A
Sãozinha era a menina mais aplicada da turma. Declinava o “rosa, rosae” como nenhuma outra. A boquinha em botão, em pudor de
rosa por abrir, a Sãozinha era um anjo saído da talha dos altares barrocos - que
aliás frequentava com esmerada devoção...
O
“Begin” era então rapaz em fim de
adolescência, que pouco se prendia à Sãozinha e ao latim. Eram a iniciação aos
poetas proibidos e os seios da Nanda, que queimavam em seus dedos e sua imaginação.
É verdade é que, por vezes, na fantasmagoria da noite, com os beijos da Nanda,
se misturava o “rosa, rosae”, dos
lábios da Sãozinha. Mas, nesse jogo alucinado, a Nanda levava sempre a
melhor...
A
Faculdade separou-os. A Sãozinha foi aluna brilhante, com auspiciosa carreira
académica, não fora o sagrado apelo do matrimónio. Casara nova, com um distinto
clínico, director do Hospital local e a investigação académica perdeu-se na
fecundidade dos laços matrimoniais. Ganhou, porém, a cidade uma extremosa
esposa e mãe, santas tarefas acumuladas com beneméritas obras de caridade e
cargos de prestígio.
Passaram
anos. E a juventude. E grande parte da vida vivida. O “Begin” - amável alcunha do Liceu em que o narrador teima - subia à
cidade natal de longe, em longe. A Sãozinha era então incontornável. Um modelo virtudes
familiares, lhe contavam prazenteiros os antigos condiscípulos, em vaga
evocação de juvenis derriços.
E
nessas raras idas e vindas, os dias se cumpriam. A Sãozinha bem instalada no
topo da sociedade local, como aliás o seu estatuto de menina exemplar de outros
tempos fazia prever, e o “Begin” arrostando
penosamente códigos e leis, como enxada e arrimo, noutras paragens, bem mais
áridas.
Eis
senão quando, inesperadamente, para pasto maldizente da cidade, rebentou a
notícia de que o marido da Sãozinha, ilustre clinico, epígono da política local
e deputado da República, uma noite fora surpreendido pela GNR, numa estrada
escusa, dentro do automóvel, em descompostas posições, com um enfermeiro do hospital.
Ao
desgraçado soldado da GNR, que buscava contrabando, saiu material bem mais quente.
Que na sua boçalidade, não soube tratar com o devido cuidado – não aceitou
(como devia) a robusta nota com que o clínico lhe acenou. Tal imprevidência, só
não provocou a queda do “Carmo e da Trindade”, pelo facto de nem a Trindade,
nem o Carmo terem sido achados em tal assunto, mas, sobretudo, porque a provinciana
cidade não teria espaço para tamanho estrondo.
Em
qualquer caso, foi uma nódoa imensa naquela impoluta cidade, a exigir limpeza rápida...
O “pasquim” da oposição “ladrou” por uns tempos, o jornal do bispo clamou sobre
“campanhas torpes contra cidadãos impolutos”. E do púlpito o clero vociferou-se
contra o pecado da calúnia.
Entretanto,
o comandante da GNR local foi transferido, o incauto soldado que meteu a boca no
trombone antecipou a reforma, reformado compulsivamente e, a breve trecho, a
paz voltou ao reino, quer dizer a santa beatitude do burgo.
Hoje,
apenas uns inveterados “más-línguas” recordam o episódio, em surdina, para seu
gozo incréu e maledicente. Mas também a beatífica Sãozinha não perdoou, como
vos darei conta.
Por
razões que não interessam à história, quis o acaso que, uns alguns anos após, o
nosso “Begin” tivesse a honrosa
missão de apresentar a Sãozinha a uma pequena assistência, disposta, enfim, a escutar
os feitos de um apagado vulto da primeira República, originário da cidade, que
em Lisboa fora vagamente jornalista e assanhado carbonário, mas que a sociedade
local, com o deslassar dos anos e por força do clericalismo reinante, ignorava.
E que, por uns quantos, era até considerado como epígono do “trauliteirismo” monárquico que, à época,
grassara na região.
Entretanto,
com o 25 de Abril, a família do ignorado republicano retirou do sótão a sua correspondência
e outros documentos, que foram doados a uma instituição cultural, de que
inevitavelmente a Sãozinha era zeladora. E que, como historiadora emérita, a estudara
meticulosamente, queimando seu precioso tempo e prodigiosos neurónios. Estava,
portanto, a Sãozinha com avalizadas provas, apta desfazer o equívoco e repor a
verdade histórica.
E,
antes de subir aos meios académicos e aos corredores do poder cultural, numa
espécie de ante estreia, quis a Sãozinha bafejar, com sua erudição, a colónia
de emigrantes, seus conterrâneos, residentes na Área Metropolitana de Lisboa.
Um acto prenhe de sentido, como compreenderão, pois que mergulhar,
culturalmente falando, nas “bases”, permitiria à estulta Sãozinha refazer,
perante o poder revolucionário da época, a sua imagem de beata e mulher conservadora.
Um
gesto de grande iluminação, portanto. Primeiro degrau - dir-se-ia - na ascese
da consagração futura...
Foi
neste contexto, portanto, que Sãozinha e o nosso “Begin” se reencontraram uns anos depois das borbulhas da
juventude. Ele, vagamente esquerdista e algumas pretensões, presidindo à
cerimónia. Ela apta a brilhar em Lisboa, esmagando os circunstantes com sua graça
e saber.
Foi
assim, como passo a descrever...
Uma
vistosa colcha cobria a mesa completamente. Ao centro, um ramo de cravos
vermelhos. A bandeira da República e o estandarte da instituição entrelaçados armavam
o décor, imprimindo solenidade à cerimónia. Na sala, uma escassa dezena de
pessoas, que se estendiam pelo amplo salão, cochichando murmúrios e bocejos. Na
mesa, apenas os dois, a Sãozinha e o “Begin”.
Desembaraçados
os cumprimentos, passou-se “a substância” da coisa, com o “Begin” a tecer rasgados elogios, perante o leve rubor a adornar a
face da Sãozinha, sobretudo, quando o improvisado presidente da cerimónia evocou
a sua devoção ao estudo, bem como o exemplo de suas virtudes familiares e – the last, but not the least - a sua consagrada
beleza, que faziam dela a menina mais requestada da turma.
O
sorriso cândido e enternecido deixava antever o prazer da Sãozinha e quiçá
novos e mais fecundos desenvolvimentos nessa amizade da juventude.
De
facto, ainda o preâmbulo da oração ecoava e já perna esquerda da Sãozinha se
engalfinhava no joelho direito do nosso “Begin”,
agora respeitável cidadão e paradigma elogiado de “bonus pater familia”!
- “Que fazer?” - Perguntava-se, naquela
emergência, o “Begin”, entre perplexo
e divertido, sentindo a perna da Sãozinha cada vez mais afoita. Aguentar o
despudorado assédio, não havia outro remédio. Seria um escândalo!... E quem se
atreveria a tal? Tanto mais que, de vez em quando, a Sãozinha para ele se revirava,
com um sorriso inocente, pedindo assentimento para as suas palavras sapientes.
Que
ele dava, claro!... E assim durante quase duas horas até a perna do “Begin” se sentir, por fim, aliviada. A
Sãozinha arrasou literalmente a assistência, naquele espaço suburbano, onde
muitos cabeceavam, despertos, certamente, para empolgantes discursos políticos,
feitos chama da Revolução, mas pouco dados a escutar, na voz monocórdica da
Sãozinha, as peripécias republicanas de um tipo qualquer que, a maioria deles,
nunca tinha ouvido falar.
E
a cerimónia passou a história. Dela restou apenas a suave pressão da perna
esquerda da Sãozinha, a soltar perturbantes rugidos eróticos no nosso pacato “Begin”. Descansem, assim, as almas mais
generosas e compreensivas. O nosso “Begin”
e a Sãozinha festejaram, mais tarde, num hotelzinho simpático, o prazer do
reencontro
E,
por motivos óbvios, a Sãozinha passou a frequentar Lisboa com maior
assiduidade. Compreendam os mais cépticos (ou os mais cínicos) que a sua
erudita tese a tanto a obrigava, sabe-se lá com que sacrifício dos seus deveres
familiares.
.................................................................................................
A
Sãozinha mantinha então a frescura indecisa de uma balzaquiana bem cuidada. A
pele fresca e os seios juvenis. Chama-lhe “príncipe”
em saboroso recorte queirosiano! - “És
o meu príncipe!”- suspira, melodramática. Do marido, garante, nunca mais deixou
tocar-lhe, depois da cena com o enfermeiro: - “Um cabrão, panilas!” - solta com asco.
Mas
toda ela se dá “ao seu príncipe” em
arroubos amorosos e deliciosas indecências. O “Begin” pasma de tanto talento!
-
“Quem tal diria!?” - Sorri para os
seus botões.
Ela
gosta de o mimar. Traz-lhe novidades da terra e petiscos regionais. Que
gostosamente cozinha para ele. Em dada ocasião, foram morangos. “Os primeiros da quinta”, como garantiu.
Comidos na cama, enquanto, em pelota, desfilava a cidade: o labrego do
presidente da Câmara, o negócio de carros importados do Governador Civil, a
última amante do Bispo, verruga de Fulana, a unha encravada de Sicrana.
Um
desfile de cortar a respiração. Que ele aceita com um sorriso complacente. E, quando
termina, a Sãozinha quer um beijo.
-
“Chega por hoje!...” – diz ele,
evitando a boca...
Manuel Veiga
Sem comentários:
Enviar um comentário