Manuel Maria era agora uma esfera de fogo, a
percorrer o Universo de sua vida, relâmpago efémero que, em sua absoluta
luminosidade, deglutia, como magma absoluto, todos os resquícios da memória
fossem eles a majestosa paisagem do corpo
de Flávia, fossem as gargalhadas do amigo Quim Remédios, subindo o Chiado,
rumo à Brasileira, saboreando as inarráveis cenas da sua última (a)ventura cómico-erótica, ou até mesmo o registo
indelével de todos os outros momentos silentes que, para bem e para o mal, determinam
o curso e o percurso dos passos e emergem, no desamparo dos dias, como bálsamo
ou ariete, a espicaçar energias e resiliências, ou amaciar os inóspitos
caminhos.
Manuel Maria era, assim, nessa evocação dos tempos
da Agência, explosão em carne viva, ou abalo telúrico, no confronto sistémico
entre a clausura da Instituição a que fora entregue, tenro de anos e minguado
de afagos e onde ele, menino, cedo aprendeu que a vida se ganha todos os dias
com o suor do rosto, biblicamente falando, está claro, e na renúncia aos
prazeres, que amolecem a alma e a vontade, enfim, maquinações do Maligno, desde
o início do Tempo, para arrelia e castigo dos homens e sua soberba.
Fustigava-se, pois, mentalmente, Manuel Maria, nesse confronto retrospectivo de
tempos e mundos, da austeridade do Colégio e os votos de castidade e as
frustradas esperanças da Mãe e daqueles poucos que na aldeia, em que por
pecaminosos desígnios, viera ao mundo, acompanhavam, de longe, a sua vida e que
gostariam de o ver padre para descargo de suas consciências e o tempo desse
agora literário em que ardia, consumido pelo balzaquiano corpo de Dona Ludovina
e outras seduções e experiências que estava longe de imaginar na aridez da sua
vida, mas que o sopro de liberdade, fora de murros e amarras, precipitava, em
pletórica sedução, no seu sangue e na sua viva curiosidade pelas coisas do
mundo.
É verdade que essa metamorfose da consciência de si não se fazia sem dor e
a realidade da vida e suas seduções que, em girandola festiva, se abriam em sua
paisagem de possibilidades, como jardim de delícias, que importava provar,
traziam um preço amargo. Valiam-lhe, então nesses lances mais acesos e
perturbadores, as longas conversas com o tolerante padre Telmo, fervoroso padre-operário, serralheiro mecânico,
numa grande empresa industrial, nos arredores de Lisboa, das quais saía, quase
sempre, gratificado e robustecido e mais apto para os embates da vida e das
suas escolhas fundamentais.
Este, portanto, “ o drama de Manuel Maria”, quase émulo de “Jean Barrois”, personagem de Roger
Martin du Gard, no conhecido romance “O
Drama de Jean Barrois”, quando Dona Ludovina, paralelamente à iniciação
sexual, levou também muito a sério o robustecimento do seu espírito e o
introduziu, numa “selecta tertúlia”, com
rasgados encómios ao seu, dele, Manuel Maria, talento, não apenas artista
plástico, mas também poeta, cuja qualidade ela, Ludovina, estava apta a
garantir.
Acontece que pontificava no grupinho um casal,
recentemente regressado de Paris, onde no rescaldo de todos os Maios,
proclamava, em beatitude, que a História estivera ali mesmo, na polpa de seus
dedos... Era um homenzinho enfezado, a rondar os cinquenta anos, de luzidia
careca e pêlos indiscretos no nariz e nas orelhas. A barriga empinada e as
pernas curtas emprestavam-lhe um ar de aranhiço prestes a armar a teia. O olhar
líquido e redondo, por detrás de uns óculos de tartaruga, acentuavam-lhe a
famélica postura da aranha à espera da presa.
O homem, porém, quando a cerveja escorria, de
tudo falava. Nem era necessária plateia. Conhecia todos os argumentos. Entre os
existencialistas e marxistas (peleja fora de moda, dixit...) tomava naturalmente partido pelos primeiros. Discorria
com ardor sobre o “nouvau roman”. O
cinema e a “nouvelle vague” não
tinham segredos. E também os estruturalismos de todos os matizes: tratava por
tu Althusser, Lacan, Foucault, Derrida e tutti quanti!...
O homem era nitidamente um “semiótico”!...
A rapariga, - Cléo para os amigos - bastante
mais nova, vivia em permanente devoção. Acendia-lhe os cigarros. Colocava o
açúcar no café. Mexia e remexia. Carregava os jornais. Assinalava os artigos de
interesse. Sacudia-lhe a caspa dos ombros. Enfim, sabe-se lá o que mais não lhe
faria... A moça, era engraçadota, mas fisicamente desleixada, como era chic na sua condição de intelectual. Num
caderno, de folhas azuis e linhas, escrevia seus poemas, onde quase sempre “a alma se rebelava contra as torpezas do poder”.
Aconteceu que um dia, passado algum tempo, já
com as agruras metafísicas apaziguadas, Manuel Maria, depois da Agência, na sua
passagem pela Leitaria, deparou com a Cléo
sozinha, na mesa habitual. Explicadas as razões e, depois de minutos de
conversa, palavra puxa palavra, olhar pede olhar, a ocasião faz o ladrão e
estavam os dois falando de sexo!... E ela categórica “não me importava de fazer amor contigo, mas não te vale a pena, não
presto na cama” e ele a dar-lhe, num arroubo desenfreado, próprio dos tímidos
e das noites recalcadas, “não há como
experimentar”, patati...patati...patatá e ela a não se fazer mais rogada e
ele que havia semanas que não pensava noutra coisa e meu dito meu feito,
passados escassos minutos estavam os dois na cama.
Manuel Maria, que passara com distinção no
estágio de Dona Ludovina, usou de todo arsenal de recursos aprendidos e
inventou outros. A Cléo, porém, nada!... Nem um gemido, nem um movimento, nem
uma carícia, nem um esgar, nem uma palavra de estímulo, nem um fingimento...
Nada, literalmente nada!... Um corpo inerte, amorfo. Apenas os olhos se
reviravam nas pálpebras, em cada assalto. Naturalmente, frustrado...
Digam-me lá, se por mais esforçado, alguém
naquela situação poderia resistir e completar a função!... Pois bem, o Manuel
Maria desistiu. Desistiu e nunca mais apareceu na Leitaria e naquele cenáculo
de cultura...
Apenas soube da Cléo, tempos mais tarde, no
fervor da Revolução, Manuel Maria, novel arquitecto, embrenhado e empenhado no
projecto SAAL e no propósito revolucionário de resolver os problemas habitacionais
da área metropolitana, acabando com a vergonha das “barracas”, à entrada de Lisboa e que tanto desfeavam a cidade. Nessa
emergência, a boa e disponível Cléo, aparecia enfileirada num barulhento
grupelho esquerdista, exigindo, aguerrida, o socialismo “Já!...” e a resolução dos complexos problemas da habitação para o
dia seguinte. Nem a velha amizade com o jovem arquitecto Manuel Maria, que insistentemente
evocava, lhe domava a urgência revolucionária.
Passado anos, já no refluxo do sangue e da
Revolução, com a Cléo, novamente, fora de circuito, em França, Manuel Maria é surpreendido
pelo Quim Remédios exibindo um exemplar da revista “Cahiers du Cinema” a apontar a foto de capa “esta não é tua amiga Cléo?” – indagava. Pelos vistos, a Cléo triunfava
no cinema em França. E, perante a surpresa e genuíno prazer de Manuel Maria, o
Quim Remédios, com um sorriso matreiro, rematou “imagino as “cambalhotas” que a Cléo teve que dar para conseguir esta
foto”. E Manuel Maria, num sorriso irónico “não sejas maldoso, o triunfo da Cléo deve ser mesmo talento, porque, nas
“cambalhotas”, a Cléo é um desastre…”
E, então, Manuel Maria contou ao amigo, expert
em mulherio e cambalhotas, a cena da
sua despedida da Leitaria e da “selecta
tertúlia”, em que, ao tempo, a Cléo e seu amigo semiótico pontoavam. “Foi muito bem feito! Quem te manda andares
com intelectuais?!” - soltou numa gargalhada, o Quim Remédios e sentenciou:
“Nunca ouviste dizer que as mulheres
burrinhas são as melhores na cama”?
Manuel Maria embatocou. Mas passados momentos, já
recomposto, meio a sério, meio a rir: - “E
se forem intelectuais e burras?”
- “Então é a desgraça completa. Não te
invejo a sorte!...”
– rebolou-se Quim Remédios, babando-se de gozo... Digam lá se não é reconfortante ter um amigo assim
conhecedor das subtilezas da alma feminina e de seus mistérios!...
Manuel Veiga
6 comentários:
Olá, Amigo M.Veiga
Um percurso muito interessante esse de Manuel Maria, com passagens por caminhos culturais e revolucionários de grande peso.
Os ensinamentos da Dona Ludovina não lhe terão servido de muito mas ao menos lá está o Quim Remédios que com o seu saber sobre a alma feminina vai preenchendo algumas lacunas.
Abraço
Olinda
(para mais tarde seguir o 'fio 'a meada')
Vou pacientemente confinado no tempo juntando os pedaços... Mas posso garantir que a prosa é boa!
Um abraço, caro amigo!
Que bom que os comentários foram reabertos!
Excelente narrativa.
Beijo
"...pois que, sem o suor e sangue e as vísceras das personagens, a narrativa não será mais que pauta sem música, palco deserto, pura forma ..."
A reflexão de José Maria é uma excelente lição para quem se queira aventurar nos caminhos do romance. Toca-me este afeto a Maria Adelaide, personagem que o autor construiu e trouxe do romance anterior. Creio que nunca a abandonará, apesar de Flávia ter o fascínio de uma flor selvagem.
Beijo, meu amigo Manuel.
Por um momento parecia que ficaria mais tórrida, mas a Cléo fustigou o cavalo e não deu conta das rédeas... E o emaranhado da teia já é um sortilégio...
Nada como juntar para desfrutar...
Um abraço, caro amigo!
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