Foi pois o Alferes ao encontro do Capitão
Mascarenhas que, terminado o bridge e
o conhaque, ordenara a sua presença, no gabinete do Comando e Sala de
Operações, amplo espaço da vivenda, que antes fora alcova e leito de Dona
Rosalinda e campo de outras refregas, que para aqui não são chamadas,
trespassado o Alferes pela pungência de recordações tão vivas e tão acesas que
escaldavam o crânio, a explodirem entre o apelo da memória e premência da ordem
do Capitão Mascarenhas, intrigado o Alferes de tal urgência, pois que, na
rotina dos dias na Tabanca, assimilada a certeza que os dias de ripanço e
fluidas leituras haviam terminado, nada fazia prever a magna reunião, entre o
Comandante da Companhia de Cavalaria e seu Adjunto.
Na realidade, com a urgência que as
circunstâncias ditavam, “todos os civis
haviam sido imediatamente evacuados”, conforme a ordem militar que assim o
determinara, depois dos traços, letras e números desordenados em que tal ordem
se dizia, ganharem, pelo engenho do “cabo da cifra”, expressão gramatical, bem
se sabendo que os ratos são os primeiros a abandonar o navio em transe de
naufrágio, assim também, o agente da PIDE, Rolão Antunes, olhos e ouvidos do
poder colonial-fascista naquele remoto lugar, desandou, com folgada
antecedência, rumo a Bissau, levando de boleia o agente comercial da C.G., o
filho da puta Gaspar, seu alter ego, conhecido em toda Tabanca, negros e brancos,
por “kamenino”, alcunha lapidada na
vergonha, se vergonha houvera, pelo assédio vicioso aos garotinhos negros que a
troco de umas guloseimas lhe frequentavam a casa e lhe aplacavam os ardores e ele,
Gaspar, filho da puta mil vezes e agente comercial da todo poderosa C.G., unha com carne com o Armando, que
o diabo o levara, no dizer de Dona Rosalinda, roído de febres e remorsos e que,
numa noite quente, em qualquer bar do Cais Sodré, num tempo outro atrás
narrado, o Armando arrebatou a ela Rosalinda, nos requebros de um tango, corpo
coleantes de sensualidade e paixão e de cabeça esquentada por promessas, beijos
e fantasias, ele Armando, rapagão trigueiro e bem-falante, a levou a ela,
Rosalinda, mulher esquiva e séria, atrás de um sonho, que virou inferno e
arraial de porrada, naquele cú do mundo que era a Tabanca.
Ora, sendo que “todos os civis haviam sido imediatamente evacuados”, como
ficou atestado, não por obediência à ordem militar expedida, embrulhada e
dissimulada em letras e números e chegada legível às mãos do Alferes por
esmerado exercício de decifração do “cabo da cifra”, mas por agudo instinto de
ratos sempre os primeiros, como bem se sabe, a pressentirem o perigo e a
abandonarem o barco, sendo pois certo, como dois e dois serem quatro, por assim
o autor (como se autor houvesse) o afirma e atesta que, num tempo já acontecido
não narrado ainda, sabendo-se, pois, que o velho caturra, o senhor Gomes,
marinheiro e desterrado, que nos idos anos de 1936, embarcou na aventura da
Revolta dos Marinheiros teimou em ficar na Tabanca, que sua Pátria era aquela e ao destino daquela população se sentia
ligado e, assim o dissera e fizera escrever e assinara, tudo assim visto e ponderado à luz dos acontecimentos acontecidos e
outros por acontecerem, apenas Dona Rosalinda seria evacuada “manu militari” e, lacrimosa, por seus
próprios pés, que é como quem diz, por sua própria perna e cadenciado balanço
do anafado traseiro, se alcandorou às alturas da cabine do camião militar, que a devolveu à sede do Batalhão de Cavalaria e daí para Bissau, não sem antes, perante um coro brejeiro de assobios, dar dois repenicados beijos na face do
atordoado Alferes, por entre o gesto de lhe colocar no pescoço o pequeno cruxifixo
preso em singelo fio de prata, que sempre usara e a comovente recomendação “cuida-te, meu filho, tu ainda és um menino
e esta guerra é uma merda, que Deus te guarde", frase e gesto que haveriam
perdurar, como tatuagem de alma, nos passos e nos descaminhos do jovem Alferes, neste tempo narrado, indo ao encontro do Capitão Mascarenhas e atravessar agora o
amplo espaço da vivenda, que antes fora alcova e leito de Dona Rosalinda e campo
de outras refregas e transformado em Sala de Operações da Companhia de Cavalaria,
paredes cobertas de mapas e ornadao no topo, onde antes fora cama, por uma
imponente secretária metálica, como é de uso militar.
Pressinto,
Maria Adelaide, o teu gesto de enfado, a pequena ruga atravessar-te a altiva
testa, a luminosidade dos olhos e o sorriso contido, num esgar de ironia
forçada, que mal encobre a tua sede e o desejo de outras margens, correntes íntimas
que desatas, quase em desespero e onde colhes e recolhes a essência de nossos
passos, por vezes lava acesa, outras mansidão, e quando em transe de
desassossego te são irritantes, rasando os limites da agressividade na tua palavra
afiada. E soltas, então, Maria Adelaide a acidez do verbo agreste, em ricochete de uma sede não
satisfeita:
“Que raio de coisa, Manuel este teu afã estéril de correr atrás da sombra, num redemoinho de poeiras que apenas em ti se projectam e que poderão ludibriar outros, mas não a mim, que te conheço todos os artifícios de sedução. Essa tua escrita enrolada a fazer que anda, mas não anda, qual cavalo amestrado em picadeiro, fazendo cortesias vazias de aplausos, meros acenos sem eco, mise-en-scène sem plateia em que apenas tu provas o gozo ou o veneno, serpente mordendo a própria cauda, circulo de cinza ardida, sinais dispersos com que, qual podengo enxotado, pretensamente procuras marcar teu território de escrita, já que originalidade, meu caro, vou ali e já venho, mais não fazes que repisar passos andados, na literatura e no cinema, elidindo o tempo, para melhor poderes esconder-te como sujeito da escrita (como se autor houvesse, dirás tu) e assim deixares que os acontecimentos “falem” sem mediações, numa pretensa modernidade, que, noutros será porventura arte, mas, no teu caso, mais não é que impossibilidade e o impasse de escrita, que te faz “suar as estopinhas” para te livrares das teias que te embaraçam a narrativa.
“Que raio de coisa, Manuel este teu afã estéril de correr atrás da sombra, num redemoinho de poeiras que apenas em ti se projectam e que poderão ludibriar outros, mas não a mim, que te conheço todos os artifícios de sedução. Essa tua escrita enrolada a fazer que anda, mas não anda, qual cavalo amestrado em picadeiro, fazendo cortesias vazias de aplausos, meros acenos sem eco, mise-en-scène sem plateia em que apenas tu provas o gozo ou o veneno, serpente mordendo a própria cauda, circulo de cinza ardida, sinais dispersos com que, qual podengo enxotado, pretensamente procuras marcar teu território de escrita, já que originalidade, meu caro, vou ali e já venho, mais não fazes que repisar passos andados, na literatura e no cinema, elidindo o tempo, para melhor poderes esconder-te como sujeito da escrita (como se autor houvesse, dirás tu) e assim deixares que os acontecimentos “falem” sem mediações, numa pretensa modernidade, que, noutros será porventura arte, mas, no teu caso, mais não é que impossibilidade e o impasse de escrita, que te faz “suar as estopinhas” para te livrares das teias que te embaraçam a narrativa.
Meu caro, apressa-te. Diz ao que vens,
na escorreita escrita de que és capaz e deixa-te de gorjeios de pássaro na
gaiola, prisioneiro do próprio cântico, qual narciso espelhando-se no lago. Já
não há paciência para tantos rodriguinhos e rodeios!...
Apressa-te e, numa prosa enxuta e lisa, conta a tua história, para teu gozo pessoal apenas, pois que não faltam por aí “estórias” bem contadas à procura de leitores”.
Apressa-te e, numa prosa enxuta e lisa, conta a tua história, para teu gozo pessoal apenas, pois que não faltam por aí “estórias” bem contadas à procura de leitores”.
Assim
falou Maria Adelaide, licenciada em Letras e Línguas Modernas, qual pitonisa do
templo de Calíope, agastada e docemente suspensa de um beijo e do capricho e o frémito de um livro roubado, lá atrás, numa livraria de Lisboa.
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