terça-feira, julho 31, 2018

A CARTA QUE NUNCA TE ESCREVEREI - Take 5


Regresso à paisagem de teu corpo, Flávia, como degredado que constrói a galera do seu desterro. Sísifo e queda de mim próprio, alcanço o cume do sangue e o declive da tua ausência. E despenho-me na ilusão de uma posse que nem sequer pressentes. Sou, qual sismógrafo vibrátil, os registos de tua alma e de tuas pegadas no corpo do Desejo, frémito que te percorre em inocência perversa, como flor a abrir-se, fora de tempo, em generosa dádiva da Natureza - e essa disponibilidade minha será, porventura, a minha única lucidez!

- “Não me ames demasiado"!- preveniste-me, Flávia. E eu não esqueci. Contudo, a assertividade da frase desespera-me na minha obsessão de ti e revela-te, em toda a inquietação que exprime e em todo esplendor que evoca: "não me ames demasiado"!... Sei agora Flávia que o teu olhar se ergue para o infinito e que teu corpo é apenas epiderme da dor, a solidão partilhada, a angústia (i)revelada.

E sei ainda que te alimentas da febril escrita de teu corpo como algumas fêmeas se alimentam de suas crias, paridas na ilusão da imortalidade. Cuidado, Flávia, cuidado, devoradora de almas! A insanidade ronda-te e, na voragem, pode muito bem acontecer seres tu a perder a alma. A menos que (mas serás tu capaz, Flávia, de fazer esse caminho?), a menos que tu saibas, anjo caído, descartar-te das tentações e das sendas do Diabo. Olhando-o nos olhos e nas células de teu cérebro…

Sei agora, porque, por vezes, te aproximas. Queres viver outras vidas, que não apenas a tua. Queres a minha mão percorrendo-te como se teu corpo fosse o corpo de Maria Adelaide e no teu regaço o abandono quente da minha mão entre as tuas. Erro fatal, o teu. Os momentos que dizemos sublimes são apenas cinza do fogo onde ardemos. E ambos, - quem tão néscio que duvide? – seremos  senhores de momentos irrepetíveis de uma cinza que arde: a minha mão subtil na tua anca, prenhe de promessas; a tensão do beijo no canto da tua boca; ou o teu corpo ondulante, à tua partida de mim, no primeiro encontro – lembrar-te-ás? Ou então a reincidência de teu corpo desnudado em meus beijos, tempos depois! A vida é isto, apenas, a sequência de nós próprios em cada momento que nos damos, no prazer de nos darmos. O resto é literatura, cinza, depósito de um vinho decantado...

Não te amarei demasiado, descansa. Quero que nada de mim te seja desconfortável e socialmente incómodo. Aqui, da minha ilha desértica, contemplo-te como um meteorito que arrebata na sua fugaz luminosidade, mas cujo destino é perder-se na escuridão cósmica. Solitário, claro, como todos os degredados (ou pretensos escritores, à procura de resposta à pergunta “como se escreve um romance?”) mas a solidão conheço-a desde sempre. Numa avidez carente? Não o nego, mas sei que há afecto em ti. Não me basta, mas conforta. É esta minha loucura mansa: nada exigir para tudo ter. Virás, se quiseres. Sabes onde a minha alma mora e o fervor de meu desejo.

Assim, Manuel Maria, descendo agora a Rua do Carmo, depois de, na Brasileira, se libertar do seu amigo Quim Remédios, com a promessa de, em breve, um novo encontro, desta vez, com tempo e devidamente aprazado, de jeito a poderem reunir o maior número possível de amigos dispersos, que ambos sabem disponíveis para uma almoçarada- Assim, pois, Manuel Maria, após o inesperado parêntesis das suas lucubrações e da ingente pergunta “como se escreve um romance” e descartada a proeza erótica do amigo, retomando, então, o fio de sua digressão íntima, num dos seus solilóquios que tanto o acometem no labor criativo da escrita ou, como agora, mera dispersão do espírito, qual subterrânea corrente de consciência a emergir à superfície e a alastrar em cálido apaziguamento do Desejo.

Assim, pois, Manuel Maria, em sua mansa atracção por Flávia, maturando o tempo da espera, bem se sabendo, caçador furtivo, que o prazer residirá mais na pulsão pela caça e na rendição da gazela, do que no disparo da seta, sendo, porém, bem ciente deste despropósito de nudez de alma, ele, tão contido de emoções e, nesta emergência, sem bem saber como lidar com este tropel que, qual rio desarvorado se desata e inunda, num ápice, toda a extensão da planície, bem se sabendo que, em cada enredo do pensamento, uma ideia puxa outra ideia, uma memória evoca outra memória, nunca se sabendo ao certo quais os caminhos e veredas, sendo que do destino nunca saberemos, nem seremos senhores.

Recuava, assim, agora Manuel Maria a um tempo alvoroçado de mil iniciações e de sonhos e de promessas, ele, filho de mãe solteira, criada de servir, em casa senhorial, em povoação ignorada, algures na margem esquerda do Douro Vinhateiro, e entregue a protecção da Santa Madre Igreja, que o criou e o educou, longe do berço e dos braços da mãe, por favores, não dos céus, que era filho de união pecaminosa, mas por determinação de poderes terrenos, pois manda quem pode, já se sabe, e as instituições religiosas existem também para lavar (ou esconder) as vergonhas das famílias gradas, a sua própria vida, portanto, quase personagem de um romance, fosse ela antecipada de cerca de 150 anos e o acaso ou a mão invisível do Destino tivessem colocado a sua romanesca existência no caminho da exaltante criatividade de Camilo (Castelo Branco) e do seu génio literário.  

Recuava, pois, Manuel Maria, a esse tempo de todas as ousadias e deslumbramentos, cerejas carnudas a abrirem-se em incautas bocas, numa pulsão adventícia – pois, bem se sabe, o alfa e o ómega é a “paisagem do corpo de Flávia” – ele que, em idade, era pouco mais que adolescente e, no entanto, tão adulto nos seus compromissos, militante activo da Juventude Operária Católica e dos movimentos católicos progressistas, provando as primeiras agruras do combate antifascista, nas vigílias da Capela do Rato contra a guerra colonial, peixinho vermelho em pia de água benta, em que um jovem padre-operário o iniciara e que mais tarde lhe permitiria abraçar com entusiasmo outras mais vastas formas de luta política e participação cívica.

Terminara, então, Manuel Maria o Curso de Desenho, na Escola de Artes e Ofícios, António Arroio, que lhe iria permitir esgravatar o sustento e a independência pessoal, numa a conhecida Agência de Publicidade, como maquetista, burilando a tinta-da-china e delicados traços, os esquissos que art directors e copywriters exprimiam as mensagens publicitárias.

Tudo nesse dia lhe evocava Flávia. E nessa cálida irrupção da memória e na metamorfose de rostos, em movimento de linhas distorcidas e surpreendentes como se foram a mão artística de Picasso, surgia na vibração do tempo, vinda lá do fundo, como carícia e bálsamo a solícita Dona Ludovina que, maternal, assumira a integração do jovem Manuel Maria nos meandros e corredores da Agência e, na generosidade da sua carne exuberante, de cinquentona apetecível, velara também pela sua educação sexual, certamente atraída pelo encanto do rapaz, cuja ingenuidade e timidez lhe conferiam, a seus olhos, especialíssimo desejo de protecção.

E tal o desvelo pelo jovem Manuel Maria que a excelsa senhora levou também muito a sério o robustecimento do seu espírito e, assim, o introduziu numa “selecta tertúlia”, (palavra de Dona Ludovina) depois de rasgados encómios ao seu (dele) talento não apenas como artista plástico, mas como poeta, cuja qualidade ela, Ludovina, estava apta a garantir.
(continua)

Manuel Veiga

1 comentário:

José Carlos Sant Anna disse...

Escritor adestrado, que tu és, vai nos dando os condimentos que apreciamos...
E vou seguindo... relendo tudo...
Forte abraço,

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