segunda-feira, junho 12, 2017

FRAGMENTOS XLII - Maria Adelaide no seu melhor



Foi pois o Alferes ao encontro do Capitão Mascarenhas que, terminado o bridge e o conhaque, ordenara a sua presença, no gabinete do Comando e Sala de Operações, amplo espaço da vivenda, que antes fora alcova e leito de Dona Rosalinda e campo de outras refregas, que para aqui não são chamadas, trespassado o Alferes pela pungência de recordações tão vivas e tão acesas que escaldavam o crânio, a explodirem entre o apelo da memória e premência da ordem do Capitão Mascarenhas, intrigado o Alferes de tal urgência, pois que, na rotina dos dias na Tabanca, assimilada a certeza que os dias de ripanço e fluidas leituras haviam terminado, nada fazia prever a magna reunião, entre o Comandante da Companhia de Cavalaria e seu Adjunto.

Na realidade, com a urgência que as circunstâncias ditavam, “todos os civis haviam sido imediatamente evacuados”, conforme a ordem militar que assim o determinara, depois dos traços, letras e números desordenados em que tal ordem se dizia, ganharem, pelo engenho do “cabo da cifra”, expressão gramatical, bem se sabendo que os ratos são os primeiros a abandonar o navio em transe de naufrágio, assim também, o agente da PIDE, Rolão Antunes, olhos e ouvidos do poder colonial-fascista naquele remoto lugar, desandou, com folgada antecedência, rumo a Bissau, levando de boleia o agente comercial da C.G., o filho da puta Gaspar, seu alter ego, conhecido em toda Tabanca, negros e brancos, por “kamenino”, alcunha lapidada na vergonha, se vergonha houvera, pelo assédio vicioso aos garotinhos negros que a troco de umas guloseimas lhe frequentavam a casa e lhe aplacavam os ardores e ele, Gaspar, filho  da puta mil vezes e agente comercial da todo poderosa C.G., unha com carne com o Armando, que o diabo o levara, no dizer de Dona Rosalinda, roído de febres e remorsos e que, numa noite quente, em qualquer bar do Cais Sodré, num tempo outro atrás narrado, o Armando arrebatou a ela Rosalinda, nos requebros de um tango, corpo coleantes de sensualidade e paixão e de cabeça esquentada por promessas, beijos e fantasias, ele Armando, rapagão trigueiro e bem-falante, a levou a ela, Rosalinda, mulher esquiva e séria, atrás de um sonho, que virou inferno e arraial de porrada, naquele cú do mundo que era a Tabanca.

Ora, sendo que “todos os civis haviam sido imediatamente evacuados”, como ficou atestado, não por obediência à ordem militar expedida, embrulhada e dissimulada em letras e números e chegada legível às mãos do Alferes por esmerado exercício de decifração do “cabo da cifra”, mas por agudo instinto de ratos sempre os primeiros, como bem se sabe, a pressentirem o perigo e a abandonarem o barco, sendo pois certo, como dois e dois serem quatro, por assim o autor (como se autor houvesse) o afirma e atesta que, num tempo já acontecido não narrado ainda, sabendo-se, pois, que o velho caturra, o senhor Gomes, marinheiro e desterrado, que nos idos anos de 1936, embarcou na aventura da Revolta dos Marinheiros teimou em ficar na Tabanca, que sua Pátria era aquela e ao destino daquela população se sentia ligado e, assim o dissera e fizera escrever e assinara, tudo assim visto e ponderado à luz dos acontecimentos acontecidos e outros por acontecerem, apenas Dona Rosalinda seria evacuada “manu militari” e, lacrimosa, por seus próprios pés, que é como quem diz, por sua própria perna e cadenciado balanço do anafado traseiro, se alcandorou às alturas da cabine do camião militar, que a devolveu à sede do Batalhão de Cavalaria e daí para Bissau, não sem antes, perante um coro brejeiro de assobios, dar dois repenicados beijos na face do atordoado Alferes, por entre o gesto de lhe colocar no pescoço o pequeno cruxifixo preso em singelo fio de prata, que sempre usara e a comovente recomendação “cuida-te, meu filho, tu ainda és um menino e esta guerra é uma merda, que Deus te guarde", frase e gesto que haveriam perdurar, como tatuagem de alma, nos passos e nos descaminhos do jovem Alferes, neste tempo narrado, indo ao encontro do Capitão Mascarenhas e atravessar agora o amplo espaço da vivenda, que antes fora alcova e leito de Dona Rosalinda e campo de outras refregas e transformado em Sala de Operações da Companhia de Cavalaria, paredes cobertas de mapas e ornadao no topo, onde antes fora cama, por uma imponente secretária metálica, como é de uso militar.

Pressinto, Maria Adelaide, o teu gesto de enfado, a pequena ruga atravessar-te a altiva testa, a luminosidade dos olhos e o sorriso contido, num esgar de ironia forçada, que mal encobre a tua sede e o desejo de outras margens, correntes íntimas que desatas, quase em desespero e onde colhes e recolhes a essência de nossos passos, por vezes lava acesa, outras mansidão, e quando em transe de desassossego te são irritantes, rasando os limites da agressividade na tua palavra afiada. E soltas, então, Maria Adelaide a acidez do verbo agreste, em ricochete de uma sede não satisfeita: 

“Que raio de coisa, Manuel este teu afã estéril de correr atrás da sombra, num redemoinho de poeiras que apenas em ti se projectam e que poderão ludibriar outros, mas não a mim, que te conheço todos os artifícios de sedução. Essa tua escrita enrolada a fazer que anda, mas não anda, qual cavalo amestrado em picadeiro, fazendo cortesias vazias de aplausos, meros acenos sem eco, mise-en-scène sem plateia em que apenas tu provas o gozo ou o veneno, serpente mordendo a própria cauda, circulo de cinza ardida, sinais dispersos com que, qual podengo enxotado, pretensamente procuras marcar teu território de escrita, já que originalidade, meu caro, vou ali e já venho, mais não fazes que repisar passos andados, na literatura e no cinema, elidindo o tempo, para melhor poderes esconder-te como sujeito da escrita (como se autor houvesse, dirás tu) e assim deixares que os acontecimentos “falem” sem mediações, numa pretensa modernidade, que, noutros será porventura arte, mas, no teu caso, mais não é que impossibilidade e o impasse de escrita, que te faz “suar as estopinhas” para te livrares das teias que te embaraçam a narrativa.

Meu caro, apressa-te. Diz ao que vens, na escorreita escrita de que és capaz e deixa-te de gorjeios de pássaro na gaiola, prisioneiro do próprio cântico, qual narciso espelhando-se no lago. Já não há paciência para tantos rodriguinhos e rodeios!... 

Apressa-te e, numa prosa enxuta e lisa, conta a tua história, para teu gozo pessoal apenas, pois que não faltam por aí “estórias” bem contadas à procura de leitores”.

Assim falou Maria Adelaide, licenciada em Letras e Línguas Modernas, qual pitonisa do templo de Calíope, agastada e docemente suspensa de um beijo e do capricho e o frémito de um livro roubado,  lá atrás, numa livraria de Lisboa.


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