Quando intensamente vivido, o tempo é veloz, como naqueles meses que se seguiram ao 25 de abril de 1974, que voaram, agitados e magnânimos, qual tufão que repusesse a ordem natural das coisas e novas hierarquias do poder fossem estabelecidas em que o Povo é quem mais ordena, e os militares do Movimento das Forças Armadas em união estreita com o Povo.
Mas,
não há que ter ilusões. As revoluções, por vitoriosas (ou virtuosas) que sejam,
são sempre inacabadas! De facto, a história não cabe na metáfora da linha de
montagem, em que se somam, linearmente, momento a momento, novos desenvolvimentos
até atingir o ponto sem retorno, em que, triunfal, a revolução, se consolida,
arrastando consigo as excrescências do passado, lançadas ao “caixote do lixo”
da História. O escrevente, que gosta das margens e duvida do óbvio, não
resiste em afirmar que, em qualquer processo revolucionário, o passado e o
futuro se digladiam e mutuamente se influenciam, num jogo de forças permanente,
designadamente, na morfologia e funcionamento dos poderes difusos (micropoderes)
no interior da sociedade, de que são exemplo maior, o poder económico, e
poder mediático. O activo movimento de retroacção e a aguerrida luta
dos múltiplos interesses em presença, têm em vista capturar o poder de Estado, instância
última da luta e seu objetivo final e, nesse percurso, quando a tensão atinge o
auge irrompe então a movimentação social, cada vez mais “carregada” de energia
e tensão criativas e agudiza-se o conflito interesses em presença e o processo evolutivo
acelera e ganha nova expressividade já não apenas de mútua retroação de
interesses distintos, mas na explosão acesa de luta politica.
Acresce que, quer tenhamos ou não consciência dessa realidade, um determinado tempo histórico é engendrado nas dinâmicas e conflitos de um processo político anterior, sendo que último acabará por prevalecer dominando pela força e pelo exercício da violência (de Estado) no mínimo necessário para um novo tempo histórico se afirmar como vencedor. E, nesse jogo de forças, entre a prevalência dos interesses dominantes e o propósito da sua alteração ou subversão se exercita a matriz do movimento social de resistência que arrasta o processo ao longo de um (novo) tempo .
Acontece, porém, que nas sociedades de tipo ocidental, herdeiras do pensamento de Rousseau e tributárias da Revolução Francesa de 1789, as tensões sociais de índole revolucionária tendem a ser resolvidas pelo voto popular, que em grande medida funciona como válvula de escape das tensões sociais e, enfim, uma vez domesticadas tais tensões, os processos de transformação social e de luta política perde fulgor e, em consequência, afirmam-se com mais vigor os valores e dos interesses dominantes da sociedade em causa.
O escrevente reconhece que foi além do que devia, assumindo um protagonismo deslocado, quando, na verdade, apenas lhe é legítimo elevar-se sobre a trama e os o indispensável para melhor dizer o fio da narrativa e deslindar os seus enredos. Continuemos, pois, tanto quanto possível olhando os horizontes narrativa e a devolver os protagonistas ao seu lugar, seus enredos e perplexidades, em que o menor deles não será, certamente, o que faria ali Cléo,
Digamos então que após euforia dos primeiros meses da revolução de 25 de abril, nesse tempo inaugural de todas as possibilidades e todas as vertigens, reconquistadas que foram as liberdades fundamentais, por acção do Movimento das Forças Armadas, milhares e milhares de pessoas mergulharam na euforia da participação cívica, procurando, cada um, conforme a respetiva disponibilidade, participar na resolução dos problemas concretos, com que a sociedade portuguesa, acabada de sair de quarenta anos de ditadura, se debatia, seja no domínio da habitação ou do ensino, ou da saúde, ou nas questões relativas à Terceira Idade. Formavam-se espontaneamente brigadas de trabalho para a alfabetização e comissões de moradores para as mais diversas atividades, num movimento de base, estimulado sobretudo, pelos partidos políticos, que mais se bateram contra o fascismo. Acontece, porém, que, o movimento popular, representava, no seu conjunto, a grande maioria do povo português, que tinha bem presente, não apenas o atraso económico e social a que estava votado, mas também a guerra colonial, uma guerra injusta e fratricida, ao arrepio dos “ventos da História” que condenou milhares de jovens à morte ou ao exílio, por força de uma política autoproclamada de “orgulhosamente sós”, porém, condenada pelas Nações Unidas e por todos os países civilizados.
Durante alguns meses as massas populares e os militares do Movimento das Forças Armadas, contra ventos e marés, prosseguiram a sua ação revolucionária, acreditando ter chegado um tempo novo, em que a terra é de quem a trabalha e a liberdade, tão duramente conquistada, era “uma liberdade a sério”, que devolvia ao Povo o que o Povo produzia, como proclamava uma canção da época, mil vezes cantada e mil vezes ouvida, cujo refrão é em si mesmo um hino ao trabalho e aos trabalhadores da Reforma Agrária “Só haverá liberdade a sério quando houver a paz, o pão e a habitação e quando pertencer ao Povo o que o Povo produzir-
Acontece, porém, que nem todos os militares do Movimento das Forças Armadas, estavam politicamente aptos para o “assalto aos céus”. Na realidade, a Revolução, que andava de boca em boca, invocada à esquerda e à direita, não representava a mesma coisa para toda a gente, de tal forma que, com avenidas e alamedas a abarrotarem pelo pró e pelo contra, os militares dividiram-se e com eles as forças políticas em que se apoiavam. Pelo meio, notícias de tentativas de golpes e contragolpes mantinham os mais ativistas em ebulição e em tensão permanente e assustavam os mais timoratos. Em certo momento, notava-se que as tensões político-militares apenas poderiam ser dirimidas pelo confronto entre as diversas frações e na contagem das espingardas, o que veio a acontecer na noite de 25 de novembro de 1975, em que os militares revolucionários perderam o poder e, em consequência, foram presos, perseguidos e marginalizados pelas hierarquias militares. De qualquer maneira a Revolução de 25 de Abril, apesar de “vencida”, com o 25 de Novembro, foi uma revolução “ganhadora” na medida em, num curto período, dos mais fecundos da nossa história, as forças revolucionárias vibraram golpes profundos na arquitectura do poder fascista e foram muito longe em relação ao Futuro, de forma que, muitas das suas conquistas são hoje em dia, aquisições sociais irreversíveis e, por tão evidentes, se inscrevem, com toda a naturalidade na vivência quotidiana dos cidadãos.
Bastará lembrar a Constituição da República Portuguesa, escrita no Parlamento democraticamente eleito, mas também escrita nas ruas, com a massas populares exigirem a consagração constitucional das conquistas da revolução e, nessa dialética, se forjou uma Constituição avançada, onde, a par dos direitos de cidadania, se inscreve também um amplo acerbo de direitos sociais, que projectam a Revolução Abril nas sendas do Futuro.
Assim, a Constituição da República se cumpra…
Manuel
Veiga
2 comentários:
O Escrevente escreveu um dos mais belos textos no que ao 25 de Abril diz respeito. Foi buscar não só os fundamentos do pensamento ocidental como também o poço onde o obscurantismo de quarenta anos de ditadura enterrou a vida e os anseios do povo português.
E a guerra que vitimou tantos jovens teve o seu fim pela Revolução que teve lugar em 25 Abril de 1974 fará em breve 50 anos. A Constituição nascida em 1976 trouxe nova luz sobre as coisas. Algumas foram cumpridas e outras não...
Muito obrigada, Manuel Veiga. Precisamos de ler e recordar o passado, no que tem de bom e de mau, para não esquecermos os caminhos que devemos seguir.
Prosa bela bem ao sei jeito.
Grande abraço
Olinda
Onde se lê "sei jeito"
deverá ler-se:
"seu jeito".
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