e apoia-os muito no reconhecimento do direito das populações rurais sobre baldios, contrariando a florestação que o Estado queria impor pela força. Era bom que eu pudesse convencer”, acrescentou um pouco receoso Manuel Maria -mas conheço-o bem e a única coisa que, por certo, o fará hesitar é o exercício da advocacia que sempre desejou. Manuel Maria acrescentou. “se puder compaginar as atividades no Município com a advocacia, parece-me não ser difícil convencê-lo. E continuou Manuel Maria como se falasse consigo próprio “Em qualquer caso, ele conhece muito bem os seus colegas juristas e não lhe será difícil encontrar o pessoa que pretendes. José Augusto ouvia com atenção os elogios que Manuel Maria tecia ao seu amigo Artur Fontes e interrompendo-o “o que para aí vai, Rapaz! Não há dúvida que esse tal Fontes merece todo o teu empenho, pois então tentaremos contratá-lo como advogado da Câmara, Na realidade, só vejo vantagens em que exerça também a advocacia. E assim ficou combinado, Manuel Maria faria uma sondagem junto do Artur Fontes sobre possibilidade de colaborar com a Câmara e, no momento próprio, acertaria com José Augusto os termos da sua colaboração..

E por aqui ficaria Manuel Maria. Porém, quando esboçou o gesto do se retirar, José Augusto interpelou-o - “já vais embora, Rapaz?! E eu que queria tanto ter novas de Terras do Demo, chegaste de lá há pouco tempo, não é verdade? Como correu o funeral do Amásio? Sei que tinhas uma especial  afeição por ele”- comentou José Augusto com a ironia - mas valeu a pena pois agora és um homem rico", Manuel Maria pasmava! Nunca, que ele se lembrasse, nunca tinham falado sobre Terras do Demo, nem do passado de um e do outro, naquelas terras “Sou um homem rico, como? Eu folgo que  tivesse entregue a alma, ao diabo e esteja de lá nas profundezas do inferno - e assim falou, indignado, Manuel Maria - nada tenho a ver com essa alimária, que, aliás, não lhe faltarão herdeiros – concluiu. numa alusão a vida devassa que o falecido Amásio levara e aos filhos ilegítimos que constava ter feito e abandonado à sua sorte... “Pronto., pronto! É lá contigo! – replicou numa gargalhada José Augusto  - mas sempre te direi que um homem precisa de raízes, isto é, “história” que lhe sirva de bússola e destino da sua vida - acrescentou José Augusto, compondo um ar sério. E, sem dar espaço a Manuel Maria para replicar, acrescentou - e quer tu queiras, quer não quer não queiras, terás que arranjar um pai, o Amásio ou qualquer outro, pois a Revolução não admite “filhos de pai desconhecido” e duvido que as Mulheres que te  criaram e ” que tu amas, como se ambas tuas mães fossem” admitam outro homem como teu pai!... Por isso, Rapaz trata dos teus assuntos, quanto mais cedo melhor e, quanto a herança, sempre te direi que, da riqueza nem sempre vem mal ao mundo, a pobreza e a miséria é que são as desgraças da humanidade. E, empolgado, não é por isso que lutamos? contra a pobreza e a miséria e a alienação do trabalho, tendo em vista quebrar o vínculo trágico da exploração, própria da sociedade capitalista?

E, após uns minutos de silêncio, para se recompor, com um sorriso a bailar lhe nos lábios “agora, sim, podes ir à tua vida, dá cá um abraço!” E José Augusto saiu detrás da secretária e vem abraçar Manuel Maria. um tanto ou quanto perturbado com o teor da conversa. E quando Manuel Maria se dirigia para a porta de saída José Augusto interpelou ainda “Espera aí, Rapaz!... Só uma coisa mais! E de supetão atirou lhe “Partilhar a Cléo contigo é uma ideia que não me desagrada, de todo!...  Sei que vocês têm um passado entre os dois e eu confesso que me agrada muito a Cléo que desperta em mim sentimentos até agora desconhecidos mas estou disposto a partilhar a Cléo contigo”

Manuel Maria olhava incrédulo, sem se atrever a proferir palavra… E escusas de manter isso deu ar de “santinho” de quem não parte um prato. Eu gosto muito da Cléo mas não sou “dono” dela. nem do seu corpo, nem da sua vida. Por isso, a respeito e não lhe peço nada que ela livremente. não esteja disposta a conceder-me, respeito a sua dignidade de mulher e a sua condição e luto para que a igualdade de género seja mais que um slogan e tenha um sentido prático. Sei que um dia não muito distante, as relações afectivas serão plenamente livres, libertas de hipocrisia e jogos de interesses que na maioria dos casos se transformou o casamento, como reflexo da sociedade do exploração. Como poderia, pois, zangar-me contigo por  ambos amarmos a mesma mulher?

E José Augusto dando uma vigorosa palmada nas costas de Manuel Maria concluiu “Por mim nada tens a recear, a Cléo saberá escolher. em cada momento, cada m de nós. Para mim, na minha forma de pensar, esta partilha é uma coisa boa e saudável—Respeita-a por isso. Se a aceitares, não me desiludas!...Manuel Maria acordou como de um sonho e, gaguejando nem imaginas quanto me fazem feliz essas palavras e a tua generosa atitude, que agradeço e admiro pela grandiosidade do teu gesto. És uma pessoa rara, que antecipa o tempo histórico e é coerente com o seu pensamento político. Saberei ser digno de tão grande privilégio. E não receies pela Cléo que não será vítima, mas rainha…

"Como conheceste a Cléo, dizes-me?" Pergunta Manuel Maria, enquanto alcançava a porta de saída. "Em Paris, foi em Paris que conheci a Cléo!...respondeu José Augusto

E assim ficaram os dois homens, numa amizade límpida e genuína e um pouco comovidos. E com o futuro do Universo suspenso das suas palavras!...


Manuel Veiga

1 comentário:

Olinda Melo disse...

Noto que José Augusto Esquerdino, está a lidar com o MM com pulso, não diria se ferro, mas firme. Tudo bem, há que saber tomar decisões, mormente numa altura como aquela.
Mas, não percebi muito bem o que foi aquilo de partilharem a Cléo. Espero pelo próximo episódio para ver em que é que isso dá...
Texto escorreito e elucidativo, Manuel Veiga.
Abraço
Olinda

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