terça-feira, junho 09, 2020

A CARTA QUE NUNCA TE ESCREVEREI - Take 26


Manuel Maria, sentia-se um tanto perdido no emaranhado de linhas, novelo de escrita do qual emerge como escritor, procurando dar coerência ao fluxo de emoções várias e sentimentos díspares, cerzidos uns e outros apenas pelas pontas e em risco de, em frágil equilíbrio, desabarem, qual funambulista que, na corda bamba, lança ao ar bolas ou argolas e que a mínima distração ou gesto mal medido pode deitar tudo a perder e fazer ruir todo o edifício de fantasia e arte, assim Manuel Maria, neste  tempo na narrativa, a segurar o fio das suas emoções, procurando colocar ordem nos seus pensamentos, bem sabendo que, da obsidiante pergunta sobre o que fazia ali a Cléo, mais cedo que tarde conhecerá a resposta.

Porém, outros fios, veredas e caminhos se atravancam e percorrem a recriação da sua vida,  invisíveis filamentos que moldam a matriz, memórias que ardem, perguntas acesas para as quais ainda não tem resposta, como, por exemplo, o que fazia ali, já não a Cléo, mas o que faz ali Flávia, apenas prenúncio de personagem que, em um tempo outro, irá marcar, qual incisão no corpo mártir da escrita, que tudo aguenta, o território da sua expressividade, quiçá a cúpula do edifício tão laboriosamente encenado, assim os desígnios da narrativa, que sem rebuço se diz literária, se cumpram e o escritor Manuel Maria tenha engenho e arte para, “levar a Garcia”, a Carta Que Nunca Escreverá.

Mas, antes, porém, as dores da escrita o levarão a outras paragens e a outros recantos da memória, donde salta, de vez em quando, a chispa de entendimento das coisas e dos afectos, bem se sabendo que, por muitos que sejam os rodeios e evocações, é a matriz e o barro, de que cada um é feito, que servem de aguilhão e, agora, neste tempo narrado, Manuel Maria a retirar da penumbra, em seu jogo de espectros, o escritor e as suas angústias existenciais e inseguranças, já não em saber-se como se escreve um romance ou se ergue uma personagem, pois que, na sujeição da escrita, como em qualquer realização humana, bastará erguer a espada e espada faz-se, mas ir bem mais fundo e interrogar-se como, no grande livro da vida, se constrói um homem, seja em Literatura, seja na Vida, pois, em rigor, não se sabe se é a Literatura que imita a Vida, ou se, mais exactamente, será a Vida a imitar a Literatura.


Manuel Veiga

9 comentários:

Cidália Ferreira disse...

Uma leitura interessante!! :)
-
Pele aveludada onde passeiam os sábios.

Beijos e um excelente dia... :)

Elvira Carvalho disse...

Um capitulo muito interessante, embora lhe deva confessar que desde Fevereiro que não acompanho a história, pois não consigo estar muito tempo no computador por causa do problema dos olhos e também por falta de tempo já que tomava conta da minha neta bebé e desde que encerraram as escolas tomo conta também da mais velhinha, e elas requerem muito tempo e atenção.
Abraço e saúde

Olinda Melo disse...


E aqui temos Manuel Maria numa pausa, em tempo de introspecção,
procurando organizar as linhas com que vai costurando esta história.
E muito terá ele de alinhavar pois os vários tempos que se entre-
cruzam assim o exigem.

E agora surge, apenas entrevista, pelo menos
para mim, outra personagem, a Flávia. E claro, fico já em ânsias
desejando saber qual o papel que irá desempenhar.

Daqui envio ao Manuel Maria os meus votos de um bom deslindamento
da trama e que não dê folga ao escrevente.

Abraço, Manuel Veiga.
Olinda

Pedro Luso de Carvalho disse...

A personagem desta narrativa, Manuel Maria, sente a ânsia, ou a angústia, ou a sua fraqueza diante da empreitada, o romance a ser escrito, que depende unicamente dele ( e das palavras, que garimpa) para a sua concretude. Mas Manuel Maria já conhece a luta que trava com as palavras, como conhece os seus labirintos. Sabe ele, também, não ser o único escritor a desafiar a palavra com roupagens enganadoras, e suas metamorfoses. Mas o personagem já está construído na mente do escritor, falta apenas a história, da qual ele será o suporte.

Caro amigo Manuel Veiga, gostei muito desta sua excelente narrativa. Meus parabéns ao Escritor e Poeta.
Votos de uma boa semana, amigo Manuel.

Teresa Almeida disse...

Gostei mesmo muito das divagações do escritor, da sua ansiedade e preocupação em edificar uma obra que adivinhamos robusta e chamativa. A isso já estamos habituados. E acompanhar as novidades que vão surgindo é um prazer que não dispenso, como se convidada a opinar em cada fase da construção.
Manuel, repara que não me esqueço do teu gosto pela arquitetura. Na verdade, a arte tem filamentos invisíveis que interligam as mais diversas expressões.

Um beijo, caro amigo.

Maria João Brito de Sousa disse...

Abraço, Manuel. Essa mesmíssima incerteza me guia cada poema desde que me conheço.

São disse...

Escrever um romance e construir personagens coerentes não é tarefa fácil, não....mas é bem mais difícil construir-mo-nos como pessoas na vida de todos os dias, sem dúvida.

Abraço com votos de bons feriados

José Carlos Sant Anna disse...

E agora, José?
Aguçada a minha curiosidade pela Flávia, confesso que meu interesse é saber da Cléo, não sei porque razão ou razões.
Gosto das divagações, das dúvidas, dos entremeios, da sutileza com que envolves o leitor.
Aliás, a sua escrita é sempre primorosa, resta-me ou resta-nos aguardar os desdobramentos desta narrativa. Já não é promessa...
Um forte abraço, Manuel!

Ailime disse...

Boa tarde Manuel,
É um prazer ler a sua narrativa tão rica tanto a nível do enredo como dos personagens!
Um deleite para o espírito.
Beijinhos e bom feriado.
Ailime

ESCULTOR O TEMPO

Escultor de paisagens o tempo. E estes rostos, onde me revejo. E as mãos, arados. E os punhos. Em luta erguidos…  S ons de fábrica...