sábado, outubro 07, 2017

FRGMENTOS XLIX - Continuação


O General procurava ser cordial com os milicianos, pois bem sabia que o objectivo da sua visita à Tabanca, por enquanto não revelado, mas apenas sugerido, em diálogo um pouco cifrado e tenso, com o capitão Mascarenhas exigia, não apenas a adesão do Comandante da Companhia, que por maiores que fossem as objecções não deixaria, certamente, de encontrar forma de o convencer, pois mesmo entre oficiais da mesma arma, General é general e Capitão é capitão e são os generais que determinam, degrau a degrau, a carreira dos oficiais sob seu comando e qual o oficial de carreira, que admita enjeitar mais uma insígnia no doirado dos seus galões, de forma que, possuindo o General Comandante em Chefe, argumentos considerados irrecusáveis para o Capitão Mascarenhas, havia também que convencer os oficiais milicianos que obedeciam a outra lógica de aspirações, não de promoção e carreira, mas à lógica da “peluda”, isto é, a lógica de safarem o pêlo e saírem daquele buraco negro das suas vidas para regressarem, sãos e salvos, ao seio de suas famílias e ao afago de seus sonhos.

O ambiente à mesa, sem ser hostil, era, assim, um tanto ou quanto soturno e embaraçoso para o Capitão Mascarenhas, que gostaria que os seus oficiais milicianos se comportassem perante o General como verdadeiros oficiais de cavalaria, desembaraçados, tanto na caserna, como nos salões, ressalvando naturalmente as distâncias que vão da vivenda de Dona Rosalinda, naquele cú do Mundo que a Tabanca era, aos galantes serões da Papa Alferes, que lá atrás ficou, moída de amores pelo Alferes, que ainda não era, mas apenas Aspirante, acabadinho de chegar da Escola Prática de Cavalaria, literalmente filado pela menina Gertrudes, conhecida por todo o Regimento por Papa Alferes e varrido de sua casa, pelo zelo familiar de sua augusta Tia, senhora de respeito e excelsas virtudes, em circunstâncias sobejamente narradas e que para aqui não são chamadas.

Perante o pesado silêncio, o General, porém, não se dava por achado. Percorreu um a um todos os oficiais milicianos, indagando de suas vidas e projectos de futuro depois de cumprirem o seu dever de defesa da Pátria, ameaçada pelo comunismo internacional, começando pelo Alferes médico, “Cartuchadas”, único casado e uma filhota de meses, medroso que nem um rato, mas que do medo fazia coragem, quando em campanha, debaixo de fogo cerrado, algum militar requeria cuidados médicos, excelente médico, bom amigo e exemplar camarada e lá foi respondendo fixando o General e calando mais agreste resposta que era médico obstetra e que outra coisa que desejava senão ajudar a vida a nascer e as crianças a crescerem saudáveis e o General a engolir em seco, a passar adiante e a desejar felicidades e a inquirir o Barbas, lisboeta, filho de um pequeno industrial, dotado de assinalável “savoir faire” que lhe permitia quase sempre passar incólume por entre os pingos da chuva, que se limitou ao “politicamente correcto” e, sublinhando as palavras com o seu melhor sorriso, quase num gracejo, esclareceu que quando chegasse a Lisboa pensaria no assunto, que por enquanto esperava que os dias passassem e o General afagando a dupla queixada, ora aqui está o que se chama bom senso, mas meu rapaz – o General assume-se paternal e, sibilino, acrescenta – porém, os grandes homens não esperam que os dias aconteçam, fazem acontecer os dias e, sob o olhar circunspecto do capitão Mascarenhas, prosseguiu o General a sua ronda pelos oficiais milicianos, agora a vez do Valentim e a fala desabrida e seca serei professor de História, se sair inteiro desta merda e a admoestação do Capitão Mascarenhas nosso Alferes contenha-se, que não se toleram faltas de respeito e General contemporizador não ligue, Mascarenhas ao destempero do nosso Alferes, você sabe quanto aprecio cavalos e os homens e os cavalos querem-se de sangue quente e como um vago sorriso, sem mais olhar o Valentim, prosseguiu a ronda, agora a vez do Berros da Selva, a ostentar a braçadeira vermelha de “Oficial de Dia”, e de faces tão vermelhas quanto a braçadeira, tal o momento glorioso, proclamou, como quem decreta meu General, depois desta comissão de serviço, ofereço-me no Exército para nova Comissão, pois desejo prosseguir a carreira militar e o General alargando o sorriso e será bem-vindo à Família Militar, nosso Alferes, a Pátria necessita de homens como o senhor, que não do regateiam a generosidade do seu sacrifício e do seu sangue, se for necessário.

O General filara a sua presa, de forma que foi quase a despachar que fechou a ronda pelos oficiais milicianos e se prestou a ouvir o Alferes Adjunto do Comandante da Companhia de Cavalaria, por acaso de graduação militar, que, sentado ao lado do Capitão, fechava círculo e, portanto, o último a falar e, à sacramental pergunta, respondeu que frequentava a Faculdade de Direito e esperava em breve terminar o curso e exercer a sua profissão de jurista, não sabendo ainda se como Magistrado Judicial, se como Advogado e o General, até então, sem mais largar o Berros da Selva, olhou com interesse o ocasional interlocutor, herói a contragosto desta mal cerzida narrativa ora aí está uma profissão que tem todo o meu apreço – aos juristas se deve o ordenamento e a disciplina das sociedades! E o Alferes, num vago sorriso, quase num murmúrio, como se falasse para si próprio a verdadeira questão, porém, é quando a realidade extravasa a ordem jurídica e o General, franzindo o sobreolho nessa altura cá estão os militares para meter a realidade na ordem e eis, em duas frases, um verdadeiro tratado de filosofia política.

E, sem réplica ergueu o General a voz, para todos falando agora, mas com o Berros da Selva em mira e num discurso inflamado, evocou os deveres de todos e cada um perante a Pátria multisecular e pluricontinental, do Minho a Timor, a vocação civilizadora de Portugal e a defesa da Civilização Ocidental que se fazia na África Portuguesa, contra a subversão do comunismo internacional, o exemplo de nossos maiores e, em especial, o Santo Condestável, D. Nuno Álvares Pereira, patrono da gloriosa Juventude Portuguesa que coragem se bate em três frentes de guerra subversiva. O Capitão Mascarenhas, surpreendido com o inflamado discurso, olhava em redor da mesa, como quem receia a todo o momento uma hecatombe, o Alferes e o médico Cartuchadas, frente a frente, trocavam de vez em quando olhares cúmplices, o Valentim torcia-se na cadeira prestes a explodir, o Barbas metia os olhos na mesa, sem mais os levantar, e brincava com as franjas da toalha como escape para da tensão e o riso. Apenas o Berros da Selva bebia, com devoção, as palavras e os gestos do General, totalmente submetido, qual passarinho na boca da serpente. E o General Comandante em Chefe prosseguia no seu discurso, evocando agora os feitos guerreiros dos portugueses e a heroicidade da juventude, desde Alcácer Quibir a Aljubarrota, desde Goa, a Nambuangongo para, em tom dramático e requebros na voz, fixando com intensidade o Berros da Selva, cada vez mais impante e corado, fora eu jovem e pertencera eu a esta briosa Companhia de Cavalaria e jamais consentiria que um bando de maltrapilhos, a dois quilómetros de distância, fizesse gato-sapato de um destacamento do glorioso Exército Português e, dirigindo-se directamente ao Berros da Selva, estou certo que o nosso Alferes me dará razão e está desejoso de desancar esse bando de turras maltrapilhos, sendo que o seu Comandante de Companhia e eu próprio saberemos reconhecer o mérito do seu feito militar.

Antes de o Berros da Selva recuperar da emoção e poder causar dano irrecuperável com sua prosápia e desejo de dar nas vistas, levantou-se o Capitão Mascarenhas e, em impecável postura militar, permita-me, V. Exª, meu General, que o interrompa para esclarecer que não é apenas o Alferes Berros da Selva quem está desejoso de acabar com a base da guerrilha no outro lado da fronteira, todos os oficiais, sargentos e soldados desta Companhia de Cavalaria o desejam ardentemente. E, dirigindo-se, individualmente, a cada um dos oficiais milicianos, a começar pelo Alferes, seu Adjunto, não é verdade, nosso Alferes? E o Alferes erguendo-se da mesa, que nem uma mola, batendo os tacões em irrepreensível posição de sentido sim, meu Capitão!   E depois do Alferes, adjunto do Comandante da Companhia, todos os outros oficiais milicianos, batendo os tacões e em irrepreensível posição de sentido e assim, um a um, o disseram e gritaram Sim, meu Capitão! E assim permaneceram, perfilados, qual círculo de ferro, ou cavaleiros da Távola Redonda, em torno de seu Galaaz, perante um deus da guerra sentado e abatido, a receber a última estocada, todos os meus oficiais o desejam e eu com eles, insiste o Capitão Mascarenhas, todos nós desejosos de aniquilar o inimigo que, a escassa distância, nos ameaça e, com isso, dar uma grande alegria ao meu General, falta, porém, um pequeno detalhe – a ordem de operações do Batalhão, que eu dispenso, basta-me uma ordem assinada por V. Exª, e, dirigindo-se de novo ao Alferes, seu Adjunto, por acaso de graduação militar, providencie na Secretaria a redacção do documento para o nosso General assinar.

Então, nesta emergência, o General Comandante em Chefe, levantou-se, colérico, com um gesto travou o Alferes que se preparava para abandonar a mesa e cumprir o que lhe fora ordenado e, com voz trémula de raiva e incredulidade, visando o capitão com o dedo indicador apontado ao rosto pode você, Mascarenhas, ter por si a razão militar, mas advirto-o de que a sua atitude não cai em saco roto – o Exército pode compreender, mas não esquece, nem perdoa.

E sem se deter, abandonou o General imediatamente a mesa, dispensado o café e o conhaque, ordenou que lhe chamassem o furriel piloto-aviador que tripulava o helicóptero, pois a visita terminara e desejava seguir imediatamente para Bissau.

Ladeado pelo Capitão Mascarenhas e, dois passos atrás, acompanhado por toda a guarnição de oficiais milicianos o General, dirigiu-se, em completo mutismo, para a aeronave e, com os motores a roncar, subiu de imediato o escaler e já na entrada do helicóptero, sem outro gesto de atenção ou cumprimento, limitou-se, com breve gesto da mão direita à testa, a retribuir a continência do corpo de oficiais perfilado e em posição de sentido, até a nave levantar voo.

À distância, ignorando o drama e a trama, a curiosidade mole dos militares e os acenos e os gritos da pequenada negra.

De regresso à messe, o Capitão Mascarenhas, encheu os cálices com Remy Martin, conhaque que apenas em ocasiões especiais era servido e exclama, perante a libertadora gargalhada geral Meus senhores, celebremos o manguito! Hurra! E todos os oficiais, encenando, com os braços, o glorioso gesto que imortalizou Bordallo Pinheiro, responderam em uníssono, Hurra! E beberam num trago...

Nunca, na messe de oficiais, se falou mais do assunto. Mas, lá onde moram, os deuses da guerra decidiram, nesse dia, o futuro da carreira militar do capitão Mascarenhas.


Manuel Veiga

                     

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