Encurtemos razões, então, pois é mais
que evidente o enfado. Maria Adelaide, o alfa e o ómega, o norte e o sul, a mão
que fustiga e o braço que embala, de seu berço africano pouco lhe importa, neste
agora de “África Minha”. Depois do
sal das lágrimas e das amarguras e dos frustres dias, com a grande derrocada do
retorno e as usuras de um tempo adverso que isto de Revoluções, tendo suas
causas, razões e justiças e sonhos vivos no toque dos dedos e naquele abraço
que muitos de nós guardamos, são também cratera aberta que devora e tudo
igualha, ganhos e perdas no jogo da vida e, assim também nesse trepidante lance
da história pátria de um “25 de Abril” alvoroçado, em que Maria Adelaide perdeu
a fortuna e percurso lento de menina mimada e seus cuidados e ganhou, entretanto, o tempo maior de seu tempo de
Mulher emancipada.
De África, pouco lhe resta. Memórias
cálidas, que vêm à superfície e ela sacode, pois que a vida no seu presente
infinitivo, é (agora) outra e não vale a pena chorarmos por leite derramado, de
sorte que apenas a foto da bailarina seminua, no Maxime, sentada ao colo do pai, encontrada ao acaso, em caixa de
papelão, por entre medalhas e distinções que Salazar lhe dispensava a ele, senhor
seu pai e outras bugigangas também mortas, apenas tal foto a tem intrigado como
mistério de verdade pressentida e replicada, sabe-se lá, a sépia e com moldura,
na vida de Dona Rosalinda, no seu percurso de chinela no pé e canastra à
cabeça, rua a baixo rua acima, a apregoar peixe fresco, fazendo uma perninha no
fado e outros jeitinhos bem mais fogosos, num bar rasca do Cais Sodré, couto de
marinheiros e vadios, antes de o seu Armando, para mal de seus pecados, a
arrebatar num tango e presa a mil promessas e a um sonho de amor lindo e logo
ela, Rosalinda, fartinha de conhecer crápulas e a levar num mar de promessas e
enganos. Mas cada um é para o que nasce e uma mulher decente e trabalhadeira
também ferve de cio e a lábia de alguns homens é bem capaz de transformar
mulher séria em fêmea perdida. E assim Rosalinda se perdeu e deixou tudo para
trás, mãe, irmãos, o bar e a vida pobre, mas limpa e até o sonho íntimo de ser cantadeira
para se enfiar naquele buraco do fim do mundo, nos confins da Guiné e
entregar-se aos caprichos de seu Armando em que mais tarde entrou também o diabólico
Gaspar, que dela fizeram gato-sapato.
Cada um é para o que nasce é bem
verdade, dona Rosalinda, capacho do Gaspar e do Armando, seu marido, mas com nome
registado e pia baptismal. E uma história. Negra, bem se sabe, a história, mas
a deixar rasto e pegada, ténue que seja, e uma vida também, simples, sonho
ainda, a derramar-se na generosa dádiva de corpo e na maternal devoção ao
Alferes que adoptou, “que lindo és, meu
filho”, como tábua de salvação de um naufrágio, ou sublimação de afectos
abortados.
Sim,
Maria Adelaide, sei que é cruel expor assim descarnada, como fístula de alma,
essa dor íntima e calada que trazes presa, o embaraço e a raiva que a
recordação de tuas condiscípulas no Colégio de freiras, adolescentes como tu, a
inquirirem, com sorrisinho maldoso afivelado nos lábios, elas com nomes
frondosos, a escorrer da libré dos criados e, em seráfica postura de santidade,
a soltarem precoce peçonha, “coitadinha não tem mãe” e “vive com os pretos”,
“como são os pretos?” e tu a aguentares até ao limite do suportável as
afrontas, a conteres a raiva e, com os nervos tensos e a lágrima em seco, a
disparares, desbragada na tua rebeldia, como um murro de eloquência naqueles
ardores feminis da adolescência: “queres saber como é preto? é homem como
branco, mas tem c. maior” e a excitação dos gritinhos, e a Madre Superiora, e a
reprimenda e a carta para teu querido pai, dando notícia de tua rebeldia e do
teu mau aproveitamento escolar e o abandono compulsivo do Colégio e o
apartamento nas “avenidas novas”, guardada por zelosos parentes da província, que
de ti cuidaram, o Liceu Maria Amália, as tuas verduras e frescuras, a faculdade
de Letras, os plenários na “Cantina Velha”, então apenas e tão só – a “Cantina”
– as cargas da polícia, a propaganda clandestina do Movimento Estudantil
transportada, sem teres verdadeira consciência da gravidade, no teu automóvel
com chauffer fardado. as aulas, os exames medíocres e muita treta tua, o João,
promissor advogado com lábia para teu pai e blandícias para ti, o casamento, o
nascimento de teu filho, o momento de nosso encontro, claro que sim, Maria
Adelaide, tudo o que és e tudo o que foste e essa dor maior, dissimulada no
peito e denunciada nos teus olhos, a ausência de Mãe na tua vida, de que
guardas apenas a cálida esperança de a veres vertida na foto gasta de uma mulher seminua
no colo de um homem que sabes ser teu Pai, sem mais nada, apenas o nome próprio
que te disseram, Amélia, sem apelido, nem registos, que assim te falaram,
quando perguntavas, que morrera com teu parto. Sabe-se lá porque tramas da
vida, a vida de uma mulher pobre! Do Maxime e de uma foto desbotada de uma
mulher seminua e de um homem careca, de bigode e charuto que a tem ao colo,
babado de gozo, e de uma menina, no percurso de dor e da sua vã evocação do sagrado
nome de Mãe, ficamos a saber. E que mais? No buraco negro desse absurdo, que é
nascer e morrer, e nos liames que à tona da vida nos mantêm, antes dona Rosalinda,
não é verdade, Maria Adelaide? Sempre saberias onde escorar a tua perda e
depositar a dor funda da tua orfandade.
Neste escarpado trilhar de pedras de
Maria Adelaide em que seu pessoalíssimo itinerário de dor, tão íntimo e sofrido,
se derramou, nenhum discurso narrativo poderá resistir à prova da verdade, nem
autor, se autor houvesse, que não se vergue e arrepie caminho. Deixemos pois
respirar o tempo e o modo deste luto e guardemos silêncio de outros personagens,
pois que, nem Tabanca, nem Alferes, nem a vaidade ofendida de Sanhá Mané, filho
de Régulo e Comandante-Chefe de Todas as Milícias e Tropas Auxiliares do
Comando Territorial da Tabanca, nem sequer o “senhor Gomes”, que na sábia
palavra de Dona Rosalinda os pretos
respeitam e os brancos escutam ou escutavam, antes desta maldita guerra meter
tudo “de pernas para o ar” têm agora ocasião ou momento no palco dorido da narrativa.
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