(...) para ele Alferes, Adjunto do
Comandante de Companhia, por acaso de graduação militar, daí em diante, não
haveria mais não dúvidas, nem angústias – o General, Comandante em Chefe da Guarnição
Militar da Guiné, vinha à Tabanca para de viva voz instigar a Companhia de
Cavalaria a passar a fronteira e atacar a guerrilha na sua base, na Guiné
Conackri, a escassos três quilómetros da linha fronteiriça.
FRAGMENTOS XLV
Sei,
Maria Adelaide, quanto te é penoso suportar esta descosida escrita que apenas a
tua curiosidade aguenta. Queima-te nos lábios a pergunta que não irás formular,
pois ambos sabemos não ser necessário, tão certos estamos um do outro, mas em
qualquer caso a urgência da pergunta, isto é, a curiosidade em saberes como
“descalcei a bota”, salvo seja, com a visita relâmpago do General à Tabanca te
obriga à maçada desta prosa, circular e arrebicada de sentidos, tu minha
querida Maria Adelaide, para quem, em tua verve analítico-literária, apenas a
poesia (ah, os Poetas e seu canto!) merece a dignidade de verdadeira literatura,
pois prosa todos a fazemos, muitos sem o saberem, é certo, tal como “monsieur
Jourdan”, quando pede os chinelos, ou aqueles que não têm o
privilégio de uma Nicole para lhe chegar os chinelos, mesmo assim fazem prosa, (sem
o saberem), nem que seja quando da declaração de impostos, a que todos somos
obrigados.
Compreendo, por isso, muito bem essa tua incontida aversão por esta
prosa em que te digo, pois tu mereces ser cantada em verso, não sei se Beatriz
ou Laura, assim Petrarca eu fora, em vez de este “prosador” a arrastar os pés,
já que, no mundo assaz selecto da literatura, teus olhos apenas “vêem poesia”
como, em tempo outro, no intervalo de outras refregas que para aqui não são chamadas,
me fizeste saber, num assomo de vulgaridade chique, que “o melhor poema eu o trazia
pendurado entre as pernas”. E assim o dizias, solta, numa lasciva gargalhada,
soletrando, silaba a sílaba, as estrofes do celebrado e ufano “poema”. Que viva,
então a Poesia, pois estás cheia de razão, Maria Adelaide – nada, de facto, que
se pareça em fulgor a uma metáfora! E para aplacar tuas comichões, as tuas e as
de outros, ou de outras, que em ti se coçam, garanto que depois desta teima, apenas poesia! Meus olhos não irão ver mais nada, que não sejam
metáforas, prometo! Quem sabe se não serei graduado “Mestre em Metáforas”, pela
Universidade de Cacilhas, está bom de ver! Mas até lá, minha querida Maria
Adelaide, não posso evitar-te a contrariedade – escreverei esta “prosa
enrolada”, bem sabendo eu, conscientemente, que faço Literatura – e isso me
basta!
Atalho-te.
E calo teu protesto num beijo, sabendo, tu e eu, que nunca nossas palavras,
falaram mais alto que nossa cumplicidade e que as tempestades, que
artificialmente desencadeamos, mais não são que pretexto um pouco perverso,
reconheça-se, para espraiada e bonançosa entrega que tão fundo nos une.
Voltemos,
pois, à Tabanca, Maria Adelaide. Cada um de nós com suas razões – tu,
Maria Adelaide, por curiosidade, eu por que ansioso para “descalçar esta bota”.
O capitão Mascarenhas, andava mais macio
nos seus rompantes militaristas. A acidez das palavras e o álcool a que moderadamente se entregava mais não eram
que sinais exteriores de uma mudança de carácter, fomentada, bem vistas as
coisas, mais que a dura experiência de combate e os horrores da guerra, que
nisso o capitão não tinha dúvidas, a guerra não passava de um jogo de vida ou
morte e, enquanto preso a esse jogo, mais valia matar que morrer e se houvesse que
cometer excessos, havia que assumi-los com coragem e sem hesitações, pois
que a tibieza de comando era o primeiro passo para o desastre, de forma que, na
referida metamorfose da personalidade, pesava no capitão, sobretudo, o esboroar
de certezas em que fora educado e, especialmente, o ruir do ideal militar em que
mergulhara e tinha as Forças Armadas e, em particular, o Exército e, dentro
dele, a Arma de Cavalaria, como esteio de virtudes cívicas e escola de formação
de elites.
Na realidade, durante o ano e meio, em
que a Companhia de Cavalaria, antes de aboletar na Tabanca, estivera às ordens
do General Comandante em Chefe, como força de intervenção, por todo o teatro de
guerra, foram frequentes os conflitos com os oficiais do Estado-maior que, quando
as operações militares corriam mal, era certo e sabido nunca eles assumirem as responsabilidades
pelo mau planeamento das operações, talhadas à medida dos seus relatórios auto
elogiosos e endossavam para os militares no terreno todo o ónus dos desaires - “uns filhos da puta que se estão a foder
para a guerra e para quem arrisca o pêlo - apenas pensam nas respectivas
carreiras!”- clamava, o Capitão Mascarenhas, para quem o queria ouvir,
pelos corredores do Estado-maior, sempre que, terminada uma operação militar
era convocado para avaliação dos resultados e a elaboração dos respectivos
relatórios.
Andava, pois, o capitão Mascarenhas mais
macio. E os dias na Tabanca, isolados naquele fim do mundo, abriram nele, por
outro lado, um certo instinto de camaradagem gregária, que gradualmente se foi sobrepondo
aos preconceitos e o levou a deslassar algumas rígidas regras para encontrar,
na convivência descontraída com os jovens oficiais do seu comando, algum
lenitivo para a sua gradual perda de ilusões, sem contudo perder a “panache” de
oficial e cavaleiro.
Era pois este o clima na messe dos
oficiais, quando o Alferes, após o bridge
e o conhaque, foi convocado pelo capitão Mascarenhas para se apresentar na sala de
operações e gabinete de Comandante da Companhia de Cavalaria, espaço que antes
fora leito e “boudoir” de D.
Rosalinda e campo de outros lances em que a anafada senhora era expedita, em
vista o jovem oficial, Adjunto do Comandante de Companhia, por acaso de
graduação militar, tomar conhecimento directo da informação restrita que
anunciava a visita relâmpago do General Comandante em Chefe e intimado pelo
capitão que não gosta de ser apanhado com
as calças nas mãos, a “pensar nisso” perante
a angustiante pergunta “o que
viria o general cá fazer?”.
Quando na véspera da chegada do General,
depois do brigde e do conhaque, o
capitão Mascarenhas “democratizou” a
informação restrita, quer dizer, derrogando regras de segurança, que a si
próprio se impusera, abriu ao conhecimento ao corpo de oficiais da Companhia a informação
sobre a visita relâmpago do general, que apenas era suposto ser conhecida do “cabo da cifra”, por dever de oficio,
mensageiro cego, surdo e mudo de todas as mensagens cifradas, pelo próprio
capitão e pelo Alferes, intimado a encontrar resposta para a obsidiante questão
que viria o general “cá fazer”, já
que, bem se sabe, o capitão não gosta de “ser
apanhado de calças na mão” pairou, por momentos, na sala, um silêncio denso,
cortado pelo impulsivo desabafo do Valentim, “vamos ter merda!” E o capitão, a carregar o sobrolho, azedo, “merda já temos nós todos os dias e não
precisamos do General, mas se não sabe o que ele cá vem fazer, mais valia estar
calado!”.
Era assim o Valentim, explosivo à primeira
provocação, coração ao pé da boca, generosidade sem limites e osso duro de roer
para quem não lhe caísse em graça, mantinha, vá lá saber-se por que razão ou
teima, uma tensão permanente com o capitão Mascarenhas, que vinha desde os primeiros
tempos da recruta e, desde esses tempos outros, tão próximos e tão distantes, com
10 contos na algibeira e todas as espeluncas e putas de Lisboa para frequentar,
unha com carne, numa amizade impoluta e breve com o “herói” a contragosto desta
narrativa tosca, - como tu, Maria
Adelaide, gostaria de nos ver, brilhantes de solarina e panache, subindo a
Calçada da Ajuda, a cavalgar impetuosos alazões, rumo a Monsanto, em exercícios
de equitação militar” – razão e, mais que razão, urgência, para o Alferes cortar
cerce o temperamento sanguíneo do amigo Valentim e, oferecendo-se às balas, que
é como quem diz, ao humor azedo do capitão, declarar, solene “o que o alferes Valentim quis dizer, meu
capitão, é que a visita do nosso General se destina a incitar-nos a atacar a base da guerrilha, no outro lado da
fronteira, numa operação de “nossa iniciativa” que naturalmente ficará secreta”.
“Fiat
lux!...” Os rostos dos jovens oficiais milicianos abriram-se em luminosa revelação.
O Valentim interrogava o amigo com olhar inquiridor. E o capitão Mascarenhas,
depois de uns momentos de reflexão e silêncio, deixou que a evidência falasse
e, qual Colombo ante a revelação do ovo, abanou a cabeça, entre a incredulidade e
o sorriso agora distendido “pois é bem
capaz de ter razão, nosso Alferes! Mas onde foi você a desencantar essa ideia tão
óbvia?” …
…………………………………………………………………
Diz-me,
tu, Maria Adelaide. Tu que tudo sabes e que tudo buscas saber do herói desta
narrativa em que te digo e, dizendo-te, se revela o autor (se autor houvesse)
corpo e sangue, deste fingimento de escrita, diz-me, tu, Maria Adelaide onde “desencantar
ideia tão óbvia”, sendo que os caminhos da vida são o que deles fazemos, deserção
ou percurso de glória, coluna erguida ou submissão, mas sempre a permanente ascensão
e queda de que são feitos os trilhos da liberdade.
Manuel Veiga
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