Mal raiava o
dia. No horizonte, por cima da savana, espalhava-se o vermelhão, anunciando o
sol, intenso na origem que se esbatia, elevando-se até quase metade do Céu, em
tons cada vez mais suaves, prenúncio da canícula que aguardava os corpos. Mas,
por enquanto, a majestade preanunciada do deus-sol espraiava-se apenas num azul
fosco, a espantar a humidade da noite, que aqui e ali esvoaçava ainda, em
nuvens a desfazerem-se, como algodão doce. O Alferes embebecia-se nesses
momentos de indefinição de atmosferas, nessa subtil metamorfose de cores e
ambientes e, por vezes, sentia-se fora do tempo, como se fora apenas um
elemento a mais na paisagem ou testemunha privilegiada, ante o pasmo de seus
olhos, do “diálogo” veemente da natureza consigo própria, procurando decifrar essa
escrita maior e os seus sinais, que por todo o lado o interpelavam. Guerra e
paz e a sua condição de militar e as inevitáveis preocupações e tarefas de
provisório comandante militar da Tabanca, nesses momentos de evasão da alma, eram
como que uma espécie de teatro de marionetas, em que a si próprio se encenava,
como se tudo fosse irreal na sua vida na Tabanca, pois que a verdadeira vida
ficara em trânsito, suspensa onde fora feliz. E, nesses momentos, os olhos
baços derretiam-se numa emoção breve a percorrer o assomo de sua vida e o percurso
de paisagens-outras que alimentavam a solidão dos dias, como bálsamo. E então
era a desfilada de nomes, nuvens fantasmagóricas, em que se embalava. A Lia,
dulcíssima recordação de infância, sua companheira de precoces descobertas do
corpo, a arrostar sua solidão e pecado, com um filho nos braços para vergonha
sua e do padre Francisco, a expiar remorsos e a sua larvar doença em terras
ignoradas de Angola, também em guerra. Eram as orações das tias piedosas. O
regaço da mãe e as açucenas e terna carícia nos caracóis loiros. O ti Zé
Fardela a espicaçá-lo e um melro cantador. E a autoridade do Pai, em passada
larga: “O rapaz vai para Coimbra e será
juiz, acabou-se a discussão!”
Eu sei bem, Maria Adelaide, que é este tom e o
registo que te seduzem e te mantêm presa, por vezes a contragosto, desta narrativa
sem tempo, em que o autor se nega e modo é um capricho de areia, que tanto se
faz como se desfaz, conforme a “mão
invisível” que percorre a narrativa e determina o respirar das palavras, quase
sempre em desarmonia, e, que apenas na instância última em que o leitor as
requer, vivas ou dispensáveis, se envolvem em jogo afectos, galgando a
realidade e a ficção, no equilíbrio instável entre o(s) sentido(s) recreado(s)
e a(s) memória(s) inventada(s), que alguns dirão Literatura e outros encolher
de ombros, num despeito de raposa perante uvas que não alcança. E sabes muito
bem tu que o autor, (se autor houvesse), nada mais prossegue que não seja sua
teima e o gosto de desenhar este simulacro de vida, que vida não sendo, como
vida se afirma.
Poderíamos, assim, Maria Adelaide, continuar a percorrer
este universo de artifícios coloridos (literários, está bom de ver) em que o
Alferes (momentaneamente) mergulha e testemunha, deixando a pairar no ar certo
perfume estético-poético, ou umas vigorosas metáforas para onde, por momentos,
breves que sejam, te descai a chinela e o pezinho, uma escrita, portanto,
escorreita, com sujeito, predicado e complemento directo nos lugares certos e
continuar deliciar-te, como quem oferece um licor raro, “com pasmo de seus olhos, do “diálogo” veemente da natureza consigo
própria” (diz lá que não uma frase bonita!).
Eu sei, Maria Adelaide, o que te inflamaria, a ti,
alfa e ómega desta narrativa, que ficaste, lá atrás, suspensa de um beijo e a
tua deliciosa perversidade de um livro roubado nas mãos. Eu sei, mas hoje não.
Outras são as exigências da narrativa, a requer, - quiçá! - verdadeira reportagem de guerra.
Vai abrir-se a “a caixa de Pandora” e soltarem-se as
maldições da guerra. Não será espectáculo recomendável – talvez seja preferível,
Maria Adelaide, ficares afastada uns tempos. Ou talvez não. Porventura possas, talvez,
aparecer, mais tarde, trasvestida de senhora de impoluta conduta, temente a
Deus e amante dos pobrezinhos, qual dedicada activista do Movimento Nacional Feminino
e de sua corte de “madrinhas de guerra”. Quem o poderá jurar, se o autor não
existe?
Manuel Veiga
1 comentário:
Ai, Adelaide, Adelaide !
Se tu soubesses, quanto prazer há na leitura desta escrita...
Releio-te na insondavel memória do autor, que o não sendo, o será.
E da tua vida, nestes retalhos espalhados, fica-nos um tempo de guerra, no olhar perdido:
...ficaste, lá atrás, suspensa de um beijo ...
És musa que não cabe num simples aerograma.
Por isso, espero-te mais tarde, em qualquer esquina do poema, onde o poeta deixará, porventura, a beleza do aroma, e a escrita literária tão rica e tão pujante.
Até logo...
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