Desejoso por chegar e, finalmente, conhecer
as razões de tanta urgência na sua chamada à Casa Grande e, depois, de resolvidos
os assuntos a que era solicitado, regressar a Lisboa, para ficar ao serviço da
Revolução, onde melhor a pudesse servir.
Em passo acelerado, atravessou a
sala de espera e as bilheteiras, saiu da Estação dos Caminhos de Ferro, e
dirigia-se para velho autocarro que, finalmente, o levaria à Casa Grande, quando se dá conta do reluzente Ford V8 com o chauffer, numa
das mãos o boné e, numa vénia como está
o menino, faça o favor de entrar, mantendo
a porta da retaguarda do automóvel teimosamente aberta.
Manuel Maria pasmava! O automóvel
estava ao serviço exclusivo da Federico Amásio, Senhor
da Casa Grande, que aliás raras vezes usava,
preferindo a volúpia de um bom galope a cavalo. O vistoso automóvel era apenas
um luxo, um “sinal exterior de riqueza” e ostentação de poder. Estranhava,
pois, Manuel Maria e, mesmo antes de perguntar pelas duas mulheres, que ambas o
amavam, como ambas sua mãe fossem, interrogou com o olhar o condutor, e como se
para si próprio falasse, que
significa isto?...
Vamos,
não há tempo a perder… respondeu o velho
motorista tenho ordens para o levar
diretamente à Igreja…
À Igreja? Era o que me faltava! Mas que diabo
vou eu fazer à Igreja, inquiriu Manuel
Maria divertido, pois. não deixava de ter graça, que antes de pisar chão de Terras do Demo, fosse levado à Igreja para
uma desinfeção espiritual, ironizou Manuel
Maria numa gargalhada íntima, bem sabendo nós, das suas fantasias e inesperados
humores, com que adorna os traços do seu carácter, um pouco melancólico.
Havia um certo perfume de mistério
no nascimento de Manuel Maria, que veio ao mundo, na Casa Grande, mediante uma gravidez,
um tanto surpreendente, da azougada Violante. criada, dama de companhia e amiga,
que a Camilinha, a fidalga-esposa, trouxera, com o enxoval, de casa de seus
Pais, para a fazer esquecer o deserto para onde fora-a atirada com o casamento.
E. de facto, em certa medida, Violante acabou por dar sentido à vida da
fidalga, na defesa da vida e no amor maternal a uma criança espúria, cujo
destino seria, se não a morte, a indigência e a marginalidade,
Como se sabe, Federico Amásio
possuía as mulheres com o mesmo garbo com que um lobo esfaimado abocanha uma
ovelha fora do redil. Por sua vez a Camilinha, educada em Colégio religioso, era
uma florinha mimada, inexperiente, com a cabecinha loira formada para a
Santidade e, em consequência, a relação sexual, admitida apenas na constância
do matrimónio, na gloriosa e santa missão de reprodução da espécie. De forma
que, a noite de núpcias, que devia ter constituído uma festa dos corpos e
alegria dos sentidos, foi transformada, pela bestealidade e a bebedeira noivo,
num sórdido espectáculo, com palavrões, insultos e violência, de tal ordem que
aterrorizaram a delicada e frágil Camilinha, que, a partir da noite de núpcias,
se “fechou” totalmente para os prazeres do amor sexual, recusando o leito
nupcial e banindo a presença do marido. E não houve promessas ou ameaças que a
demovessem, fazendo dos seus aposentos, decorados com livros e imagens santas,
o seu mundo, donde raramente saía, até mesmo para tomar as refeições. O
contacto com o Mundo da Casa Grande era mediado pela crepitosa Violante, de
carnes rijas, uma espécie de mensageira entre mundo e o ermitério, onde a
Camilinha se enterrara viva, recusando, categoricamente, a proximidade do
marido
Seja como for, a verdade é que a
Camilinha acabou por perdoar a afronta da rapariga (um pouco estouvada, convenhamos) e a criança foi
criada e apaparicada na infância pelas duas mulheres que viviam Casa Grande – a
aia e a Senhora – como filho de ambas fosse. E, se Manuel Maria crescia em superabundância
de amor maternal, tinha, no entanto, um pequeno problema de paternidade. Em
verdade, toda a gente, em Terras do Demo. conhecia a história do nascimento da
Manuel Maria. mas ninguém se atrevia a dizer, em voz alta, que Federico Amásio era
o pai da criança.
Sejamos claros, apenas a Camilinha,
vinda de sul para norte, ao arrepio das águas, para estabelecer laços de matrimónio
com o Senhor da Casa Grande e, com tal casamento, salvar a honra do Pai, roído pelas
dividas de jogo e pela sífilis, apenas a Camilinha, dizíamos, tinha, na verdade,
autoridade para que, se o desejasse, dar o nome às coisas”, quer dizer, revelar
em pormenor todas as circunstâncias do nascimento da criança e dizer preto no
branco que Federico Amásio era o pai. Mas quem ousaria perguntar? E era mais
que certo, que se a Camilinha falasse, saberia escolher o momento mais adequado
para falar, quer dizer, o momento que melhor servisse os interesses do jovem
Manuel Maria, que amava como filho, e, ao mesmo tempo, tirar o máximo desforço
das humilhações e desconsiderações recebidas do marido, desde a noite de
núpcias.
E não faltavam razões à jovem
esposa, que, a par da proteção e do acrisolada amor maternal pelo jovem, centro
de sua vida, alimentou ao longo dos anos bem acesa a ideia de vingança, como
motivação da sua vida e a sua missão sobre a Terra. E interrogava-se, nas suas
horas de meditação, onde fora buscar inspiração e força para impedir a expulsão
da Violante e do filho, da Casa Grande.
Diz a
cadela que a emprenhei e que o cachorro é meu filho! Que se foda a cadela e o
cachorro, se embarrigou que tivesse mais cuidado! A mim é que ela não fila o
dente! Era o que me faltava! – gritava alucinado pelo corredores Federico Amásio -
Puta que
os pariu, Rua! A cadela e cachorro para olho da rua! Já…
É então, nesse momento determinante, que a Camilinha, como tantas vezes na vida acontece,
com seres aparentemente frágeis, perante as injustiças e iniquidades, se
transfiguram e afoitam e crescem em autoridade e se afirmam contra o poder, por
mais forte e autoritário que sejam, e assim redimem a vida e dão sentido à
sociedade. E perante a crueldade do marido, ergue-se como rainha em porte
altivo e. segurando o marido pelo braço, fixando-o fundo nos olhos, em voz firme,
mas serena nem a criança, nem a mãe
saem desta casa, se elas saírem irei com elas e se for necessário para dobrar a
sua vontade e a sua maldade, irei ao
Governador Civil, irei ao Bispo, irei a Lisboa ou a Roma se necessário e toda a
gente ficaria a conhecer que rês era o Senhor da Casa Grande.
Manuel
Veiga
.
2 comentários:
Gostei da "Casa Grande". Um bom ano
A obra continua em bom ritmo.
É bom não perdermos o fio à meada.
Beijinhos, Manuel Veiga.
Enviar um comentário